No Maracanã alagado, Flamengo 2 x 1 Vasco
Mário Magalhães
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Belíssima balada dos anos 1950, “You belong to me” é cantada abaixo por cinco tremendos gogós.
A seleção é uma pequena amostra das numerosas versões da composição de Chilton Price, Pee Wee King e Redd Stewart
A californiana Jo Satfford foi um dos pioneiros a estourar nas paradas com a música que se tornaria um clássico. Mais tarde vieram Dean Martin, Bob Dylan, Rod Stewart e Carla Bruni.
Se eu fosse obrigado a escolher, ficaria com interpretação do Dean Martin.
Se isso deixasse a mulher do Sarkozy chateada, então eu escolheria a dela.
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Mário Magalhães
A primeira vez que eu ouvi falar em urban sketchers foi por meio da amiga Karina Kuschnir, no blog dela, que é artista plástica, antropóloga, professora universitária, jornalista, cronista e um monte de coisas mais.
O urban sketcher é um desenhista que, na rua ou dentro de casa, desenha ou rascunha o que observa. O pessoal aqui no Brasil trata seus trabalhos como “desenhos de locação”.
A Karina publicou seus 12 desenhos reproduzidos abaixo no post “Um caderno não é só um caderno”. Ela conta que a maioria foi feita com canetinhas de nanquim descartáveis.
Os desenhos dos urban sketchers se assemelham a crônicas em imagens.
Provocam, evocam, olham.
O kit conjuntivite da Karina lembra que parece haver uma onda dessa praga aqui no Rio, muita gente atingida.
E que o quilo no restaurante Ekko’s, em Botafogo, já beira os 100 reais.
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Mário Magalhães
Gugu e Bruno – Reprodução/TV Record
Bombou em audiência a entrevista do goleiro Bruno ao programa “Gugu”, anteontem, na TV Record.
Já em verdade…
O hoje presidiário afirmou: “Você pega o processo, e lá não mostra uma prova contundente de que sou o mandante” (leia aqui).
Existem, de fato, presos encarcerados injustamente e cidadãos injustamente em liberdade. A Justiça nem sempre faz justiça.
No caso de Bruno, fez, ao condená-lo por homicídio da modelo Eliza Samudio.
Para quem tiver alguma dúvida sobre a morte de 2010, um livro esclarece a história. Intitula-se “Indefensável: O goleiro Bruno e a história da morte de Eliza Samudio” e foi lançado em meados do ano passado pela editora Record. Os autores são os jornalistas Leslie Leitão, Paula Sarapu e Paulo Carvalho.
Reproduzo abaixo a resenha que o blog publicou em junho de 2014 sobre o livro.
Tantos anos depois, Bruno continua mentindo.
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Livro conta trama macabra de Bruno e parceiros na morte de Eliza Samudio
“Puta que pariu!
É o melhor
goleiro do Brasil:
Bruno!”
Assim gritaram _gritamos_ os torcedores do Flamengo, reverenciando o goleiro do time campeão brasileiro de 2009. Já o aclamávamos dessa maneira fazia tempo.
Seis meses depois da conquista, Bruno foi um dos protagonistas da trama macabra que resultou em sequestro, assassinato e ocultação do cadáver da modelo Eliza Samudio.
De 2010 para cá, o campeão pegou no gol em peladas do presídio, onde também deu duro nos serviços da lavanderia. Condenado, continua em cana.
Um dos mais rumorosos episódios da crônica policial brasileira é reconstituído em minúcias no livro “Indefensável: O goleiro Bruno e a história da morte de Eliza Samudio” (Record), escrito pelos jornalistas Leslie Leitão, Paula Sarapu e Paulo Carvalho.
O lançamento no Rio ocorre nesta segunda-feira, a partir das 19h, na loja de Botafogo da Livraria da Travessa.
Li, de um fôlego só, o inventário de atrocidades. Os autores são repórteres que, por jornais concorrentes, cobriram o caso.
Por aversão a pitadas sádicas e temperos sensacionalistas de certo noticiário mundo-cão, não acompanhei com atenção os episódios sinistros da novela midiática deflagrada pelo crime.
