Blog do Mario Magalhaes

A crise à mesa no Rio
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Mário Magalhães

A crônica de fechamento de restaurantes e cafés cariocas se alarga. De casa estrelada, como a da Roberta Sudbrack, ao Entretapas, Terzetto Café, Al-Farabi (que era também livraria). Até a churrascaria Estrela do Sul, tradicionalíssima em Botafogo, teve de desistir. A receita não banca mais os custos. O Rio é o epicentro da crise nacional, que não ignora as mesas da cidade.

Espalham-se tentativas de resistir, nas quais o consumidor perde. Num restaurante a quilo na rua Evaristo da Veiga, o pato habitual duas vezes por semana tornou-se bissexto. Os molhos de suas receitas agora acompanham outras carnes, mais baratas. Na rua Santa Luzia, na seção do sushi a quilo, não servem mais a fatia de peixe cru sobre o bolinho de arroz. Agora, só os rolinhos com peixe mais sumido que o Rubem Fonseca de convescote literário. O preço não caiu. Um supermercado já havia se antecipado ao agravamento da crise, diminuindo o tamanho das (ótimas) pizzas que serve.

É ruim, mas nada comparado ao perrengue de quem comia nos restaurantes populares mantidos pelo Estado. A maioria continua fechada. Se um dia vierem a reabrir, será complicado: suas instalações foram alvo de furtos e saques.

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Vai, Vinicius Junior, ser feliz na vida
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Mário Magalhães

Em contraste com o time tristonho, Vinicius Junior alegrou o domingo – Foto Staff Images/Flamengo

 

Deu tristeza ver o Flamengo no empate em zero com o Botafogo.

Com elenco muito mais caro e mais descansado, o time não conseguiu anotar um golzinho sequer.

E ainda devemos um agradecimento caloroso ao Roger, que perdeu um gol facílimo de fazer. O Roger é o maior especialista em impedimento que eu tenho visto por aí. Em ficar impedido, é evidente.

Quando a armação de jogada coube ao Réver, no primeiro tempo, sintetizou-se a anemia criativa. Como seria previsível, o ataque deu em nada.

A escalação do Willian Aarão pela direita ofensiva é pusilânime. Ele é colocado ali mais para defender do que para atacar. O eficiente segundo volante-meia acaba desperdiçado num papel que não sabe executar. Errou demais, mas o erro maior é do Zé Ricardo, que o situou onde não deveria.

Não é que a equipe não lute. O problema é jogar um futebol macambúzio, tristonho. De longe, parece que a cabeça permanece refém do revés na Libertadores.

A primeira etapa valeu apenas por ver a elegância do Juan e a disposição do Ederson, cabra que se recusa a se esconder, busca o jogo, tem fome de bola e técnica acima da média.

Na partida modorrenta na maior parte do tempo, combinando com o sol do meio-dia, o pouco de alegria ficou para depois do intervalo.

Foi bacana ver o regresso do Diego, trazendo a esperança de que o rubro-negro volte a pegar, no tranco.

E um prazer assistir ao Vinicius Junior. O garoto de 16 anos entrou intrépido, infernizou a defesa alvinegra, driblou, acertou bola no travessão.

Não sei se o jogador com nome de poeta já faz poesia no gramado, mas que encanta, ah, como encanta. Outro poeta, Carlos, diria: vai Vinicius, ser gauche na vida.

Tomara que no Flamengo, no Real Madrid, na seleção, onde estiver, seja muito feliz. Por ele e pelo futebol.

E o Botafogo?

Com folha salarial bem menor do que a do Flamengo, o Jair Ventura classificou o time para a fase de mata-mata da Libertadores. E, desfalcado antes e durante o jogo, não perdeu ontem.

No confronto dominical com o Zé Ricardo, foi superior. Tem sido melhor.

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Palavras malditas (26): confessou
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Mário Magalhães

Máquina de escrever de meados dos anos 1960 – Reprodução “The New York Times''

 

Volta e meia leio e ouço que fulana ou fulano, uma dita celebridade, ''confessou'' que ama o namorado ou a namorada.

Imagino que o ser amado não valha nada. Se valesse, não haveria confissão. É previsível amar a pessoa que se namora. A confissão seria: namoro sicrana, mas a odeio.

