Blog do Mario Magalhaes

‘É muito mais difícil ser grande leitor e grande escritor no século 21’
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Mário Magalhães

O escritor português Gonçalo M. Tavares – Foto Naranjo/Efe

 

Como não acompanho a produção acadêmica sobre criação literária do século 21, desconheço eventuais pesquisas sobre o impacto do computador na escrita.

A impressão é que a prosa tende a ser mais limpinha, isenta das cicatrizes que as intempéries deixam na criação.

É mais fácil escrever, reescrever, reescrever indefinidamente, até encontrar a forma considerada decente pelos autores.

Ganha-se, se a narrativa limpinha é o que se busca, e perde-se, quando a tentação de se livrar da sujeira descaracteriza o texto que seria melhor com impurezas como a repetição proposital ou não de palavras.

Estive pensando nisso ao ler uma entrevista do escritor português Gonçalo M. Tavares, nascido em Luanda, ao ''El País''.

Ele não falou de programas de edição e estética literária, mas do isolamento que necessita para escrever.

Gonçalo, que está fora do Facebook, tranca-se num ''bunker'' sem celular e internet: ''É muito mais difícil ser um grande leitor e um grande escritor no século 21. Eu tento resistir. Não tenho nada, só um e-mail com resposta automática que diz: 'Peço desculpas, mas nas próximas semanas não poderei responder (ri). É um sistema de defesa. Porque não sei como é possível estar escrevendo e vendo a internet''.

Em literatura, a internet é mais inimiga que amiga, inclusive dos autores de não ficção.

Nunca inventaram algo tão dispersivo. E poucas coisas são tão daninhas a um escritor quanto a dispersão.

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Spotlight: pedofilia na Igreja do Brasil é escassa ou jornalismo não apura?
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Mário Magalhães

A repórter e a fonte de informações: em “Spotlight'', jornalistas são mocinhos – Foto divulgação

 

(O blog reproduz este post, de 11 de janeiro, sobre questões jornalísticas estimuladas por ''Spotlight'', Oscar de melhor filme.)

Há um ótimo filme na praça. ''Spotlight: Segredos Revelados'' reconstitui uma vibrante investigação feita por uma equipe do jornal ''The Boston Globe'' no comecinho do século.

O título reproduz o nome pelo qual é conhecido o núcleo de repórteres especiais do jornal _''spotlight'' quer dizer holofote.

Eles publicaram reportagens revelando a pedofilia disseminada na Igreja católica na região de Boston, sobretudo a rede de poder, de cardeal a advogados, que encobria os criminosos.

Façanha jornalística, num tempo em que o jornalismo tem do que se envergonhar. A primeira matéria da série saiu em janeiro de 2002. Um ano mais tarde, os Estados Unidos invadiriam o Iraque sob o pretexto de o governo Saddam Hussein possuir armas de destruição em massa. O jornalismo norte-americano deu cobertura desvairada à acusação, que se comprovou falsa.

A seguir, seis pitacos jornalísticos, e não estéticos, a respeito de questões estimuladas pelo filme.

*

1) Ao contrário do que fez a pequena, porém valente equipe do ''Boston Globe'' há mais de uma década, no Brasil as investigações jornalísticas sobre pedofilia na Igreja identificaram casos isolados, não um fenômeno sistêmico. O que será diferente aqui: padres pedófilos cometem abusos em episódios pontuais, que não constituem prática disseminada, ou o jornalismo nacional não foi capaz de descobrir um fenômeno amplo?

2) ''Repórter investigativo'', expressão que tem sido repetida à exaustão nos comentários sobre ''Spotlight'', é pleonasmo. Todo repórter investiga, é da natureza do seu ofício. As investigações podem tomar mais ou menos tempo, guardar grandes ou modestas ambições jornalísticas. Mas, se há repórter na parada, há investigação, a denominação mais presunçosa de apuração. O jornalismo reúne gêneros que não exigem necessariamente investigação. A crônica alimenta-se, acima de tudo, da observação. Ao contrário do gênero da reportagem, que impõe investigar.