Para quem, como eu, sabia pouco do ocorrido, o livro-reportagem permite entender início, meio e fim. Mas quem seguiu a investigação policial e o julgamento lance a lance também conhecerá informações inéditas.
Sabe aquele barraco que uma noiva formosa do Adriano aprontou numa favela do complexo da Penha, ao descobrir que o então atacante rubro-negro e colegas seus de time lá estavam na gandaia? Pois os jogadores do Flamengo presentes participaram, sem saber, de uma festa de ladrões que comemoravam o assalto de um carro-forte que lhes rendeu R$ 600 mil.
Às vésperas do julgamento de Bola, o exterminador de aluguel que asfixiou Eliza até a morte, pistoleiros tentaram executar o promotor. O representante do Ministério Público ocultou a tentativa de homicídio, receoso de que os jurados se sentissem intimidados e absolvessem o matador da modelo.
Para quem aterrissou ontem na Terra, passou-se o seguinte: Bruno, que ganhava cerca de R$ 250 mil mensais entre salário e patrocínio, não queria pagar pensão de R$ 3.500 ao filho que supostamente tivera com Eliza. O supostamente decorre da dúvida que ela própria nutria sobre a identidade do pai do bebê, como veio a se constatar mais tarde, por antigas mensagens na internet.
Como o goleiro resolveu a cobrança “inconveniente”, conforme concluíram a polícia, a promotoria e, por meio do tribunal do júri, a Justiça? Planejando com seu dileto amigo Macarrão _e ordenando_ a morte da garota.
O corpo de Eliza jamais foi encontrado. É mérito do livro não cravar, por ausência de dados conclusivos, o paradeiro do cadáver. Há pelo menos duas hipóteses: foi jogado a cães rottweilers, que devoraram boa parte, e o que restou foi atirado num lago ou concretado; talvez tenha sido queimado numa fogueira de pneus.
O crime transformou o caráter de uma série de eventos que, de atos privados, passaram a ter relevância pública.
Os autores narram que Eliza engravidou numa suruba na casa do goleiro Paulo Victor, esse mesmo ainda hoje no Flamengo, e então reserva de Bruno. Que ela foi atriz em filmes pornô. E que se relacionava com outros boleiros. Em nenhum momento ocorre uma “segunda morte” moral ou editorial da modelo, que não só não é desclassificada, como é nitidamente preservada.
Durante certo tempo, cultivou-se dúvida sobre a morte de Eliza, que teria se mudado para o exterior, de acordo com as plantações de advogados dos réus. O processo judicial, recontado no livro, comprova que a garota foi mesmo assassinada, e até certidão de óbito em seu nome foi emitida. Bruno e Macarrão reconheceram o homicídio. As incertezas se restringem ao destino do corpo e à eventual participação de outros algozes.
Seguem algumas informações capturadas nas 265 páginas do livro.
Em 2010, fortalecidos pelo título nacional, os jogadores do Flamengo impuseram o fim dos treinos matinais, para que alguns deles conseguissem esticar madrugada adentro as farras. Curvada à cultura do chinelinho, de treinamentos pouco exigentes, a equipe degringolou.
Antes da final do Campeonato Estadual de 2009, Bruno tentou jogar com uma camisa falsificada do clube, com a figura do Demônio da Tazmania, personagem da Warner, empresa com a qual o Flamengo não mantinha contrato. O goleiro teimava em vestir uniforme personalizado. Para aparecer diferente, acabou trajando a camisa de treino.
Como capitão, Bruno tentou favorecer chapas seus no clube, na divisão do bicho pelo Brasileiro de 2009. O médico José Luís Runco, também da seleção, reagiu duramente, e acabou selada nova fórmula de distribuição do dinheiro.
De tão perdulário, Bruno chegou a pagar compra de roupas com um cheque no valor de R$ 107 mil.
Influente na equipe, o goleiro administrou conflitos do coração, como quando a cantora de funk Perlla, antes namorada do lateral Léo Moura, passou a conhecer melhor o zagueiro Álvaro.
Numerosas versões de Bruno e outros acusados e condenados são confrontadas aos históricos de telefonemas, localização dos interlocutores com base no rastreamento de celulares e registros de radares de ruas e rodovias. Documentalmente, as alegações do jogador e seus funcionários e amigos não se sustentam.