Um jogador de futebol, escreveram, ''confessou'' ter se preparado com afinco para o jogo decisivo.

Tal comportamento é o esperado. Confissão seria revelar que passou a semana na gandaia, indo direto da farra para os treinos matinais. Que, em vez de caprichar na alimentação, comeu rabada com agrião todos os dias e entornou uma garrafa de caninha por refeição. Que não cuidou do tornozelo inchado, maltratando-o em acrobacias na suruba.

Nenhum policial confessa que se empenha na solução de um crime.

Quem confessa é o Temer, que confessou terem ocorrido alguns dos diálogos mais cabeludos gravados pelo Joesley. E o Mantega, que confessou ter conta secreta na Suíça.

Depois de gritos, urros e sussurros, ninguém diz para o parceiro: confesso que você me dá prazer.

Eis uma confissão possível: todos esses gemidos não passam de fingimento.

A confissão pressupõe algo errado, inapropriado.

Uma vez me disseram: confesso que adoro brigadeiro.

Do jeito que eu gosto de chocolate, confissão para mim seria proclamar aversão ao doce.

E o ator que ''confessou'' amar o cinema?

Onipresente nas telas, a confissão só teria sentido se ele achasse degradante trabalhar em filmes.

Nenhuma ''confissão'' é mais disparatada do que uma publicada num Dia das Mães: ''Amo a minha mãe'', ''confessa'' beltrana.

A mãe dela deve ser uma megera.

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Por que Temer (ainda) não caiu
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Mário Magalhães

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Michel Temer: diante do espelho? – Foto Alan Marques/Folhapress

 

Michel Temer, o missivista agonizante, ainda não caiu sobretudo por dois motivos.

O primeiro é o interesse em sua permanência, mesmo nas cordas, demonstrado pelo empresariado mais graúdo. Aquele que os louvaminheiros chamam de ''o PIB''. O grosso dos donos das finanças, da indústria, do agronegócio e do comércio mais endinheirado. Receiam que, sem o anfitrião de Joesley Batista, não prosperem as ditas reformas da legislação trabalhista e da Previdência Social. São mudanças, no formato atual, que contribuirão para aumentar a concentração de renda. Portanto, para agravar a desigualdade já obscena. Aos trancos e barrancos, as ''reformas'' avançam, empurradas pelo governo.

O segundo motivo diz respeito aos grandões que integraram a coalizão política e econômica que patrocinou a aventura presidencial de Temer mas já desistiu dele. Por acreditar que o autor da cartinha de queixumes endereçada a Dilma Rousseff não reúne mais poder suficiente para tocar as famigeradas reformas. Esse segmento, contudo, treme ao pensar num vazio político que facilitaria a convocação de eleições diretas antecipadas para o Planalto. Só se dispõe a se desfazer do marido de Marcela quando tiver celebrado um pacto que entregue a Presidência a alguém ungido por deputados e senadores, sem a consulta ao conjunto dos eleitores. Prefere o risco de caos ao imprevisível das urnas. Só dará o pontapé fatal em Temer, que se equilibra à beira do abismo, se tiver fechado um acordo sobre seu sucessor. Um sucessor que imponha as ''reformas'' goela abaixo.

Como as leis da história às vezes são mais fortes do que os conchavos, as manifestações de rua pelo Fora, Temer! e por Diretas Já podem complicar as combinações por cima.

Esse é o quadro da manhã de 1º de junho de 2017 _a situação tem mudado mais rápido que ministro da Justiça de Michel Temer.

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O novo drible do Garrincha e o sumiço do corpo da Evita
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Mário Magalhães

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O anjo das pernas tortas – Fotos acervo Última Hora/Folhapress

 

Foi o Ruy Castro quem desvendou, a partir do gigantesco tronco indígena brasileiro, o ramo generoso que dera no Garrincha. O Mané descendia do povo fulniô, que vivia em Águas Belas, no agreste pernambucano. Os índios de lá eram chegados numa bebidinha alcoólica. E, isso era segredo deles, achavam que qualquer maneira de amor vale a pena.

