Blog do Mario Magalhaes

‘David Copperfield’, 165

Mário Magalhães

A belíssima edição, pela Cosac Naify, do romance de Dickens

A belíssima edição, pela Cosac Naify, do romance de Dickens

 

Luiz Schwarcz, o Zico dos editores brasileiros e camisa 10 da Companhia das Letras, publicou em meados de janeiro um post saboroso sobre suas leituras de férias. ''O prazer me chama'' trata de livros lidos por gosto, sem as obrigações do olhar rigoroso do editor a trabalho. Para saber o que o Luiz andou lendo, basta clicar aqui.

Quando ele escreveu sobre as férias, eu estava voltando das minhas, quer dizer, os dez dias que me dei de ócio neste 2015 que será, está sendo, puxado demais. O Luiz tinha ido para o Ceará, eu fui um pouco além da divisa, para Tibau, no Rio Grande do Norte, dobrando a esquina de Mossoró.

Ócio com suor: maltratei as pernas trotando na areia fofa, desencaixei a coluna correndo na areia dura, mergulhei nas águas tépidas mais sedutoras, ensinei um guri e uma guria a jogar frescobol, comi camarões recém-pescados, convivi com quem vale a pena… e acertei contas com um velho vexame: enfim, li o romance de Charles Dickens (1812-1870) que, entre suas obras, era o predileto do autor inglês.

Devo à Cosac Naify o estímulo para encarar ''David Copperfield''. A edição lançada no ano passado é soberba, mais de 1.300 páginas, tradução supimpa de José Rubens Siqueira, projeto gráfico inspirado, fortuna crítica, um capricho só.

Como não sou lá dos mais encantados com a literatura da era vitoriana, foi um espanto conhecer ''David Copperfield'', que é bem melhor que ''Oliver Twist''. A história narrada pelo menino sofredor que se transforma no adulto íntegro e puro, em meio às vicissitudes da existência e das perdições da vida, é espetacular. Só não dá para ler de um só fôlego porque é maratona, não 400 metros rasos.

Ao dar com o capítulo 55,  ''Tempestade'', falei sozinho ''o que é isso?'', tamanho o esplendor literário, prazer poucas vezes visto numa narrativa. Quase corri para me proteger da natureza furiosa, mais assustadora que a de efeito 3-D no cinema. Na fortuna crítica, aprendi com um ensaísta que Tolstói considerava aquele capítulo ''o padrão pelo qual se deveria avaliar a boa ficção de todo o mundo''.

Está fazendo 165 anos que o romance, veiculado em capítulos, teve o último deles publicado, nos idos de 1850. Se a eternidade de um livro está para a comoção que ele provoca no leitor mais de século e meio depois, ''David Copperfield'' é eterno.

Por suas páginas, circulam personagens desses com que a gente vive a topar. Meu favorito é o Sr. Micawber, um tipo sempre enrolado com dinheiro e que, quanto mais se enrola, mais alto sonha. Quem nunca cruzou com um sujeito assim?

Isso que são letras com o DNA do seu tempo. Um aborto jamais é mencionado pelo nome, e está claro que uma moça se prostituiu, mas o autor  não diz, dá a entender.

Mais abaixo, compartilho algumas passagens do livro.

A que discorre sobre o casamento é a quadra vitoriana em todo o seu prurido.

A da ''indiferença por todas as ações e paixões da humanidade'' identifica miséria existencial que ainda hoje viceja, temperada pelo cinismo.

Como o preço do livro é salgado, cada biblioteca pública do país deveria ter em suas estantes este ''David Copperfield''. Eis uma boa bandeira para novas manifestações de rua.

Notei pequenas derrapadas, dessas que todas as edições têm e que podem ser corrigidas nas reimpressões. Uma delas: na página 386, a nota de pé de página trata Braguinha e João de Barro como duas pessoas. Com esses nomes se consagrou o compositor Carlos Alberto Ferreira Braga.

Vem chegando o fim do verão, e o de 2015 ficará para mim como o do imortal David Copperfield.

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''[…] Ninguém jamais poderá acreditar nesta narrativa, ao lê-la, mais do que eu acreditei ao escrevê-la''.

(Do ''Prefácio à edição de 1867'')

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''- A história nunca mente, não é? – perguntou o sr. Dick com um brilho de esperança.

– Ah, não, senhor! – repliquei muito decidido. Eu era moço ingênuo e acreditava nisso.''

(Pág. 367)

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''O tempo voa na intimidade do passado.''

(Uriah Heep, pág. 551)

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''Uma demonstração de indiferença por todas as ações e paixões da humanidade não era considerada uma qualidade distinta naquele momento, acho eu, como observei ter passado a ser depois disso. Sei que está muito na moda mesmo. Já vi essa atitude exibida com tamanho sucesso que encontrei muitas ótimas damas e cavalheiros que podiam ter nascido lagartas que não faria diferença. Talvez tenha me impressionado mais naquela época porque era novidade para mim […].''

(Pág. 747)

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''Não pode haver maior disparidade no casamento do que a incompatibilidade de ideias e objetivos.''

(Sra. Strong, pág. 991)

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''Annie, meu amor, vou entrar no escritório com meu jornal, porque sem notícias sou uma pobre criatura.''

(Sra. Markleham, pág. 993)

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''Ao prestar juramentos legais, por exemplo, os depoentes parecem ter grande prazer quando chegam a diversas boas palavras em sucessão para expressar uma ideia; por exemplo, que detestam, abominam, abjuram e assim por diante; e os velhos anátemas eram pronunciados com igual prazer. Falamos da tirania das palavras, mas gostamos de tiranizá-las também; gostamos de ter um grande suprimento supérfluo de palavras à espera em grandes ocasiões; achamos que parece importante, que soa bem. E assim como não somos exigentes com o propósito de nossos criados em ocasiões oficiais, contanto que sejam vistosos e numerosos, também o sentido ou a necessidade de nossas palavras são uma consideração secundária, se elas formam um grande cortejo. E assim como indivíduos se metem em enrascada quando exibem seus criados, ou quando escravos são numerosos demais e se erguem contra seus amos, penso que posso mencionar uma nação que possui muitas grandes dificuldades, e se verá em muitas ainda maiores, por manter um elenco grande demais de palavras.''

(Pág. 1070)

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''[…] As coisas que nunca acontecem muitas vezes são tão reais para nós, em seus efeitos, quanto as que se realizam.''

(Pág. 1162)

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