Quando Eliza sumiu, Bruno disse depois de um treino: “Ainda vou rir disso tudo”. Estava certo de que a impunidade o protegia. Por sorte, enganou-se.
Mário Magalhães
O deputado federal Cabo Daciolo defendeu nesta quinta-feira os policiais militares indiciados pela Polícia Civil e acusados pelo Ministério Público de serem os responsáveis pela tortura seguida de morte do pedreiro Amarildo de Souza. Daciolo afirmou que os PMs, muitos dos quais estão presos, “não cometeram” o crime. “Juntos somos fortes, e Deus está no controle!”.
O pronunciamento na Câmara não surpreenderia se partisse de um parlamentar do PP, como o antigo capitão do Exército Jair Bolsonaro. Mas Daciolo, cabo do Corpo de Bombeiros, é representante do Partido Socialismo e Liberdade.
Isso mesmo, o PSOL de Luciana Genro, Marcelo Freixo, Chico Alencar, Jean Wyllys, Ivan Valente e outros militantes sinceros da causa dos direitos humanos.
Daciolo já havia tirado fotinho com Bolsonaro.
Pregado a nomeação de um general para encabeçar o Ministério da Defesa, no lugar de um civil.
E sugerido mudar, no parágrafo único do artigo 1º da Constituição, a assertiva “todo o poder emana do povo”. Entraria “todo o poder emana de Deus”.
Em todos os casos, o PSOL reprovou Daciolo, mas foi leniente com ações que contrariam o programa da agremiação e os princípios de um Estado laico e democrático.
Agora, o deputado eleito no Estado do Rio saiu em defesa de policiais contra quem existe uma infinidade de indícios e provas de terem levado Amarildo à morte, em dependências, na Rocinha, da dita Unidade de Polícia Pacificadora.
Amarildo está desaparecido desde 14 de julho de 2013.
Eis o que Daciolo disse em plenário: “Domingo, vou estar em Bangu 9, no GEP — Grupo de Escolta Penal e no BEP — Batalhão Especial Prisional. Eu estou falando do caso Amarildo. Eu tenho 25 militares respondendo por um crime que não cometeram. Doze desses estão presos e um faleceu no dia 13 em decorrência de problemas cardíacos adquiridos na prisão. Era chefe de família e tinha um filho de 7 meses, uma criança. Quero deixar bem claro que vamos solicitar a presença de representantes da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Juntos somos fortes, e Deus está no controle!”.
Ontem à noite, a executiva da seção fluminense do PSOL exigiu a expulsão do deputado.
Até agora, a rigor, o partido passou a mão na cabeça do representante que desta vez apadrinha os algozes de Amarildo.
Curiosidade: quais são os critérios do PSOL para o ingresso de filiados?
Será que alguém confundiu o vermelho da camisa dos Bombeiros do Rio com o tradicional encarnado das bandeiras de esquerda?
P.S.: O presidente nacional do PSOL, Luiz Araújo, divulgou nota afirmando que as declarações de Daciolo sobre o caso Amarildo “representam uma afronta às posições” do partido. Mais: o deputado foi convocado a “prestar esclarecimentos à Executiva Nacional do PSOL, a partir do que tomaremos as medidas pertinentes à luz de nosso estatuto”. A íntegra da nota pode ser lida clicando aqui.
Mário Magalhães
Por Benett, no Facebook
Mais de um mês atrás, em 11 de fevereiro, o blog concluía assim uma análise das anunciadas manifestações contra o governo previstas para dali a mais de 30 dias: “Se uma multidão aparecer em 15 de março, o poder do presidente da Câmara, Eduardo Cunha, ficará ainda maior. E chantagens contra Dilma aumentarão” (para ler a íntegra, basta clicar aqui).
Os protestos foram pujantes, e o prognóstico sobre as chantagens se confirmou, mas não teve nada de original ou brilhante. Era óbvio o que aconteceria, a não ser para quem vive entre nuvens de fantasia.
Nesta quarta-feira, enquanto Messi e Hart honravam o futebol no jogo entre Barcelona e Manchester City, o PMDB poderia ter informado discretamente a Dilma Rousseff que romperia com sua administração caso o ministro Cid Gomes não fosse demitido.