Dois anos depois da publicação de Estrela Solitária, a biografia do Garrincha lançada pelo Ruy em 1995, o repórter fotográfico Antônio Gaudério e eu pegamos a estrada para contar histórias do país do futebol. Em Águas Belas, assistimos a um jogo em que um time fulniô perdeu por 2 a 1. Depois da partida, alguns boleiros da casa fumaram xanduca, o cachimbo tradicional da tribo, e beberam aguardente.

Os mais velhos falavam o idioma iatê. Como não estava no período do Ouricuri, ritual sagrado que vai de setembro a novembro, visitamos a reserva fulniô, a cinco quilômetros da aldeia. No resto do ano a reserva permanece vazia. Na entrada, uma placa adverte: ''Não entre – Perigo – Tribo de índio''. À saída, nossos anfitriões nos convidaram para mergulhar num lago. Não deu, pois estávamos atrasados para o destino seguinte do nosso pinga-pinga.

O Gaudério documentara um fenômeno que fazia sentido: homens de pernas tronchas como as do Garrincha eram figurinhas fáceis. Como anoitecia, eu acendi os faróis, a pedido do companheiro de viagem. O Gaudério transformou a iluminação fornecida pelo carro numa luz mágica. Houve quem mais tarde comentasse que parecia retrato de estúdio high-tech.

É curioso que o mais endiabrado driblador fosse chamado de anjo. Das pernas tortas, mas anjo. Trinta e quatro anos depois de sua morte, o Garrincha acaba de dar mais um drible. Ou de levar.

Corroído pelo alcoolismo, o gênio da camisa 7 partiu em 1983, às vésperas de completar cinquenta anos. Enterraram-no no cemitério de Raiz da Serra, em Magé, Baixada Fluminense. Na lápide se lia ''Aqui descansa em paz aquele que foi a alegria do povo''. Já não descansa: hoje noticiaram que o corpo do Garrincha desapareceu.

Os parentes do melhor entre os melhores pontas-direitas não sabem onde repousam os restos dele. O cemitério especula que podem ter sido perdidos numa exumação. Ignora-se até se ainda está enterrado. Dois lugares indicam ser a sepultura. No jazigo original, a ossada teria sido retirada quando um primo do Garrincha ali foi sepultado. Perderam o corpo do anjo endiabrado.

A infâmia agora descoberta decorre de desprezo, tingido de morbidez, com a história. E acontece porque o Garrincha morreu pobre.

Em 1955, o corpo da argentina Eva Perón sumira não por bagunça vexatória, como o do Garrincha, mas porque o sequestraram. A mulher do presidente Juan Domingo Perón morrera em 1952 de câncer. Seu cadáver foi embalsamado, mantido num esquife de vidro e visitado por multidões. Deposto por um golpe, Perón se exilou na Espanha. E a múmia da Evita desapareceu da sede de uma central sindical, onde continuava o processo de embalsamamento. Militares do Exército a carregaram à noite. Em 1957, costurado um acordo com o Vaticano, embarcaram na moita o corpo para a Itália. Lá o esconderam com nome falso num cemitério de Milão. Só na década de 1970 regressaria para Buenos Aires.

Essa foi a matéria-prima factual do romance Santa Evita, do Tomás Eloy Martínez. O escritor argentino fantasiou caminhos e descaminhos da Evita embalsamada. Gabriel García Márquez assinalou, sobre a peregrinação necrófila: ''Enfim, o romance que eu sempre quis ler''.

Uma vez eu perguntei ao Tomás Eloy o que era fato em Santa Evita. ''Nada'', ele respondeu. Tudo panos de fantasia costurados com linhas da história e seus personagens.

O corpo da Eva Perón se encontra no cemitério da Recoleta, em Buenos Aires. A duzentos metros do portão principal e cinco metros abaixo da terra.

E o do Garrincha?

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Ato em Copacabana falou pelo país: 85% dos brasileiros querem Diretas Já
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Mário Magalhães

Reprodução ''Folha de S. Paulo'', 30.abril.2017

 

De modo escancarado ou subliminar, a manifestação pró-Diretas Já que reuniu milhares de pessoas domingo em Copacabana tem sido desqualificada por alguns devido à vasta presença de artistas.

