Blog do Mario Magalhaes

Perdeu, censura: Justiça de SP nega indenização por citação em biografia

Mário Magalhães

 

Dá vontade de enquadrar a sentença e pendurar na parede.

E de convidar a juíza Elaine Faria Evaristo, da 20ª Vara Cível de São Paulo, a correr o Brasil dando aulas em faculdades de história, jornalismo e, sobretudo, direito.

Suas lições são lições de cidadania.

Com sua decisão de dias atrás, prevaleceram a democracia e a prerrogativa constitucional de informar e ser informado.

E perderam a censura, o obscurantismo e o ranço de ditadura.

A magistrada julgou improcedente a ação de uma ex-funcionária do magnata das comunicações Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Mello (1892-1968) contra a editora Companhia das Letras.

Helena Borges da Rocha, arrumadeira na casa do dono dos Diários Associados, quis não apenas (sic) 30% da arrecadação total da venda da biografia ''Chatô: O rei do Brasil'' e outros caraminguás por danos morais: reivindicou a ''destruição de todos os exemplares da obra'' e a proibição de imprimir uma só cópia.

(Alguém aí falou em fogueira de livros?)

Ela recorreu à Justiça porque não gostou do modo como figura na história de Chateaubriand e por aparecer em uma fotografia.

Na sentença, a juíza Evaristo, mais do que decidir, ensinou. Explicou por que a obra-prima de Fernando Morais é uma contribuição ao conhecimento do passado e por que o conhecimento do passado é um direito dos cidadãos.

Ela escreveu: ''Existe um legítimo interesse público de natureza cultural em conhecer profundamente a vida de pessoas públicas e notórias, tal como foi Assis Chateaubriand. Daí porque a publicação de sua biografia atende ao interesse público. E qualquer biografia que seja sempre irá expor, em algum ponto, a vida de terceiros, que atuaram como coadjuvantes na vida do biografado. Não consigo sequer imaginar uma biografia isenta de qualquer narrativa que resvalasse na vida de terceiros. É evidente que muitas pessoas, tanto públicas quanto anônimas, participaram da vida de Assis Chateaubriand. E exatamente nesse ponto em que dela participaram, parece-me legítima certa exposição de sua vida e imagem''.

Como assinalou Fernando Morais no Facebook, ''não se trata de uma vitória do autor, do advogado ou da editora. A sentença da juíza diz respeito a um direito da sociedade: o de se informar, sem qualquer forma de censura, sobre a vida de pessoas que são ou foram importantes para a compreensão do Brasil''.

Desta vez, a censura, que incensa a censura prévia para biografias, perdeu.

''Chatô'' é uma biografia, salve, salve, não autorizada, não chapa-branca.

Abaixo, o blog compartilha o comentário do autor de ''Chatô'' e a sentença que consagrou as luzes, contra as trevas.

P.S. transparência: com 20 e poucos anos de idade, ou há quase três décadas, este blogueiro teve a honra de trabalhar para Fernando Morais na apuração de ''Chatô''.