3) Sem bilheteria não tem circo. A premissa, lição que ouvi por muitos anos, aplica-se também ao jornalismo. Uma equipe como a do ''Boston Globe'' custa caro. Há de pagar salários, viagens, infra, advogados. Sem investimento em investigações profundas, grupos de repórteres como o que protagoniza o filme tendem a ser mais enxutos e correm o risco de extinção. Como o jornalismo é serviço público, ainda que exercido por empreendimentos privados, quem perde são os cidadãos.

4) Não basta bilheteria. Independência editorial é indispensável. Dois segmentos em relação aos quais o jornalismo costuma se sentir intimidado são a Igreja católica e o Judiciário. Talvez, inclusive no Brasil, a independência tenha progredido nos últimos anos. Talvez.

5) Poucos males são tão daninhos numa redação jornalística quanto a inércia. ''Spotlight'' mostra a resistência ao escrutínio de crimes de padres pedófilos. ''Já demos'' é o mantra de quem, alegando notícia discreta veiculada antes, resiste a se arriscar em investigações trabalhosas que exponham mais do que a superfície.

6) Sei que muitos jornalistas brasileiros têm aplaudido ''Spotlight''. Também sei que é comum nas redações alguns jornalistas tomarem por vagabundos e preguiçosos os repórteres integrantes de equipes de investigação de fôlego. Seriam vagabundos e preguiçosos porque publicam pouco. Os colegas do ''Boston Globe'' tocaram por cinco meses a apuração sobre pedofilia antes de publicar a reportagem inaugural da premiada série.

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Muso do impeachment, Eduardo Cunha consegue ser mais impopular que Dilma
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Mário Magalhães

ayayayay

 

Sabe a Dilma?

Haja impopularidade: o Datafolha informou ontem que 60% dos brasileiros querem que a Câmara aprove o impeachment da presidente (33% não querem).

E 58% são a favor de que ela renuncie (37% são contra).

Impopular mesmo, faz por onde.

Mas muito menos que o muso do impeachment, Eduardo Cunha.

Três em cada quatro entrevistados do Datafolha, 76%, defendem a renúncia do deputado (míseros 12% se opõem).

E 78% são pró-cassação (somente 8% dizem não a ela).

Noutras palavras, ou números: Dilma tem 208% (37% a 12%) mais aprovação à não renúncia que o presidente da Câmara.

Quanto à cassação, a presidente reúne 313% mais apoios (33% a 8%) para permanecer onde está.

O essencial: inexiste prova de que Dilma Rousseff tenha cometido crime de qualquer espécie; já as contas do deputado…

P.S.: o gráfico não mostra a porcentagem dos pesquisados que não sabem/não responderam.

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No Rio, neotucano Osório é opção a Pedro Paulo para bater Crivella e Freixo
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Mário Magalhães

Osório: melhor de entrevista do que de serviço – Foto Zulmair Rocha/UOL

 

As últimas semanas renderam três novidades relevantes nos arranjos para a campanha deste ano a prefeito do Rio:

1) o senador Romário (PSB) tirou o time, depois da gravação em que Delcídio do Amaral mencionou a existência de conta secreta do ex-craque no exterior. E também após publicação de reportagem informando que parentes e amigos de Romário ganharam empregos camaradas numa pasta municipal cujo secretário foi indicado pelo Baixinho;

2) o senador Marcelo Crivella está trocando o PRB pelo PSB de Romário;

3) o deputado Carlos Roberto Osório, ex-secretário estadual de Transportes, lançou sua candidatura pelo PSDB, abandonando o PMDB do prefeito Eduardo Paes e do governador Luiz Fernando Pezão.

Por enquanto, os três candidatos mais fortes são Marcelo Crivella, seu xará Freixo (PSOL) e o secretário municipal Pedro Paulo, correligionário do prefeito.

