Blog do Mario Magalhaes

Palavras malditas (20): via de regra
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Mário Magalhães

Máquina de escrever de meados dos anos 1960 – Reprodução “The New York Times''

 

Corria o ano de 1957, e Paulo Francis terminara no Diário Carioca seu artigo sobre teatro. Perdeu-se no tempo a identidade do alvo da vez do crítico, na altura dos seus 27 anos, mais ferino e temido da cidade.

Como de costume, ele enviara a crítica ao editor Carlos Castello Branco, cujo costume era aprová-la e despachá-la para composição, letra por letra, e impressão.

Naquela noite, pela primeira vez, Castellinho devolveu o texto de Francis. Mandou-o por um contínuo.

''Fiquei espantado'', recordaria o autor. ''Onde eu tinha escrito 'via de regra', Castellinho puxou um traço à margem, adicionando: 'é buceta'.''

A despeito de sua cultura já enciclopédica, Francis derrapara numa casca de banana do bacharelismo vulgar.

Poderia ter datilografado ''quase sempre'' ou ''habitualmente'', mas cedeu ao beletrismo.

Só voltaria a escrever ''via de regra'' dali a 23 anos, ao contar o que chamou de ''lição proveitosa'', em seu livro de memórias O afeto que se encerra.

''Via de regra'' é expressão tão pretensiosa quanto afetada e ridícula.

E muito mais palavrão do que o órgão sexual descrito por Castellinho, com a liberdade, conforme o relato de Francis, de u no lugar do o.

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Palavras malditas (19): crime passional
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Mário Magalhães

Máquina de escrever de meados dos anos 1960 – Reprodução “The New York Times''

 

Se as coisas se passaram na derradeira semana de 2016 como a polícia contou, o embaixador da Grécia no Brasil foi assassinado num conluio entre a mulher dele, o amante dela e um aparentado do amante. Há um quarto suspeito. O propósito da agora viúva em cana seria herdar os bens do pai de sua filha.

A brasileira teria falado que o diplomata se embebedava e a agredia. Não se sabe como mataram o grego. Na Baixada Fluminense, encontraram seu corpo carbonizado, dentro do Ford Ka que alugara. Kyriakos Amiridis sobreviveu a anos de Líbia, para morrer no Brasil.

O embaixador foi morto por dinheiro, vingança ou ambos os motivos. Seus matadores não o amavam nem estavam apaixonados por ele. Mesmo assim o episódio tem sido descrito como crime passional. Só se for paixão por patrimônio alheio e vendeta.

Quando os fogos começaram a espocar em Campinas, anunciando 2017, um homem entrou numa casa e matou a ex-mulher, o filho de oito anos e mais dez pessoas. Atirou pela última vez com a pistola e deu cabo da própria vida. A chacina chegou a ser noticiada como crime passional. Não foi paixão o que moveu o assassino, mas ódio, ressentimento e outros demônios.

Crime passional inexiste no Código Penal. A lei, no limite, menciona emoção e paixão como fatores que não excluem punição. Não deixa de tipificar, isso sim, o crime de feminicídio em casos de ''violência doméstica e familiar'' e ''menosprezo ou discriminação à condição de mulher''.

A patranha do crime passional funcionou como ardil muito útil, nas décadas de 1970 e 1980, a réus assassinos de mulheres. O machão levava um par de chifres ou era abandonado. Desforrava-se matando a companheira. Agira em legítima defesa da honra, alegavam na cara dura os advogados, às vezes com sucesso. Matara por paixão, daí o crime dito passional. Por amor.

''Quem ama não mata'', reagiram almas civilizadas, com pichações em todo o país. Inspirada pela mensagem nos muros, a TV Globo exibiu uma minissérie homônima em 1982.

Dez anos mais tarde, uma talentosa atriz da emissora, Daniella Perez, foi apunhalada até a morte. O que a defesa do assassino Guilherme de Pádua argumentou? Que ele, comparsa de Paula Thomaz no homicídio, cometera crime passional.