Santa ignorância, Teotônio! Saibam que na épica campanha de 1984 pelo direito de votar para presidente os palanques eram também palco para os artistas darem o seu recado.

Iam aonde o povo está, cantava Milton Nascimento, que anteontem participou do protesto no Rio.

Na Candelária, Chacrinha, Taiguara e uma turma da pesada falaram no comício de 10 de abril de 1984.

Até agora, neste tormentoso 2017, não apareceram os jogadores de futebol de 33 anos atrás. Que falta faz o doutor Sócrates.

Também tentam menosprezar o ato dominical como convescote de pequeno-burgueses da zona sul carioca. O pessoal que foi à avenida Atlântica, na maioria da classe média para cima, não expressaria a vontade da maioria dos brasileiros.

Lorota, como demonstra o Datafolha. Hoje faz um mês que foi divulgada pesquisa feita pelo instituto em 172 municípios, consultando 2.781 pessoas.

A pergunta: ''Se o TSE cassar a chapa Dilma Rousseff-Michel Temer, o que seria melhor para o país?''

Em cada cem eleitores, 85 responderam ''[o] Congresso mudar a Constituição e realizar eleições diretas''.

Somente 10% defendem que deputados e senadores escolham o novo titular do Planalto.

Do Sul (84%) ao Nordeste (87%), a preferência é contundente.

O mesmo levantamento constatou que meros 9% aprovam o governo Michel Temer.

Olha que o Datafolha foi às ruas antes da revelação da delação da JBS e seus próceres.

E só ofereceu como opção para a saída de Temer o cartão vermelho da Justiça Eleitoral.

Há outras. Mais demorada, o impeachment, ou rápida, a renúncia.

É plenamente legal e democrática uma emenda à Constituição que antecipe as eleições previstas para outubro de 2018.

É o que confirma na ''Folha'' a advogada Vera Karam de Chueiri, professora de direito constitucional na Universidade Federal do Paraná. Ela é também a diretora da Faculdade de Direito da UFPR.

Ao reivindicar Diretas Já, os manifestantes de Copacabana representaram a vontade da maioria esmagadora (85%).

São duas as palavras de ordem principais das mobilizações: ''Fora, Temer!'' e ''Diretas Já''.

Trocando em miúdos, rejeita-se Temer, mas não se quer em seu lugar um simulacro de Temer, ungido em conchavo.

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Na noite do Circo Voador, clima da Campanha das Diretas ecoa 33 anos depois
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Mário Magalhães

Lô Borges e banda na madrugada de domingo, no Circo Voador: ''Fora, Temer!''

 

Na noite do sábado, o mestre de cerimônias do Circo Voador foi ovacionado ao convocar o público para a manifestação do dia seguinte em Copacabana. Pela antecipação das eleições diretas para presidente, é claro. Quando foi falar mais sobre o que seria o domingo, sorriu e deixou para lá: vocês já sabem…

O pessoal sabia mesmo. Lô Borges e os seis músicos da banda conduzida por Pablo Castro subiram ao palco depois da meia-noite. Como saudação, Lô mandou um ''Fora, Temer!'' Os presentes retribuíram com disposição igual à com que dali a pouco cantariam o refrão d'O trem azul.

Pertinho das duas da madrugada, costeando a despedida, Lô fez mais de uma dezena de agradecimentos. Pediu que, em vez de palmas, cada nome fosse reverenciado com um ''Fora, Temer!'' Atenderam-no. Horas mais tarde, dezenas de milhares de pessoas gritariam ''Um, dois, três, quatro, cinco, mil, eu quero eleger o presidente do Brasil!'' Na Lapa e na beira da praia, um túnel do tempo transportou à velha Campanha das Diretas.

Até a lona estilosa do Circo Voador não desconhece que 2017 não é 1984, o ano em que os brasileiros saíram às ruas pelo direito de decidir. Também não é Petrogrado 1917, Berlim 1933, Guernica 1936, Stalingrado 1943, Havana 1959, Praga 1968, Lisboa 1974, Gdansk 1980…

A Brasília de hoje não é a de abril de 1984, às vésperas da votação da emenda constitucional das Diretas Já. O general João Baptista Figueiredo, derradeiro mandachuva da ditadura, ocupou a capital com milhares de soldados. O comandante militar do Planalto, general Newton Cruz, desfilou de cavalo branco. Nenhuma caricatura tropical de Napoleão deu as caras em 2017. Só, no protesto da semana passada, as tropas e a intimidação.