Crivella chegou ao segundo turno da disputa para o governo do Estado, em 2014.

Marcelo Freixo alcançou 28% dos votos na eleição para prefeito de 2012.

A força de Pedro Paulo é o apadrinhamento por Eduardo Paes, cuja administração ostenta bons índices de aprovação. Paes deve levar cerca de uma dúzia de partidos para a coligação, premiando seu candidato com um latifúndio de tempo na propaganda televisiva. Estão com Pedro Paulo tanto o PT, agremiação que afirma defender os direitos das mulheres, quanto o DEM.

O grande arco político, empresarial e midiático que apoiou os peemedebistas Paes e Pezão nos pleitos passados está ou estaria com o escolhido pelo prefeito para o confronto de 2016. Acontece que a revelação de agressão de Pedro Paulo à ex-mulher tornou mais complicado seu desafio. O pré-candidato chega a um hospital e é recebido com gritos de ''Maria da Penha!'' Sua candidatura agonizava, mas foi mantida por vontade de Paes.

Essa coalização se opõe a Freixo porque o candidato é de esquerda, bem mais do que o democrata norte-americano Bernie Sanders.

Crivella é rejeitado devido ao seu vínculo com a Igreja Universal do Reino de Deus, da qual é bispo licenciado. O senador é sobrinho do bispo Edir Macedo, líder da Iurd e dono da TV Record. Ao sair do PRB, pretende amenizar a imagem de postulante da Universal.

Como existe pelos aliados de Paes o temor de Pedro Paulo não empolgar, o neotucano Carlos Roberto Osório se tornou opção para derrotar Crivella e Freixo.

Osório é um dos políticos cariocas mais dados à marquetagem. Pezão comentou, semanas atrás: ''Acende um flash, ele [Osório] já dá entrevista. Abre a porta da geladeira, dá entrevista (risos). Não quer nem saber. Dá entrevista para a geladeira''.

Osório deu muita entrevista sobre táxis no aeroporto Santos Dumont. Mas a bandalha continua. O candidato é melhor de entrevista do que de serviço.

Pouquíssimos políticos apareceram tanto nas TVs do Rio nos últimos anos como Osório. Quem subestimar sua candidatura pode se dar mal.

Ao ingressar no PSDB, o deputado começou a criticar o governo federal, de ampla rejeição no Rio, como em todo o país.

A condição de oposicionista, em contraste com Pedro Paulo, da base política de Dilma Rousseff, pode ajudá-lo.

Osório pertence ao mesmo espectro político conservador de Eduardo Paes.

Mas seria muito ruim para o prefeito não deixar um sucessor fiel na prefeitura, ainda mais porque planeja concorrer a governador ou presidente em 2018.

O Rio terá uma campanha imprevisível, como a de 2014 para o Palácio Guanabara. Em junho de 2013, centenas de milhares de pessoas xingaram nas ruas o então governador, Sérgio Cabral. No ano seguinte, ele emplacou nas urnas o sucessor. Pezão se elegeu em virtude da enorme rejeição a Crivella. Em 2016, por enquanto, quem lidera a corrida é o bispo da Universal. A percepção que os cariocas tiverem da Olimpíada de agosto pode ser decisiva em outubro. Apostas sobre o novo prefeito são precipitadas.

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Palavras malditas (14): tantas vezes menor
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Mário Magalhães

Máquina de escrever de meados dos anos 1960 – Reprodução “The New York Times''

 

Este é um caso em que o idioma executa o crime, mas não é o autor intelectual.

A língua compartilha a culpa com a física e a matemática. Isto é, com o desconhecimento dessas matérias.

Se uma pilha tem quinhentos tijolos e outra, cem, o sujeito tasca: a segunda é cinco vezes menor que a primeira.

Na papelaria, o freguês escolhe um globo, e o vendedor compara: este é três menor que aquele.

Trata-se, com os tijolos e o globo, de uma impossibilidade.