Não ponham na conta da paixão o que é fruto de ira, maldade, rancor e torpeza.

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Sabáticas: A tal da felicidade (um 2017 pleno de momentos felizes!)
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Mário Magalhães

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Odair José, grande filósofo: o que existe na vida são momentos felizes – Foto divulgação

 

Três por quatro da alma, a música retrata uma angústia candente, a busca da felicidade. Desbravar o labirinto que desemboca nesse sentimento supremo às vezes parece impossível. Quando se descobre o atalho, logo o destino escapole por novos caminhos.

“Tristeza não tem fim, felicidade sim”, compôs Vinicius de Moraes, com Tom Jobim. Chico Buarque, em parceria com Francis Hime, polvilhou ceticismo: “Jura que a felicidade/ É mais que uma vontade/ É mais que uma quimera”. Roberto e Erasmo sugeriram, sem convicção: “Não fique triste, o mundo é bom, a felicidade até existe”.

Existe, mas pressupõe perigo, advertiu a letra de Nando Reis em melodia de Samuel Rosa: “Ela não passa de um desejo inflamável”. Bem que Belchior traduziu a sacada de John Lennon, “a felicidade é uma arma quente”.

Tão quente que quem a encontra já cogita perdê-la, feito Renato Russo: “A felicidade mora aqui comigo, até segunda ordem”. Antes, Lupicinio Rodrigues padecera: “Felicidade foi-se embora, e a saudade no meu peito ainda mora”. Como Noel Rosa, em tabelinha com Renê Bittencourt: “Eu fico triste/ Quando vejo alguém contente/ Tenho inveja dessa gente/ Que não sabe o que é sofrer”.

A felicidade não é fetiche menor para quem a reconheceu. “A felicidade mora ao lado, e quem não é tolo pode ver”, poetou Ronaldo Bastos, com acordes de Beto Guedes. Gonzaguinha anunciou, na versão contagiante das Frenéticas: “A tal da felicidade baterá em cada porta”.

O problema é que, se tudo é simples assim, muita gente adoece de culpa quando não se sente feliz. A obsessão pela felicidade a transforma em miragem. Em vez de desfrutar do contentamento, nós nos atormentamos por ele não ser permanente.

Como se livrar da aflição? Recorrendo ao próprio cancioneiro nacional. Iluminado por uma noite de amor, Odair José pontificou: “Felicidade não existe, o que existe na vida são momentos felizes”.

Trocando em miúdos, seremos mais felizes se não nos enfeitiçarmos pela ideia da felicidade utópica, e sim por experiências felizes, muitas e muitas, mesmo fugazes, sem cansar, mas descartando a ilusão da eternidade.

Odair já foi menosprezado como artista “brega”. Eu o cultivo como um gigante do pensamento, do porte de um filósofo alemão, de um existencialista francês.

Deu pra ti, 2016. Um 2017 pleno de momentos felizes!

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Dias de inferno
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Mário Magalhães

blog - roberto carlos 2016

Roberto Carlos, no especial de fim de ano da TV Globo em 2016 – Foto Mauricio Fidalgo/Divulgação

 

E não é que o Roberto Carlos voltou a cantar Quero que vá tudo pro inferno? Esse clássico da Jovem Guarda lançado em 1965 tinha sido banido do repertório do seu compositor, parceria com Erasmo Carlos, e primeiro intérprete. Por causa do transtorno obsessivo compulsivo e da devoção religiosa, Roberto enticara com a palavra inferno.

No especial de fim de ano da Globo, ele fez charme e suspense, sem perder a afinação: “Quero que você me aqueça nesse inverno, e que tudo mais vá… pro inferno”. Repetiu o refrão várias vezes, esconjurando o bloqueio. Sorriu e disse, como quem se desculpa: “Isso é só uma força de expressão, né?”.