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Por Fernando Morais
o advogado fernando lottenberg, da editora companhia das letras, acaba de obter uma importante vitória na justiça. a juíza elaine faria evaristo, titular da 20ª vara cível do tj paulista, considerou improcedente a ação movida por helena borges da rocha contra a editora por ter sido citada em meu livro “chatô, o rei do brasil”.
não se trata de uma vitória do autor, do advogado ou da editora.
a sentença da juíza diz respeito a um direito da sociedade: o de se informar, sem qualquer forma de censura, sobre a vida de pessoas que são ou foram importantes para a compreensão do brasil.
agora é torcer para que a corajosa decisão da dra. elaine faria evaristo inspire colegas seus, pelo brasil afora, que têm em mãos dezenas de ações tentando, ao arrepio da constituição, censurar biografias e livros de não ficção.
como uma das mesas do salão do livro, que começa depois de amanhã, em paris, trata exatamente do tema, vou levar uma cópia da sentença (abaixo), para distribuir entre autores e editores presentes.
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SENTENÇA
0178622-49.2010.8.26.0100Procedimento Ordinário – Indenização por Dano Moral Helena Borges da RochaEditora Schwarcz Ltda
Juiz(a) de Direito: Dra. Elaine Faria Evaristo
HELENA BORGES DA ROCHA ajuizou ação contra EDITORA SCHWARCZ LTDA., alegando que a obra “CHATÔ O REI DO BRASIL”, publicada pela ré, ofende a imagem, a honra, a boa fama e a respeitabilidade da autora, ao afirmar que esta teria sido amante do jornalista Assis Chateaubriand e ao publicar, sem autorização, fotografia da autora. Pleiteia o recolhimento e a destruição de todos os exemplares da obra colocados no mercado, com proibição de nova edição, impressão, reimpressão, publicação, divulgação e distribuição e com condenação da ré ao pagamento de indenização por danos materiais, consistentes em 30% sobre o total das vendas de todos os exemplares, e morais.
O réu apresentou contestação.
Julgada a ação para reconhecer a prescrição, houve recurso de apelação, ao qual foi dado provimento para determinar a produção de provas.
Produzida prova oral, as partes apresentaram seus memoriais.
É o relatório. Decido.
A ação é improcedente.
A Constituição Federal, em seu art. 5o, X, prevê a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelos danos decorrentes da violação.
Entretanto, também há outros direitos protegidos em nossa legislação, inclusive na própria Constituição Federal, como o direito à liberdade de imprensa (inciso IX do mesmo artigo: “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”).
É necessário, então, entender e aplicar esses direitos de forma a que convivam harmoniosamente.
Existe um legítimo interesse público de natureza cultural em conhecer profundamente a vida de pessoas públicas e notórias, tal como foi Assis Chateaubriand. Daí porque a publicação de sua biografia atende ao interesse público.
E qualquer biografia que seja sempre irá expor, em algum ponto, a vida de terceiros, que atuaram como coadjuvantes na vida do biografado. Não consigo sequer imaginar uma biografia isenta de qualquer narrativa que resvalasse na vida de terceiros.
É evidente que muitas pessoas, tanto públicas quanto anônimas, participaram da vida de Assis Chateaubriand. E exatamente nesse ponto em que dela participaram, parece-me legítima certa exposição de sua vida e imagem.
Independentemente de a autora ter sido ou não amante de Assis Chateaubriand, é incontroverso nos autos que ela participou da vida dele. Afinal, foi arrumadeira na casa de Assis Chateaubriand por dois anos, conforme ela mesma declarou, e com ele e com outras pessoas de sua comitiva viajou a Araxá (fls. 362).
Pelo menos nesse tempo em que a vida da autora e a vida de Assis Chateaubriand se encontraram, entendo legítima a exposição de fatos e de imagens na biografia dele.
Não há dúvida de que a fotografia de fls. 657 da obra foi tirada nesse contexto. Embora a autora não se recorde da data em que a fotografia foi tirada, nem saiba quem a tirou nem em poder de quem ela estava, é evidente que a fotografia está relacionada ao período em que a autora trabalhou para Assis Chateaubriand. Nesse sentido, a própria autora acredita que a fotografia foi tirada na casa de Assis Chateaubriand (fls. 362). Além disso, a própria autora instruiu a inicial com a fotografia de fls. 41, em que utiliza a mesma roupa utilizada na fotografia de fls. 657. Consta expressamente da referida fotografia tratar-se de lembrança de Araxá, junho de 1964, deixando claro que a fotografia utilizada no livro refere-se ao mesmo período.