Um objeto uma vez menor que ele significa zero, ou nada. Não existe.

Tudo só pode ser reduzido até o seu limite físico, portanto uma vez, ou cem por cento _cheque especial são outros quinhentos, até porque aí os juros multiplicam a dívida, e põe multiplica nisso!

A pilha maior representa cinco vezes a primeira, 400% mais.

O globo maior, três vezes o tamanho do pequeno, acréscimo de 200%.

O que o pessoal deveria dizer é que a pilha menor equivale a um quinto da maior, ou 20%.

E o globinho, a um terço ou 33,3% do modelo mais parrudo.

Sabem onde eu mais leio e ouço a fórmula ''tantas vezes menor''?

Não é no desdenhado jornalismo esportivo, clube em que militei por anos e do qual ainda me considero sócio.

Mas na cobertura de economia, seção em que em tese o domínio de números seria maior, para o jornalista não se deixar engambelar por economistas.

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*

Eis as palavras malditas anteriores (clique em cima, se quiser ler):

1) emblemático;

2) instigante;

3) eu, particularmente;

4) circula com desenvoltura;

5) não resistiu;

6) um verdadeiro;

7) amigo pessoal;

8) vítima fatal;

9) figurinha carimbada;

10) evidência;

11) conferência de imprensa; coletiva de imprensa;

12) barbaramente torturado;

13) estrategista.


Pobre não entra: maior vergonha do zoológico seria virar programa vip
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Mário Magalhães

Ó de casa: aqui vivia uma girafa – Foto Taís Vilela/UOL

 

Hoje faz 44 dias que o Jardim Zoológico do Rio está fechado.

Tamanhos o descaso da prefeitura com os animais e o abandono do lugar, o Ibama o interditou em 14 de janeiro.

Claro que as autoridades prometeram tocar rapidinho as obras que permitiriam a reabertura.

Ontem, em mais uma vistoria, o Ministério Público Federal constatou que ainda há muita coisa a ser feita. Os cariocas seguem sem o zoológico.

Ir à Quinta da Boa Vista visitar os bichos é aqui um tradicionalíssimo programa, como lembrei outro dia.

Mais que isso, é um passeio bem mais democrático que muitos outros. A Quinta fica na zona norte, e o ingresso não é tão salgado como em tantos locais de lazer.

Adulto paga R$ 10, criança, R$ 5, e, se tiver menos de um metro de altura, nada.

Ir ao zoológico é o que se chama de programa popular.

Verão com zoológico fechado não rende escândalo por isso mesmo, por ser programa povão.

O desdém da administração municipal não se deve somente ao gosto por construções que atraiam público mais endinheirado.

Faz parte do projeto de entrega do zoológico à iniciativa privada. Quanto mais caído este fica, mais atraente se torna a ladainha pela privatização.

Um edital de ''concessão ao setor privado'' foi lançado, parece que vem outro.

Prevê-se ingresso a R$ 15 neste ano, alcançando R$ 35 em 2018.

Tudo isso, ufana-se a prefeitura, porque ''um novo conceito de parque será adotado''.

O zoológico terá até tirolesa.

O concessionário será obrigado a investir mais de R$ 60 milhões.

O ''obrigado'' é relativo, como evidenciam concessões em que gestores públicos camaradas aliviam os ditos parceiros particulares.

Nós já vimos esse filme, bem pertinho da Quinta, no estádio do Maracanã.

É uma beleza, tratam-no até por ''arena''.

Só que os torcedores pobres que frequentavam o estádio desde 1950 foram expulsos.

Porque o preço dos ingressos, até para peladas insossas, é alto demais.

Uma família com três filhos estudantes pagaria hoje, com o zoológico aberto, R$ 35.

Quando o ''parque'' estiver bombando, R$ 122,50.

Se o plano for adiante, um dos ''legados'' desses dias olímpicos será privar os cariocas de um dos seus mais arraigados programas populares.