Mas o astral tem parentesco. Na madrugada do outono carioca, bradaram pelas Diretas e contra Michel Temer quem viveu o comício de 10 de abril de 1984 na Candelária e quem estava longe de nascer. A gurizada se motivou a ir ao circo por causa da apresentação de abertura, da Banda Dônica. E por Lô, encanto que se renova de geração em geração.

O show celebrou os 45 anos do chamado Disco do Tênis. Lô calçou pisantes Adidas, muito mais inteiros do que o par cansado de guerra da capa do LP de 1972. Todas as músicas daquele álbum foram tocadas, com arranjos originais. Em seguida, vieram as oito de que Lô é co-autor no Clube da Esquina, disco que ele lançou no mesmo 1972, em dobradinha com Milton Nascimento. Lô completava então vinte anos. Ele cantou no circo todas as suas composições até aquela idade. Incluiu Para Lennon e McCartney, obra dos seus dezoito.

Fiquei pensando no que eu fazia aos vinte. Lembrei: esbravejava no comício da Candelária.

Agora, como antes, a cartolagem política tenta murchar a bola das Diretas. Seriam ''os ratos mortos na praça do mercado'', de O trem de doido? No Circo Voador, não faltaram toques para quem tenta injetar plaquetas de esperança na desesperança renitente. Quase sempre da lavra dos letristas Ronaldo Bastos e Márcio Borges, os grandes parceiros de Lô. Ronaldo tinha 24 anos em 1972. Márcio, irmão de Lô, 26. Eles cultivam a palavra ''estrada'', assídua em suas canções. Como comentário acidental à história, cantarolou-se ''a chama não tem pavio'', verso de Clube da Esquina nº 2, música gravada sem letra na primeira versão.

Ok, o Circo Voador não é o Brasil. Mas existe algum lugar em que a vontade de eleger _já_ o presidente não seja ultramajoritária?

Lô Borges cantou Canção Postal: ''Quando você ouvir/ Esta canção que eu fiz/ Não esqueça de sonhar…''.

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Cracolândia: O dono da pistola de um nazista me deu o manual de eugenia
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Mário Magalhães

 

Em setembro do ano passado, os necrológios de Wilson Leite Passos informaram que o homem morto aos 89 anos tinha uma pistola que pertencera a um oficial alemão nazista. A confidência do antigo vereador e deputado havia sido feita a mim, no aniversário de vinte anos da morte de Nelson Rodrigues.

Naqueles idos do ano 2000, Leite Passos me recebeu para uma entrevista em seu gabinete na Câmara Municipal do Rio, que funciona no Palácio Pedro Ernesto. O prédio tem pinta de neoclássico, mas sua arquitetura é classificada como estilo eclético. Os cariocas mais velhos o chamam de Gaiola de Ouro.

Há 60 anos, no Teatro Municipal vizinho à gaiola, Leite Passos deu um piti na estreia de Perdoa-me por me traíres, peça que se tornaria um clássico rodriguiano. Esgoelou-se, conforme sua memória: “É um absurdo ceder o teatro para um espetáculo com cenas que ofendem o decoro, a boa linguagem!”

No auge do quiproquó de junho de 1957, o vereador pudico desferiu um soco num espectador que dele divergiu. O senhor abatido voou sobre três cadeiras, a confiar no depoimento do agressor. Ao cair, viu na cintura de Leite Passos uma pistola. Era uma Walther modelo PP, calibre 7.65. Fabricação alemã. O agredido se desesperou ao supor que o dono da arma dispararia. Não disparou.

Ao recordar o entrevero, o vereador abriu um sorriso e me disse que a arma havia sido de um oficial nazista que combatera na guerra. Jactou-se: “Deve ter matado muito russo, muito comunista”. Esse episódio eu já contei aqui. O que não contei: antes de partir, ganhei de presente o livro Por que sou eugenista: 20 anos de campanha eugênica: 1917-1937.