Portanto, a fotografia publicada no livro está relacionada ao contexto da obra.
Além disso, não se trata de fotografia vexatória. Muito pelo contrário. É uma fotografia muito bonita.
Considerando esses dois fatores (fotografia não vexatória, relacionada ao contexto da obra), não reputo ilícita sua utilização pela ré na biografia do falecido Assis Chateaubriand. Considero legítima a utilização, independentemente do consentimento da autora, não gerando dever de indenizar, já que, nesse ponto, entendo que deva prevalecer o direito à informação e à liberdade de imprensa.
Com relação à narrativa constante do livro, da qual consta que a autora teria sido amante de Assis Chateaubriand, entendo que o pedido indenizatório também improcede.
Quando ouvida em depoimento pessoal, a autora afirmou que “as encrencas começaram na própria casa no Jardim Europa, quando a depoente começou a trabalhar. Emília disse que a depoente estava tendo um relacionamento com Assis Chateaubriand, mas a depoente reafirma que não estava. Assim, a depoente preferiu sair do emprego” (fls. 362).
Portanto, resta claro que toda essa história, verdadeira ou não, de que a autora teria sido amante de Assis Chateaubriand não foi inventada agora, muito menos pela ré. Ela já existia na época em que a autora demitiu-se ou foi demitida.
Legítima, portanto, sua narrativa no livro.
A própria informante Emília Belchior de Araúna, que era enfermeira de Assis Chateaubriand, mencionou que “corria dentro da casa amarela o boato de que existia um relacionamento amoroso entre Maria Helena e Assis Chateaubriand. Todo mundo dentro da casa e também funcionários do Diário de São Paulo comentavam acerca deste relacionamento com uma empregada doméstica. A depoente só tomou conhecimento desse boato depois do episódio em Araxá. Conversou com a governanta Guilhermina sobre isso e ela confirmou, dizendo que não comentou antes porque achava uma coisa menor e tinha medo de um escândalo. Assis Chateaubriand confirmou que tinha alguma coisa com a empregada doméstica. Ele ainda disse que era solteiro e ela também e disse que se alguém estivesse ofendido, podia ir embora da casa. (…) A depoente chegou a falar desses fatos para o autor do livro, mas pouco. O autor já tinha entrevistado a governanta, o enfermeiro da noite e Paulo Bruno. E já sabia desses fatos. (…) Assis Chateaubriand falava que estava “furunfando” com Maria Helena” (fls. 357/358).
A informante Emília era enfermeira particular de Assis Chateaubriand e, até pelo próprio relato constante do livro, era figura importante na vida dele após a doença que o acometeu.
Assim, Emília era uma fonte importante para a biografia de Assis Chateaubriand e é legítimo que seus relatos tenham sido utilizados na obra.
E não se pode dizer que a narrativa constante da obra, relacionada a esse suposto relacionamento amoroso, seria irrelevante ao público ou seria meramente sensacionalista.
Os relacionamentos amorosos de Assis Chateaubriand têm relevo e especial importância na obra. Para isso, basta atentar para o fato de que, no velório de Assis Chateaubriand, o próprio Pietro Maria Bardi teria, como última homenagem ao morto, colocado três telas do MASP, dizendo que se referiam às três coisas que Assis Chateaubriand mais amou na vida: o poder, a arte e a mulher pelada. Referência a essa situação não está apenas no livro, mas em sites que falam sobre a vida de Assis Chateaubriand (http://pt.wikipedia.org/wiki/Assis_Chateaubriand).
Dessa forma, não entendo haver nenhuma ação ilícita por parte da ré ao publicar o relato impugnado pela autora. Se alguém difamou a autora, não foi a ré, que, por isso, não tem o dever de indenizar.
Ante o exposto, JULGO IMPROCEDENTE a ação proposta.
Ressalvados os termos do art. 12 da Lei Federal n. 1.060/50, condeno a autora ao pagamento das custas e despesas processuais, bem como de honorários advocatícios em favor do patrono da ré, fixados em R$5.000,00.
P.R.I.C.São Paulo, 12 de março de 2015.