Na mesma semana do programa da TV, garimpando velhos documentos, dei com um telegrama enviado em 22 de junho de 1966 do Rio para Washington. O destinatário era o Departamento de Estado. O remetente, Philip Raine, encarregado de negócios interino da embaixada dos Estados Unidos no Brasil. Na mensagem, encabeçada pela classificação “confidencial”, o diplomata menciona um hit: Quero que vá tudo pro inferno.

Em seis páginas, Raine analisou o “Protesto social nas artes”, título do relatório. Escreveu que as canções de Tom e Vinicius não eram mais conhecidas nos EUA devido às traduções excessivamente literais das letras. Anotou que a censura proibira a peça de teatro O berço do herói, de Dias Gomes.

Observou que a bossa nova perdia terreno para “o muito menos original iê-iê-iê, escola do cantor Roberto Carlos, cuja letra mais famosa é ‘I want you keep me warm this winter, and everything else go to Hell’. Essa última frase tem sido muito citada na piada ‘O que Roberto Carlos e Roberto Campos têm em comum? Ambos querem que vá tudo pro inferno!’”. Ministro do Planejamento da ditadura, Roberto Campos conduzia um arrocho impiedoso.

Dias depois de descobrir a pepita de 1966, assisti pela primeira vez a Bethânia bem de perto, filme também daquele ano. É um tesouro histórico de 34 minutos. Os diretores Eduardo Escorel e Júlio Bressane testemunham Maria Bethânia aos 19, 20 anos, já vivendo no Rio e cantando pra chuchu.

Numa conversa no apartamento de Ipanema onde Jards Macalé morava com a mãe, perguntam à garota sobre Roberto Carlos. Ela pouco sabia dele, e não era esnobação: “Como eu posso esnobar Roberto Carlos? O cara mais famoso do Brasil”. Contou que o ouvira “cantar Quero que vá tudo pro inferno. Eu acho a música uma pobreza”.

Muitos anos mais tarde, os dois artistas se encontrariam no disco As canções que você fez pra mim. São onze composições de Roberto e seu irmão camarada, na voz divina de Bethânia. O álbum de 1993 ainda hoje embala paixões e tempera reminiscências de amores.

Se não for pedir demais à Bethânia, será que ela não toparia gravar um belo roquezinho romântico das antigas? Inspirado pela saudade de uma namorada de Roberto Carlos, seu nome é Quero que vá tudo pro inferno.

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Gilmar desconfia da água do STF. Batizaram a da Argentina. E a do Planalto?
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Mário Magalhães

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Michel Temer: o maior presidente nordestino da história? – Foto Alan Marques/Folhapress

 

O ministro Gilmar Mendes galhofou, contrariado com uma decisão de colega do Supremo Tribunal Federal: ''Não sei se é a água que estamos bebendo no tribunal ou seja lá o que for, mas estamos vivendo momentos estranhos''.

Até onde a memória alcança, água batizada era aquela que os argentinos ofereceram aos brasileiros nas oitavas-de-final da Copa de 90, quando eles nos eliminaram. O massagista da seleção do Maradona deu uma garrafa d'água ao Branco. Mais tarde, D10S contaria que a água bebida pelo nosso lateral-esquerdo continha calmante.

Outra água suspeita está sendo consumida. Eis o que disse Michel Temer ontem em Maceió: ''Meu objetivo e o meu sonho é que, ao final do meu mandato, vocês possam dizer, embora sendo eu de São Paulo: 'Esse foi o maior presidente nordestino que passou pelo Brasil'''.

A tentação é, ignorando a parvoíce política, interpretar a declaração destrambelhada recorrendo aos compêndios da psicanálise. Mas nem eles bastariam.

Se eu trabalhasse na segurança da Presidência, colheria correndo uma amostra da água do Palácio do Planalto e a mandaria para o laboratório. Tem coisa ali.