*

O autor da publicação lançada em 1937 é o médico Renato Kehl (1889-1974). Ele autografou o exemplar de Leite Passos, tratado por “colega”. Na virada do século, o vereador encomendaria uma edição fac-similar de 112 páginas, em formato de bolso. Foi a relíquia histórica que eu levei.

Renato Kehl presidiu a Comissão Central Brasileira de Eugenia, fundada em 1931. Descrevia eugenia como “a ciência do aperfeiçoamento físico, psíquico e mental do gênero humano, tendo em conta as disposições hereditárias da semente e as medidas que a beneficiem através das gerações”.

Palavras frias para ideais incandescentes. A eugenia era uma receita de seleção e aprimoramento genéticos que não foi criada, mas adotada pelo nazismo assim que empalmou o poder. Não se tratava de higiene, e sim de purificação da raça. A batalha pela eugenia foi uma das razões de viver de Wilson Leite Passos.

Apanho o livrinho na estante e perambulo por suas lições. É um manual de difusão de programas e valores: “Nós, os eugenistas, queremos que de idade em idade cada geração seja superior à geração que a precedeu”, anuncia Kehl. Até aí, tudo bem. Mas o propagandista emenda: os eugenistas agem “na faina de implantar o grande ideal da regeneração das raças”. Regeneração?

O autor se entusiasmou com as ações do governo de Hitler em saúde e educação, mencionadas como exemplo a reeditar no Brasil. Tudo em nome do “alto e nobre desígnio de melhorar as raças”. O Holocausto ainda era futuro.

Leite Passos sublinhou duas frases: “Um povo se estiola e degenera quando, no seu seio, os tipos inferiores têm mais filhos do que os capazes e bem dotados”. O itálico é do original.

A outra: “Prejudicando este crivo joeireiro do gênero humano, transtornou-se o equilíbrio físico e psíquico; a balança pende cada vez mais para o lado em que se acumulam os medíocres, os velhacos, os degenerados, os criminosos”.

Ensinou: “Contra esses elementos de nada valem sanções, conforme demonstram a ciência e a experiência; de nada vale a educação, porque eles não estão à altura de sofrer sua influência benéfica”.

Afligiu-se: “A proliferação maior dos indivíduos inferiores e incapazes contrasta, dolorosamente, com a crescente limitação dos indivíduos fortes, inteligentes e produtivos”.

Pontificou: “Não existem raças puras, mas ninguém poderá, de boa mente, negar que existem raças relativamente puras e justamente ciosas desta relativa pureza étnica”.

Rejeitou a mestiçagem, no país habitado por índios, negros, brancos…: “Pelo fato de as raças não serem integralmente puras, não se deve inferir que não existam inconvenientes nas misturas heterogênicas”.

Teimou: “Contra a mestiçagem no grande sentido, existem provas de ordem científica que não inutilizam com simples palavras, venham de onde vierem”.

Recomendou “evitar casamento com pessoa de classe inferior e, sobretudo, com indivíduos de raça diferente e com mestiços das primeiras gerações. Está provado que tais casamentos são disgênicos, dando origem a tipos inferiores física, psíquica e moralmente”.

Propôs o que denominou “filantropia seletiva”: “Sem abandonar os medíocres, os doentes, os infelizes, impõe-se à sociedade orientar a filantropia no sentido eugênico de amparar os elementos produtivos e, sobretudo, os tipos superiores da coletividade, quer se dediquem a trabalhos manuais, quer aos intelectuais”.

Aconselhou a esterilização até de miseráveis: “É indicada em casos especiais de doença e de miséria, devendo ser aplicada, compulsoriamente, a certos alienados e criminosos”.

A imigração, como hoje, incomodava: “Todo o esforço da política imigratória deve tender para incentivar o afluxo de povos com afinidades de raça e de etnias compatíveis, de elementos, em suma, que venham elevar o índice eugênico da população nacional”.

E iluminou o caminho para a campanha eugênica prosperar. “Para a vitória dos ideais eugênicos faz-se mister a conquista da opinião pública, a começar pelas altas camadas da sociedade e consequente formação de sólida consciência eugênica”.