Mas o ultimato foi feito nos microfones, com Eduardo Cunha na condição de arauto mais tonitruante.
Chantageada em público, a presidente submeteu-se e decidiu colocar na rua o titular da Educação, que se antecipou e saiu por conta própria, tornando-se Cid, o breve.
Esqueçamos por um momento se há mesmo centenas de congressistas achacadores, como disse o ex-ministro (para o velho Lula, eram picaretas); se a pregação dos atos do domingo passado foram boas ou ruins para a democracia; e outros aspectos também relevantes e decisivos da conjuntura.
O fato mais impressionante do atual cenário foi a humilhação a que Dilma Rousseff se submeteu.
O tucano Aloysio Nunes Ferreira Filho falou em sangrar a presidente, desgastando-a pouco a pouco. O PMDB ontem sangrou-a com requintes sádicos. Para empregar outra imagem vulgar e estúpida, na base do dá ou desce.
Quando o presidente da Câmara ameaçou votar um projeto contra o qual o governo se pronuncia, beneficiando aposentadorias com reajustes maiores, o conteúdo implícito era outro: se a petista não se submeter ao PMDB, mais propriamente ao PMDB de Eduardo Cunha, o deputado pode aceitar que corra um processo que poderia resultar no impeachment da presidente constitucional eleita pela maioria dos brasileiros em outubro.
Dilma está acossada nas ruas e abandonada pela base social que a sufragou: no Datafolha, seu índice de ótimo/bom despencou para 13%, contra 62% de ruim/péssimo. Diante das chantagens, curva-se.
Conhecendo os valores, digamos pragmáticos, que movem o PMDB, é difícil imaginar o partido apostando hoje no impeachment. Se Dilma lhe dá o que exige, para que mudar?
Na linha de sucessão, a Presidência seria assumida diretamente por um peemedebista, o vice Michel Temer. Mas quem garante a Eduardo Cunha que Temer, mais próximo de Renan Calheiros nas intrigas partidárias, seria mais generoso do que a governante enfraquecida que cede a cada discurso do presidente da Câmara?
Se o PMDB rompesse, Dilma teria de recorrer às ruas. Mas quantos eleitores da presidente estariam dispostos a respaldá-la depois que ela no segundo governo implantou uma política econômica que sacrifica os mais pobres e protege os ricos, fazendo o que na campanha prometeu não fazer?
Além do problema maior, estratégico, o de governar contra quem a elegeu, Dilma padece dos desvarios táticos do governo. Como, sem ter a garantia de que Cid Gomes não confrontaria Eduardo Cunha e o PMDB na Câmara, os executivos do Planalto lançaram no mesmo dia um pacote anticorrupção?
De novo, aqui não discuto se as medidas são positivas ou negativas, mas a inocência de líder de grêmio estudantil de quem agendou um evento para fazer barulho, e no final soltou um estalinho, em comparação com o estrondo da saída do ex-governador do Ceará.
Dilma é a presidente legítima, legal, constitucional. Mas hoje parece nas mãos do PMDB, que aparenta mandar muito mais do que o PT.
Se o PMDB romper e apostar no impeachment, a situação da presidente ficará crítica.
Mário Magalhães
Dá vontade de enquadrar a sentença e pendurar na parede.
E de convidar a juíza Elaine Faria Evaristo, da 20ª Vara Cível de São Paulo, a correr o Brasil dando aulas em faculdades de história, jornalismo e, sobretudo, direito.
Suas lições são lições de cidadania.
Com sua decisão de dias atrás, prevaleceram a democracia e a prerrogativa constitucional de informar e ser informado.
E perderam a censura, o obscurantismo e o ranço de ditadura.
A magistrada julgou improcedente a ação de uma ex-funcionária do magnata das comunicações Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Mello (1892-1968) contra a editora Companhia das Letras.
Helena Borges da Rocha, arrumadeira na casa do dono dos Diários Associados, quis não apenas (sic) 30% da arrecadação total da venda da biografia “Chatô: O rei do Brasil” e outros caraminguás por danos morais: reivindicou a “destruição de todos os exemplares da obra” e a proibição de imprimir uma só cópia.