Podem dizer: quem investe quer retorno.

Eu digo: para que privatizar o zoológico, quando a prefeitura torra fortunas em obras não prioritárias?

Ainda que fosse para privatizar, por que escolher um modelo de novo-rico, em vez de revitalizar o bom, velho _e barato_ zoológico da Quinta?

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Quem nunca?
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Mário Magalhães

ahahahahah

Por Adão Iturrusgarai, ''Folha'', 26.fev.2016


É? Era…
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Mário Magalhães

valval

Old times – Reprodução Memória Petrobras


Em São Paulo, nesta 6ª, ato em memória do grande brasileiro César Teles
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Mário Magalhães

 

Carlos Alberto Brilhante Ustra (1932-2015), oficial do Exército Brasileiro, foi um torturador.

O que comprova essa condição não são somente as numerosas testemunhas e os incontáveis documentos sobre sua passagem pelo maior campo de concentração urbano mantido pela ditadura (1964-1985), o DOI (Destacamento de Operações de Informações) do II Exército.

Lá, em São Paulo, Ustra comandou de 1970 a 1974 a engrenagem de violência, sadismo, assassinato e sumiço de corpos de cidadãos que lutavam contra a ditadura.

Ustra era torturador, sentenciou a Justiça no século 21. Um covarde a serviço do Estado.

Se hoje até a Justiça autoriza a chamar o verdugo de torturador, isso se deve à coragem de uma família.

Em 2006, Maria Amélia, César, Janaína e Édson Teles, em conjunto com Criméia Almeida, ingressaram com uma ação civil declaratória contra Ustra.

Reivindicavam que o militar fosse declarado autor de tortura e sequestro, logo torturador e sequestrador.

A história que os cinco viveram está contada mais abaixo, numa reportagem que eu escrevi na ''Folha'' em 2006.

Resumindo-a, em dois retratos:

ao ver os pais, Maria Amélia e César, sendo retirados da sala de tortura do DOI, o filho caçula, Édson, indagou: ''Por que vocês estão verdes?'';

evidentemente grávida, como demonstrava a barriga de sete meses, Criméia foi torturada até com eletrochoques.

A declaração da Justiça qualificando Ustra como torturador, emitida em 2008 e mais tarde referendada por instância judicial superior, foi uma luz de civilidade em meio às trevas da impunidade _Ustra morreu sem ser julgado criminalmente.

Um dos heróis dessa batalha democrática, César morreu no finzinho de 2015, aos 71 anos.

Ele será homenageado nesta sexta-feira (26 de fevereiro), a partir das 18h30, com um ato na Câmara Municipal de São Paulo.

César dedicou sua vida a tentar a ajudar os mais pobres. Torcedor do Atlético-MG, gostava de bater bola. Foi sindicalista ferroviário. Era exímio dançarino de salão. Lutou contra a ditadura. Adorava orquídeas. Foi o responsável pela logística da Guerrilha do Araguaia. Cantava óperas. Penou cinco anos na prisão, participou das campanhas da Anistia e das Diretas Já. Cobrou o paradeiro dos desaparecidos políticos, exigiu castigo legal aos violadores dos direitos humanos.

César Augusto Teles se foi em 28 de dezembro. Pegadinha da história, 43 anos cravados depois de ter sido preso e levado para o inferno comandado por Ustra.

É do jogo concordar ou discordar dos caminhos de César. O certo é que, se todo brasileiro tivesse a coragem e a dignidade que ele teve, o Brasil seria bem melhor.

(Abaixo, a reportagem de 2006.)

*

Militar vira réu em processo por tortura durante a ditadura

Depois de a União reconhecer sua responsabilidade pela tortura, morte e desaparecimento de opositores durante a ditadura (1964-85), a Justiça agora é chamada a se pronunciar sobre os atos de um dos mais destacados agentes dos órgãos de segurança dos anos 70: Carlos Alberto Brilhante Ustra, 74, hoje coronel reformado do Exército. Cinco pessoas de uma família processam Ustra, acusando-o de seqüestro e tortura em 1972 e 1973.

