Blog do Mario Magalhaes

Cracolândia: O dono da pistola de um nazista me deu o manual de eugenia

Mário Magalhães

 

Em setembro do ano passado, os necrológios de Wilson Leite Passos informaram que o homem morto aos 89 anos tinha uma pistola que pertencera a um oficial alemão nazista. A confidência do antigo vereador e deputado havia sido feita a mim, no aniversário de vinte anos da morte de Nelson Rodrigues.

Naqueles idos do ano 2000, Leite Passos me recebeu para uma entrevista em seu gabinete na Câmara Municipal do Rio, que funciona no Palácio Pedro Ernesto. O prédio tem pinta de neoclássico, mas sua arquitetura é classificada como estilo eclético. Os cariocas mais velhos o chamam de Gaiola de Ouro.

Há 60 anos, no Teatro Municipal vizinho à gaiola, Leite Passos deu um piti na estreia de Perdoa-me por me traíres, peça que se tornaria um clássico rodriguiano. Esgoelou-se, conforme sua memória: “É um absurdo ceder o teatro para um espetáculo com cenas que ofendem o decoro, a boa linguagem!”

No auge do quiproquó de junho de 1957, o vereador pudico desferiu um soco num espectador que dele divergiu. O senhor abatido voou sobre três cadeiras, a confiar no depoimento do agressor. Ao cair, viu na cintura de Leite Passos uma pistola. Era uma Walther modelo PP, calibre 7.65. Fabricação alemã. O agredido se desesperou ao supor que o dono da arma dispararia. Não disparou.

Ao recordar o entrevero, o vereador abriu um sorriso e me disse que a arma havia sido de um oficial nazista que combatera na guerra. Jactou-se: “Deve ter matado muito russo, muito comunista”. Esse episódio eu já contei aqui. O que não contei: antes de partir, ganhei de presente o livro Por que sou eugenista: 20 anos de campanha eugênica: 1917-1937.

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O autor da publicação lançada em 1937 é o médico Renato Kehl (1889-1974). Ele autografou o exemplar de Leite Passos, tratado por “colega”. Na virada do século, o vereador encomendaria uma edição fac-similar de 112 páginas, em formato de bolso. Foi a relíquia histórica que eu levei.

Renato Kehl presidiu a Comissão Central Brasileira de Eugenia, fundada em 1931. Descrevia eugenia como “a ciência do aperfeiçoamento físico, psíquico e mental do gênero humano, tendo em conta as disposições hereditárias da semente e as medidas que a beneficiem através das gerações”.

Palavras frias para ideais incandescentes. A eugenia era uma receita de seleção e aprimoramento genéticos que não foi criada, mas adotada pelo nazismo assim que empalmou o poder. Não se tratava de higiene, e sim de purificação da raça. A batalha pela eugenia foi uma das razões de viver de Wilson Leite Passos.

Apanho o livrinho na estante e perambulo por suas lições. É um manual de difusão de programas e valores: “Nós, os eugenistas, queremos que de idade em idade cada geração seja superior à geração que a precedeu”, anuncia Kehl. Até aí, tudo bem. Mas o propagandista emenda: os eugenistas agem “na faina de implantar o grande ideal da regeneração das raças”. Regeneração?

O autor se entusiasmou com as ações do governo de Hitler em saúde e educação, mencionadas como exemplo a reeditar no Brasil. Tudo em nome do “alto e nobre desígnio de melhorar as raças”. O Holocausto ainda era futuro.

Leite Passos sublinhou duas frases: “Um povo se estiola e degenera quando, no seu seio, os tipos inferiores têm mais filhos do que os capazes e bem dotados”. O itálico é do original.

A outra: “Prejudicando este crivo joeireiro do gênero humano, transtornou-se o equilíbrio físico e psíquico; a balança pende cada vez mais para o lado em que se acumulam os medíocres, os velhacos, os degenerados, os criminosos”.

Ensinou: “Contra esses elementos de nada valem sanções, conforme demonstram a ciência e a experiência; de nada vale a educação, porque eles não estão à altura de sofrer sua influência benéfica”.

Afligiu-se: “A proliferação maior dos indivíduos inferiores e incapazes contrasta, dolorosamente, com a crescente limitação dos indivíduos fortes, inteligentes e produtivos”.

Pontificou: “Não existem raças puras, mas ninguém poderá, de boa mente, negar que existem raças relativamente puras e justamente ciosas desta relativa pureza étnica”.

Rejeitou a mestiçagem, no país habitado por índios, negros, brancos…: “Pelo fato de as raças não serem integralmente puras, não se deve inferir que não existam inconvenientes nas misturas heterogênicas”.

Teimou: “Contra a mestiçagem no grande sentido, existem provas de ordem científica que não inutilizam com simples palavras, venham de onde vierem”.

Recomendou “evitar casamento com pessoa de classe inferior e, sobretudo, com indivíduos de raça diferente e com mestiços das primeiras gerações. Está provado que tais casamentos são disgênicos, dando origem a tipos inferiores física, psíquica e moralmente”.

Propôs o que denominou “filantropia seletiva”: “Sem abandonar os medíocres, os doentes, os infelizes, impõe-se à sociedade orientar a filantropia no sentido eugênico de amparar os elementos produtivos e, sobretudo, os tipos superiores da coletividade, quer se dediquem a trabalhos manuais, quer aos intelectuais”.

Aconselhou a esterilização até de miseráveis: “É indicada em casos especiais de doença e de miséria, devendo ser aplicada, compulsoriamente, a certos alienados e criminosos”.

A imigração, como hoje, incomodava: “Todo o esforço da política imigratória deve tender para incentivar o afluxo de povos com afinidades de raça e de etnias compatíveis, de elementos, em suma, que venham elevar o índice eugênico da população nacional”.

E iluminou o caminho para a campanha eugênica prosperar. “Para a vitória dos ideais eugênicos faz-se mister a conquista da opinião pública, a começar pelas altas camadas da sociedade e consequente formação de sólida consciência eugênica”.

Ao reler a ladainha racista e ignorante, impressa oito décadas atrás, penso nas imagens atuais de perseguição a dependentes químicos nas cracolândias do Brasil, em particular a de São Paulo. “Indivíduos inferiores”, diagnosticariam os eugenistas.

Quando alguém, contrariado com quem pede mais saúde e menos repressão, manda “levar para casa” os dependentes, confirmo, como muita gente, a suspeita: as ideias de Renato Kehl e Wilson Leite Passos não morreram. Têm herdeiros.

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