(Alguém aí falou em fogueira de livros?)
Ela recorreu à Justiça porque não gostou do modo como figura na história de Chateaubriand e por aparecer em uma fotografia.
Na sentença, a juíza Evaristo, mais do que decidir, ensinou. Explicou por que a obra-prima de Fernando Morais é uma contribuição ao conhecimento do passado e por que o conhecimento do passado é um direito dos cidadãos.
Ela escreveu: “Existe um legítimo interesse público de natureza cultural em conhecer profundamente a vida de pessoas públicas e notórias, tal como foi Assis Chateaubriand. Daí porque a publicação de sua biografia atende ao interesse público. E qualquer biografia que seja sempre irá expor, em algum ponto, a vida de terceiros, que atuaram como coadjuvantes na vida do biografado. Não consigo sequer imaginar uma biografia isenta de qualquer narrativa que resvalasse na vida de terceiros. É evidente que muitas pessoas, tanto públicas quanto anônimas, participaram da vida de Assis Chateaubriand. E exatamente nesse ponto em que dela participaram, parece-me legítima certa exposição de sua vida e imagem”.
Como assinalou Fernando Morais no Facebook, “não se trata de uma vitória do autor, do advogado ou da editora. A sentença da juíza diz respeito a um direito da sociedade: o de se informar, sem qualquer forma de censura, sobre a vida de pessoas que são ou foram importantes para a compreensão do Brasil”.
Desta vez, a censura, que incensa a censura prévia para biografias, perdeu.
“Chatô” é uma biografia, salve, salve, não autorizada, não chapa-branca.
Abaixo, o blog compartilha o comentário do autor de “Chatô” e a sentença que consagrou as luzes, contra as trevas.
P.S. transparência: com 20 e poucos anos de idade, ou há quase três décadas, este blogueiro teve a honra de trabalhar para Fernando Morais na apuração de “Chatô”.
Mário Magalhães
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Luiz Schwarcz, o Zico dos editores brasileiros e camisa 10 da Companhia das Letras, publicou em meados de janeiro um post saboroso sobre suas leituras de férias. “O prazer me chama” trata de livros lidos por gosto, sem as obrigações do olhar rigoroso do editor a trabalho. Para saber o que o Luiz andou lendo, basta clicar aqui.
Quando ele escreveu sobre as férias, eu estava voltando das minhas, quer dizer, os dez dias que me dei de ócio neste 2015 que será, está sendo, puxado demais. O Luiz tinha ido para o Ceará, eu fui um pouco além da divisa, para Tibau, no Rio Grande do Norte, dobrando a esquina de Mossoró.
Ócio com suor: maltratei as pernas trotando na areia fofa, desencaixei a coluna correndo na areia dura, mergulhei nas águas tépidas mais sedutoras, ensinei um guri e uma guria a jogar frescobol, comi camarões recém-pescados, convivi com quem vale a pena… e acertei contas com um velho vexame: enfim, li o romance de Charles Dickens (1812-1870) que, entre suas obras, era o predileto do autor inglês.
Devo à Cosac Naify o estímulo para encarar “David Copperfield”. A edição lançada no ano passado é soberba, mais de 1.300 páginas, tradução supimpa de José Rubens Siqueira, projeto gráfico inspirado, fortuna crítica, um capricho só.
Como não sou lá dos mais encantados com a literatura da era vitoriana, foi um espanto conhecer “David Copperfield”, que é bem melhor que “Oliver Twist”. A história narrada pelo menino sofredor que se transforma no adulto íntegro e puro, em meio às vicissitudes da existência e das perdições da vida, é espetacular. Só não dá para ler de um só fôlego porque é maratona, não 400 metros rasos.
Ao dar com o capítulo 55, “Tempestade”, falei sozinho “o que é isso?”, tamanho o esplendor literário, prazer poucas vezes visto numa narrativa. Quase corri para me proteger da natureza furiosa, mais assustadora que a de efeito 3-D no cinema. Na fortuna crítica, aprendi com um ensaísta que Tolstói considerava aquele capítulo “o padrão pelo qual se deveria avaliar a boa ficção de todo o mundo”.