Embora os advogados dos autores neguem que o pedido contrarie a Lei de Anistia (1979), o processo reabre a discussão sobre a impunidade de funcionários públicos que cometeram crimes contra os direitos humanos.

Na Argentina, as ''leis do perdão'' foram revogadas, e os acusados por tortura na ditadura militar do país (1976-83) são submetidos a julgamento.

A ação civil é declaratória: não implica pena ou indenização pecuniária. Pede a declaração de ocorrência de danos morais e à integridade física.

Advogados e entidades de direitos humanos consultados pela ''Folha'' afirmam desconhecer a existência de ações contra funcionários dos governos militares -antes foram contra o Estado. Ustra se diz ''o primeiro militar que eles buscam sentar no banco dos réus''.

Em 1985 a atriz Bete Mendes, ex-militante da luta armada contra a ditadura, apontou o coronel como seu antigo torturador, mas não o processou.

Ustra é réu no processo 05.202853-5, da 23ª Vara Cível do Foro Central de São Paulo. Os autores da ação são o casal Maria Amélia de Almeida Teles, 61, e César Teles, 62; seus filhos Janaína Teles, 39, e Édson Teles, 38; e Criméia Almeida, 58, irmã de Maria Amélia.

A história que eles narram consta do ''Brasil: Nunca Mais'', projeto da Arquidiocese de São Paulo. O caso dos irmãos Janaína e Édson ganhou relevo no capítulo referente a vítimas crianças.

Eles tinham 5 e 4 anos quando foram parar nas dependências paulistas do DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações -Centro de Operações de Defesa Interna). O comandante da unidade era Ustra, o ''Tibiriçá''.

A denúncia

Responsáveis pela gráfica do então clandestino Partido Comunista do Brasil, César e Maria Amélia foram presos em dezembro de 1972 junto com o dirigente Carlos Danielli, que foi torturado e morto no DOI-Codi, conforme conclusão, após o fim da ditadura, da Comissão de Mortos e Desaparecidos do Ministério da Justiça.

Grávida, Criméia foi detida no dia seguinte. Os sobrinhos foram levados com ela para o DOI-Codi, na rua Tutóia.

Maria Amélia lembra que recebeu choques elétricos, injeções do dito ''soro da verdade'' e humilhações diversas, além de ter sido posta no pau-de-arara.

César descreve golpes de palmatória, choques e tapas nos ouvidos (''telefone''). Queimaduras de cigarro no seu pé direito obrigaram-no a fazer transplante de pele.

Criméia afirma que, ao chegar no DOI-Codi, viu sua irmã e o cunhado sendo retirados da sala de tortura ''com equimoses por todo o corpo''. ''Meu sobrinho [Édson], ao vê-los, perguntou: ''Por que vocês estão verdes?''', disse ela.

De acordo com Criméia, mesmo grávida de sete meses ela foi seviciada com espancamento, murros na cabeça, palmatória de madeira nos pés e nas mãos e até choques.

''Eu e minha irmã fomos torturadas para que assinássemos um papel em que consentíamos que eles fizessem o aborto.''

Depois de nascido, o menino João Carlos de Almeida Grabois soluçava ao ouvir barulhos estridentes.

Maria Amélia e Criméia relatam a participação direta de Ustra na tortura. César diz que o comandante ordenava: ''Bate nesse, bate naquele''. Eles reconheceram o militar ao ver suas fotos publicadas após a denúncia de Bete Mendes.

Os pais dizem que os filhos foram usados para pressioná-los a fornecer informações -se não falassem, Janaína e Édson ''seriam torturados e mortos''.

A ação qualifica os atos contra os irmãos como tortura psicológica. Eles ficaram meses na casa de uma policial cuja identidade até hoje ignoram.

