Blog do Mario Magalhaes

Palavras malditas (24): marca gol

Mário Magalhães

Máquina de escrever de meados dos anos 1960 – Reprodução “The New York Times''

 

A fratura de um ossinho do pé direito do Gabriel Jesus e a seca do Neymar têm impedido a goleada de cacófatos noticiando que o craque do Manchester City ou o do Barcelona “marca gol”. Basta ler alto as duas palavras para reparar, se ainda não reparou, na nova palavra criada com os sons da última sílaba de “marca” e da primeira e única de “gol”.

Como ensina o Houaiss, cacófato é o “som feio, desagradável, impróprio ou com sentido equívoco, produzido pela união dos sons de duas ou mais palavras vizinhas”. E “palavra ou expressão obscena, ridícula ou fora de contexto, formada pela sílaba final de uma palavra e pela inicial da seguinte”.

Mais ou menos manjados, esses encontros indesejáveis sempre estão à espreita. “Marca gol” é vexame costumeiro, como “boca dela”. Outro dia escrevi que alguém “havia dado”, e o tropeço vulgar não escapou ao olhar atento do jornalista e escritor Ronaldo Bressane.

Há cacófato proposital, que busca a graça. Feito o de um sucesso dos Originais do Samba, com os versos “Estou apaixonado, apaixonado estou/ Pela dona do primeiro andar/ Pela dona do primeiro andar”. O mote é a peladona.

Há casos em que, flagrados no vacilo, escribas alegam que tiveram a intenção de cometer o que habitualmente é interpretado como crime contra a língua portuguesa. Socorrem-se de um soneto do Camões, que a seu modo autorizaria os cacófatos: “Alma minha gentil, que te partiste…”.

Se a “maminha” da lavra do Camões é controversa, há construções carentes de defensores, como “por cada”. E outras que incomodam poucos e talvez sejam absolvidas pelos gramáticos. “Por razão” me parece mau gosto, por motivo óbvio. “Nunca quis” evoca fruta, uma das minhas prediletas.

No jornalismo, era mais fácil evitar cacófatos quando a edição era necessariamente processo coletivo, com o texto lido por mais de um profissional antes de ser publicado. Hoje é comum o autor colocar no ar, sem nenhum crivo alheio, o que escreveu. Revisores, ainda bem, sobrevivem em editoras de livros. Nas redações, são espécie em extinção ou extinta, ao lado dos laboratoristas fotográficos.

Além dos “marca gol” da vida, existe outra bobeada que aflige quem vive de escrever: a falta ou excesso de letra que muda, e põe mudar, o sentido da palavra. Tal engano, outrora, era erro de composição. Agora, é de digitação.

Muito tempo atrás, a Folha publicou um “Erramos” antológico informando que o sobrenome do maestro Eleazar de Carvalho se escrevia assim. Na edição corrigida, sumira o vê. Pior foi quando, anos mais tarde, a mancada se repetiu. Só que o personagem era uma empresária. Eu era então o ombudsman do jornal, e não esqueço a observação de uma leitora: acho que vocês quiseram mandar um recado malicioso…

Perigo maior é a rua Bulhões Carvalho, na meiuca entre Copacabana e Ipanema. Maior porque são dois. Não à toa a rua é conhecida como quase-quase.

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