Está fazendo 165 anos que o romance, veiculado em capítulos, teve o último deles publicado, nos idos de 1850. Se a eternidade de um livro está para a comoção que ele provoca no leitor mais de século e meio depois, “David Copperfield” é eterno.
Por suas páginas, circulam personagens desses com que a gente vive a topar. Meu favorito é o Sr. Micawber, um tipo sempre enrolado com dinheiro e que, quanto mais se enrola, mais alto sonha. Quem nunca cruzou com um sujeito assim?
Isso que são letras com o DNA do seu tempo. Um aborto jamais é mencionado pelo nome, e está claro que uma moça se prostituiu, mas o autor não diz, dá a entender.
Mais abaixo, compartilho algumas passagens do livro.
A que discorre sobre o casamento é a quadra vitoriana em todo o seu prurido.
A da “indiferença por todas as ações e paixões da humanidade” identifica miséria existencial que ainda hoje viceja, temperada pelo cinismo.
Como o preço do livro é salgado, cada biblioteca pública do país deveria ter em suas estantes este “David Copperfield”. Eis uma boa bandeira para novas manifestações de rua.
Notei pequenas derrapadas, dessas que todas as edições têm e que podem ser corrigidas nas reimpressões. Uma delas: na página 386, a nota de pé de página trata Braguinha e João de Barro como duas pessoas. Com esses nomes se consagrou o compositor Carlos Alberto Ferreira Braga.
Vem chegando o fim do verão, e o de 2015 ficará para mim como o do imortal David Copperfield.
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“[…] Ninguém jamais poderá acreditar nesta narrativa, ao lê-la, mais do que eu acreditei ao escrevê-la”.
(Do “Prefácio à edição de 1867”)
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“- A história nunca mente, não é? – perguntou o sr. Dick com um brilho de esperança.
– Ah, não, senhor! – repliquei muito decidido. Eu era moço ingênuo e acreditava nisso.”
(Pág. 367)
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“O tempo voa na intimidade do passado.”
(Uriah Heep, pág. 551)
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“Uma demonstração de indiferença por todas as ações e paixões da humanidade não era considerada uma qualidade distinta naquele momento, acho eu, como observei ter passado a ser depois disso. Sei que está muito na moda mesmo. Já vi essa atitude exibida com tamanho sucesso que encontrei muitas ótimas damas e cavalheiros que podiam ter nascido lagartas que não faria diferença. Talvez tenha me impressionado mais naquela época porque era novidade para mim […].”
(Pág. 747)
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“Não pode haver maior disparidade no casamento do que a incompatibilidade de ideias e objetivos.”
(Sra. Strong, pág. 991)
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“Annie, meu amor, vou entrar no escritório com meu jornal, porque sem notícias sou uma pobre criatura.”
(Sra. Markleham, pág. 993)
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“Ao prestar juramentos legais, por exemplo, os depoentes parecem ter grande prazer quando chegam a diversas boas palavras em sucessão para expressar uma ideia; por exemplo, que detestam, abominam, abjuram e assim por diante; e os velhos anátemas eram pronunciados com igual prazer. Falamos da tirania das palavras, mas gostamos de tiranizá-las também; gostamos de ter um grande suprimento supérfluo de palavras à espera em grandes ocasiões; achamos que parece importante, que soa bem. E assim como não somos exigentes com o propósito de nossos criados em ocasiões oficiais, contanto que sejam vistosos e numerosos, também o sentido ou a necessidade de nossas palavras são uma consideração secundária, se elas formam um grande cortejo. E assim como indivíduos se metem em enrascada quando exibem seus criados, ou quando escravos são numerosos demais e se erguem contra seus amos, penso que posso mencionar uma nação que possui muitas grandes dificuldades, e se verá em muitas ainda maiores, por manter um elenco grande demais de palavras.”
(Pág. 1070)
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“[…] As coisas que nunca acontecem muitas vezes são tão reais para nós, em seus efeitos, quanto as que se realizam.”
(Pág. 1162)
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Mário Magalhães
Por Caco Galhardo, na “Folha”:
(O verso é do Belchior, em “Coração selvagem”.)