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A lição do herói Luiz Carlos Ruas: coragem é enfrentar os mais fortes
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Mário Magalhães

Luiz Carlos Ruas, o Índio: um herói brasileiro – Foto arquivo pessoal/reprodução UOL

Foto mostra momento em que os dois suspeitos agridem o ambulante dentro da estação do Metrô

Luiz Carlos Ruas é espancado até a morte no domingo de Natal – Foto reprodução TV Globo

 

''Não me venham com besteiras de dizer que herói não existe'', escreveu Lourenço Diaferia em 1977. O cronista reverenciava o sargento Sílvio Delmar Hollenbach, que aos 33 anos dera sua vida para salvar a de um menino de 14. O garoto caíra no poço das ariranhas num zoológico, e Sílvio se atirou para salvá-lo. Salvou-o, mas foi trucidado pelos animais carnívoros. Diaferia (1933-2008) diferenciou o sargento da estátua do duque de Caxias: ''O povo urina nos heróis de pedestal''. Vigorava a ditadura, e o escriba acabou em cana.

A tragédia com o vendedor de doces Luiz Carlos Ruas fez lembrar a crônica clássica do Diaferia, ''Herói. Morto. Nós.''  Aos 54 anos, o trabalhador foi espancado até a morte no domingo de Natal. Índio, seu apelido, defendera duas travestis que apanhavam de dois homens. Uma delas é conhecida como Brasil. Numa estação do metrô de São Paulo, os covardes se voltaram para Luiz Carlos e o socaram e chutaram sem dó.

Mesmo em tempo de desesperança, resta sempre alguma esperança. Ou, como escreveu o Renato Russo, quando tudo está perdido, sempre existe uma luz. No ano sombrio de 2016, essa flama se chama Luiz Carlos Ruas. É claro que herói existe, como sabia o Lourenço Diaferia.

Das lições do gesto generoso do cinquentão que ralava desde os nove anos, talvez a mais pungente seja a de que coragem não é castigar os mais fracos, mas enfrentar os mais fortes.

Em meio a tanta covardia, a coragem do Índio que saiu em defesa da Brasil e sua amiga mostra que, de fato, sempre existe uma luz.

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Palavras malditas (18): literalmente
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Mário Magalhães

Máquina de escrever de meados dos anos 1960 – Reprodução “The New York Times''

 

Rosicleia Campos se descabela de tanto vibrar, enquanto uma judoca treinada por ela peleja com bravura. Na TV, o locutor se esgoela:

''A Rosicleia literalmente luta no tatame!''

O espectador-torcedor procura na tela a ótima técnica tentando aplicar um o soto gari ou outro golpe. Não a encontra, porque, literalmente, Rosicleia não está no tatame.

Numa desinteligência entre amigos, um deles literalmente soltou os cachorros, conta alguém.

Pode ter mesmo soltado os cachorros, boa metáfora. Literalmente, não. Até porque o sujeito gostava de gatos. Desdenhava cães.

O advérbio literalmente significa ''em modo literal; estritamente; expressamente; à letra''. É a definição que consta do terceiro dos cinco volumes do Caldas Aulete, dicionário publicado em 1958 pela Editora Delta.

Em verbete maior, no Houaiss: ''1. de modo exato, à letra, letra por letraevite revelar o conteúdo do documento l.›2. de forma total, absoluta; completamente, verdadeiramenteo toró deixou-a l. ensopada''.

Numa explicação curtinha: ao pé da letra.

O presidente literalmente se suicidou vale para Getulio Vargas.

Se o suicídio for figura de linguagem, sem sentido literal, é outro papo: alguns presidentes deram tiros metafóricos no próprio peito.

Ao acordar de manhã, com uma ressaca hedionda, é razoável o bebum falar que foi atropelado por um caminhão.

Se disser que foi atropelado literalmente, não deveria estar em casa, e sim no hospital ou no cemitério.

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Temer falou em coragem, mas calou sobre ausência em velório de dom Paulo
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Mário Magalhães

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Michel Temer, a cara de 2016 – Foto Dida Sampaio/Estadão Conteúdo

 

No pronunciamento televisivo da noite de Natal, Michel Temer falou em coragem dele e de seu governo (para assistir, basta clicar aqui).