Aos 6 anos, Janaína entrou em processo de puberdade precoce. Aos 28, a menopausa se manifestou precocemente. Édson passou anos sem conversar com ninguém.

*

Família diz que objetivo é acabar com a impunidade

O que faz uma família cutucar feridas como as dos Almeida e dos Teles mais de 30 anos depois dos seis meses em que os adultos contam ter sido torturados e seus filhos estiveram longe deles e de outros parentes?

''A história deve ser contada como aconteceu, para que não se repita'', diz a professora Maria Amélia de Almeida Teles. Como o marido e a irmã, ela não milita mais no PC do B.

O aposentado César Teles responde à contestação do coronel Ustra sobre a demora para acionar a Justiça: ''Denunciamos o que houve assim que saímos do pau-de-arara'' -os autos de um processo da década de 1970 confirmam.

A historiadora Janaína Teles diz que a opção pelo processo contra o comandante do DOI-Codi -e não o Exército e a União- ocorreu porque ''as pessoas que morreram na ditadura tinham nomes, sentimentos e história''. ''Os que mataram, também'', afirma.

Para a enfermeira Criméia de Almeida, ''o que caracterizou a anistia foi a impunidade''. Seu filho João Carlos, que ela esperava quando ficou presa, hoje tem 33 anos e é empresário.

César diz que quem idealizou a ação foram seus filhos. ''No início, fiquei com medo da reação do Ustra'', afirma o professor de filosofia Édson Teles. ''Eles [torturadores e militares participantes do aparato de segurança da ditadura] estão ativos, reunidos em grupos.''

*

Coronel nega acusação e cita Lei de Anistia

A defesa do coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra se fundamenta em quatro argumentos: a negativa das acusações; eventuais crimes em 1972 e 1973 não poderiam mais ser punidos; a ação deveria ser contra a União, e não seu servidor militar; a Lei de Anistia (1979) beneficiaria os agentes dos órgãos de segurança que combateram a oposição.

Ustra afirmou à ''Folha'' seguir orientação dos advogados para não conceder entrevista. Fez breves comentários e qualificou as denúncias como ''mentiradas''. Disse que acusadores ficam ''inventando coisas'' e ''mulheres mentem''. ''Com essas coisas que esse povo faz [relatos de sevícias], aquele negócio todo, tem horas que a gente desiste de viver.''

Ustra comandou o DOI-Codi de São Paulo de setembro de 1970 a janeiro de 1974. Nesse período, pelo menos 40 presos foram assassinados em suas instalações, conforme o jornalista Elio Gaspari no livro ''A Ditadura Encurralada'' (Companhia das Letras, 2004) e o ''Projeto Brasil: Nunca Mais''.

Advogados do coronel, Paulo Esteves, Sérgio Toledo e Salo Kibrit, afirmam no processo: ''Quanto às descrições de tortura (…), o réu [Ustra] jamais permitiria semelhante ato em um local que comandasse''.

Ustra divulgou um texto sobre a ação declaratória no site A verdade sufocada''. Nega ter havido seqüestro das crianças Janaína e Édson. Confirma, contudo, que os meninos estiveram no DOI-Codi.

Disse que aceitou pedido dos pais presos para que uma policial, que teria se oferecido, ficasse com as crianças.

Os defensores do militar escreveram que ''o réu [Ustra] agiu como representante do Exército no soberano exercício da segurança nacional''. Por isso, a União deveria responder.

Citam a Lei de Anistia como obstáculo ao prosseguimento do processo: ''[A lei] pressupôs esquecimento recíproco, de modo a apagar todos os fatos que ocorreram em determinado período e que tipificaram delitos políticos ou conexos''.

Fábio Konder Comparato, advogado dos autores da ação, disse que a Lei de Anistia não afeta o processo: ''[A lei] meramente diz respeito a crimes. Aqui não se trata de uma ação penal. É uma ação civil''.

(MM, ''Folha de S. Paulo'', 10.set.2006)

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