Ao reler a ladainha racista e ignorante, impressa oito décadas atrás, penso nas imagens atuais de perseguição a dependentes químicos nas cracolândias do Brasil, em particular a de São Paulo. “Indivíduos inferiores”, diagnosticariam os eugenistas.

Quando alguém, contrariado com quem pede mais saúde e menos repressão, manda “levar para casa” os dependentes, confirmo, como muita gente, a suspeita: as ideias de Renato Kehl e Wilson Leite Passos não morreram. Têm herdeiros.

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Triste país onde depredação é escândalo, mas massacre de dez posseiros, não
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Mário Magalhães

Dez posseiros foram mortos ontem de manhã numa ação de policiais militares e civis no Pará. Na fazenda Santa Lúcia, na cidade de Pau D'Arco, não houve conflito ou confronto, os substantivos que buscam disfarçar os fatos e edulcorar a história. De um lado, o dos agricultores, dez perderam a vida. Do outro, não se contou morto ou ferido. Logo, inexistiu choque de forças simétricas. Ocorreu um massacre. Ou chacina.

A crônica do extermínio de lavradores naquele Estado ganha mais um capítulo. Em abril de 1996, na curva do S da rodovia PA-150, PMs fuzilaram 19 manifestantes. O episódio ficou conhecido como massacre de Eldorado do Carajás.

Os nove homens e uma mulher assassinados ontem receberam comedida atenção do noticiário e dos brasileiros. A covardia não provocou escândalo, indignação, queixas inflamadas. A não ser as escassas vozes que teimam em não reconhecer como natural o que não é.

Os brados de cólera condenaram a depredação de prédios públicos em Brasília. E seus depredadores, que compuseram parte diminuta da multidão contada em dezenas de milhares que protestou contra Michel Temer e reivindicou a antecipação da eleição presidencial direta.

Antes do ataque aos edifícios de ministérios e do fogo colocado nas bicicletas do Itaú, os manifestantes foram fustigados por cavalaria. Mais tarde, um policial que não estava acuado disparou com arma na direção de quem estava desarmado ou ao menos não atirava.

Temer convocou as Forças Armadas para a segurança na capital. Para além da controvérsia sobre a constitucionalidade do recurso, o governo agonizante pretendeu dar demonstração de poder. E da capacidade de intimidar. Tais propósitos são evidentes como a fumaça que enevoou a esplanada brasiliense. O pretexto para apelar às tropas é a defesa do patrimônio público.

Na boca de outros, faria sentido. Mas não na da administração cujo zelo pela coisa pública é o que é. O nonsense parece indicar uma tendência nacional: quanto mais ladrão de dinheiro público o sujeito é, mais ele se esgoela em defesa do patrimônio público. A equação não se aplica a todos, pois os sinceros sobrevivem. Porém, somos mesmo o país da hipocrisia.

Essa constatação não implica endossar os danos ao patrimônio dos cidadãos, que acabarão por pagar a conta. Mas ajuda a compreender o contexto da radicalização. Quem é mais vândalo: o indivíduo que atira uma pedra em vidraça de ministério ou um governante que combina propina de 500 mil reais por semana, a ser embolsada durante 30 anos?

Os sermões contra a corrupção se sucedem, mas ela permanece. Aparentemente se ampliou nos governos FHC, Lula, Dilma e Temer. A roubalheira só dos anos 1990 para cá _a gatunagem existia antes, também na ditadura_ permitiria consertar alguns milhões de vezes o estrago da quarta-feira.

Os vândalos de ontem são dentes de leite em comparação com a corja que vandaliza o Brasil, as instituições em que a democracia deveria prevalecer, os direitos dos mais pobres, as conquistas alcançadas com suor pelos trabalhadores, os programas que impedem a morte por fome, as iniciativas que deixam menos jovens longe da escola e da universidade, os planos de preservação ambiental.

A bronca, como sempre, desvia os olhos da violência e da crueldade dos mais fortes.

O 24 de maio de 2017 não foi o primeiro dia em que a perda de vidas humanas foi desprezada (ou quase), em contraste com a histeria causada pela depredação de prédios.

Nossa coleção de infâmias é vasta.

Triste Brasil.

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