Começou com ''coragem na ação''.

Insistiu: ''coragem e sentimento de esperança''.

Outra menção se referiu a dom Paulo Evaristo Arns (1921-2016): ''A esperança foi seu lema; a coragem, a sua marca''.

Temer desperdiçou a oportunidade para tentar explicar uma das atitudes mais pusilânimes da vida nacional em muito tempo: a ausência do presidente da República no velório de um brasileiro que dignificou o século 20 com coragem e generosidade.

Pegou carona no adeus de dom Paulo para se dizer inspirado pelo franciscano: ''Quero encerrar esta minha mensagem prestando homenagem a um grande brasileiro que nos deixou recentemente: o cardeal dom Paulo Evaristo Arns. A esperança foi seu lema; a coragem, a sua marca. Coragem e sentimento de esperança não me faltarão''.

O peemedebista fez forfait na despedida de dom Paulo porque estaria com medo de hostilidades.

Lá compareceram, na Catedral da Sé, políticos de ideias diversas como Luiz Inácio Lula da Silva, Geraldo Alckmin, Fernando Haddad e João Doria. Não fraquejaram.

Temer não deu as caras, mas mandou uma coroa de flores.

Coragem, quando restrita à palavra e sem correspondência nos gestos, não passa de covardia.

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História: De Castello a Temer, por que presidentes ‘dispensam’ popularidade
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Mário Magalhães

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Em traje civil, o marechal Castello Branco, o primeiro ditador da ditadura – Foto Folha Imagem

 

Em um café da manhã com jornalistas, Michel Temer pontificou: ''Um governo com popularidade extraordinária não poderia tomar medidas impopulares […] Estou aproveitando a suposta impopularidade para tomar medidas impopulares''.

O ''suposta'' fica por conta de insinceridade ou fantasia. De acordo com o Datafolha, somente 10% dos brasileiros consideram bom ou ótimo o governo Temer. Os que o avaliam ruim ou péssimo são 51%. Logo, inexiste suposição.

Temer, para quem enxerga perto, acata a sugestão dada em novembro pelo publicitário Nizan Guanaes: ''Já que o governo não tem índices de popularidade altos, aproveite presidente. A popularidade é uma jaula. Ninguém faz coisas contundentes com altos níveis de popularidade. Então, aproveite que o senhor ainda não tem altos índices de popularidade e faça coisas impopulares que serão necessárias e irão desenhar esse governo para os próximos anos. Aproveite sua impopularidade, tome medidas amargas, aliás este é o grande desafio das democracias do mundo''.

Quem vê longe no retrovisor sabe que a inspiração de Temer não é o publicitário da excêntrica lição ''ninguém faz coisas contundentes com altos níveis de popularidade''.

Há meio século, o marechal Humberto de Alencar Castello Branco também se jactava do que presumia ser sabedoria: como já era impopular, impunha medidas impopulares em série aos trabalhadores e aos cidadãos mais pobres.

Castello foi o primeiro presidente da ditadura que vigorou de 1964 a 1985. Governou até 1967, sem ter recebido um só voto do povo, depois da deposição do presidente constitucional João Goulart. Foi ''eleito'' pelo Congresso sem mandato para proclamar presidente. A eleição direta para o Planalto estava prevista para 1965. Primeiro, a ditadura adiou-a para 1966. Em seguida, extinguiu-a (só viria a acontecer em 1989).

Durante sua administração, Castello castigou os brasileiros com medidas que hoje caberiam no receituário do ''ajuste''. Constituíam um tremendo arrocho, com a imposição de perdas salariais perversas e baques nas condições de vida.

Luís Viana Filho, seu ministro do Gabinete Civil, recapitularia, orgulhoso: o marechal ''não vacilara ante a impopularidade''.

O jornal ''Diário de Notícias'' adulou Castello: ''O fantasma da impopularidade, se o atormenta, não o intimida''.

Castello disse a um antigo aliado com quem viria a romper: ''O senhor sabe que a Revolução está tomando medidas de caráter impopular''. Os golpistas tratavam como ''Revolução'' o regime nascido do golpe de Estado de 1964.

A um general norte-americano, seu amigo desde a década de 1940, Castello afirmou em agosto de 1966 estar ''bem ciente de como seu governo é impopular devido às suas medidas de austeridade anti-inflacionárias''.

Trocando em miúdos, Castello Branco governava secundarizando a aprovação dos eleitores. Não a dispensava, mas ela não era determinante. Por motivo singelo: o governante não dependia da vontade dos governados para se manter no cargo ou fazer o sucessor. Não dependera deles para empalmar o poder.

Num contexto histórico diferente, é também o que ocorre com Michel Temer. O presidente não chegou lá por meio do sufrágio popular (foi eleito para vice, e no tapetão se beneficiou da derrubada da presidente contra a qual conspirou). Tem pouca ou nenhuma possibilidade de vencer a eleição direta prevista para 2018 (só um doidão muito doido especula vitória nas urnas de um correligionário de Renan Calheiros, Eduardo Cunha e Romero Jucá).

Esta é uma das razões pelas quais a democracia faz bem: como é escolhido pelo voto do povo, o governante não pode _ou não deveria_ ignorar seus eleitores ao governar.

Temer bebe no ditador Castello, que deixou o governo muitíssimo impopular, como até as pesquisas de opinião da época demonstraram.

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Sabáticas: Sons do Natal
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Mário Magalhães

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Yoko Ono e John Lennon: uma canção de Natal contra a guerra – Foto reprodução

 

Todas as manhãs, de segunda a sexta e às vezes no sábado, eu rejeito a escada rolante e subo 33 degraus, na saída do metrô, antes de caminhar mais uns 12 passos e entrar no edifício meio neoclássico, meio art déco onde trabalho na Cinelândia. Embico para a escada estática porque, como me aboleto boa parte do dia diante do computador, ao menos faço um exerciciozinho a mais.

Enquanto avanço degrau por degrau, um relógio monumental, no alto de um prédio da rua do Passeio, vai ficando mais próximo e domina o horizonte. Com mais de meio século, a geringonça ainda funciona. Os cariocas a chamam de relógio da Mesbla.

Como sabe quem não nasceu ontem ou anteontem, a Mesbla foi uma rede de magazines que marcou época. Ao vislumbrar seu relógio, volta e meia cantarolo: “Na Mesbla, na Mesbla/ O maior Natal do Brasil/ Compre agora sem entrada/ E só comece a pagar em abril”.

A Mesbla se foi, mas seu jingle apregoando as compras de fim de ano aninhou-se na memória. Como o da Varig, cujo final era assim: “Papai Noel voando a jato pelo céu/ Trazendo um Natal de felicidade/ E um ano novo cheio de prosperidade”.

Corais infantis embalavam o do Banco Nacional, alvo de malícia da turma da galhofa: “Quero ver você não chorar/ Não olhar pra trás/ Nem se arrepender do que faz”. Encerrava: “Que o Natal existe/ Que ninguém é triste/ Que no mundo há sempre amor/ Bom Natal, um feliz Natal/ Muito amor e paz pra você”.

Nenhuma canção natalina me comoveu como a que o John Lennon e a Yoko Ono lançaram em 1971, com letra deles e melodia de uma velha balada inglesa: em Happy Xmas, mais do que a voz do antigo beatle, ecoava o coro pujante de crianças do Harlem, com a mensagem de que a guerra do Vietnã acabaria se cada um quisesse. O mundo adotou a música, as armas silenciaram dali a poucos anos, e Happy Xmas continua acalentando os sonhos das novas gerações.

Bom Natal, um feliz Natal.

(Publicado originalmente na revista Azul Magazine, dezembro de 2014)

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