Blog do Mario Magalhaes

Arquivo : janeiro 2014

Vassili Zaitsev, o franco-atirador que matava nazistas, conta sua história
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Mário Magalhães

Vassili Zaitsev, durante a 2ª Guerra - Foto reprodução internet

Vassili Zaitsev, na 2ª Guerra – Foto reprodução internet

 

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O russo Vassili Zaitsev (1915-1991) não tinha a lata, longe disso, do galã britânico Jude Law, que o interpretou no filme “Círculo de Fogo”.

É provável que o seu duelo com um inimigo alemão não tenha existido, ao menos como narrado no cinema e alguns livros.

Na Batalha de Stalingrado, ele não foi o franco-atirador mais profícuo nas trincheiras soviéticas.

Mesmo assim, sua história é grandiosa. Tão grandiosa que, na Rússia, o “sniper” sobreviveu como herói à desintegração da URSS.

Vassili matava nazistas, quatro ou cinco por dia, de acordo com ele.

O confronto em Stalingrado, cidade depois rebatizada como Volvogrado, mudou o rumo da guerra. Até Paulo Francis, que não simpatizava com os soviéticos, reconhecia: foram eles, no frigir das bombas, que decidiram o conflito.

Para quem não sabe: somados, morreram perto de 800 mil norte-americanos e britânicos na carnificina que se estendeu de 1939 a 45. Soviéticos, em cifra jamais sacramentada, pereceram em torno de 27 milhões.

As façanhas de Vassili Zaitsev voltaram a ser comentadas na Espanha, por ocasião do lançamento de suas memórias. O “El País” publicou reportagem também no seu site em português.

Na infância, Vassili caçava lobos com seu pai. Adulto, com um fuzil de mira telescópica, alvejava alemães. Liquidou quase 250 deles.

Mais histórias sobre o célebre franco-atirador estão no “El País” (leia aqui).


Verão no Rio: picolé de cerveja
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Mário Magalhães

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Domingo, pelas três e meia tarde, sol na moleira, termômetro de rua cravando 36 graus, passa o ambulante no calçadão da praia anunciando no gogó de responsa:

“Picolé!”

Um homem jovem como o vendedor pergunta, gaiato:

“Tem de cerveja?”

Resposta do ambulante:

“Se tivesse, eu já tava chapado.”

(Para quem se interessar, encontrei na internet esta receita de picolé de cerveja.)


Palavras malditas (7): amigo pessoal
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Mário Magalhães

Na “Tribuna da Imprensa”, em 1986, eu escrevia em máquinas – Foto multtclique.com.br

 

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Vai que alguém sabe o que é amigo impessoal, e eu, como tantas vezes, é que estou por fora.

Será o amigo impessoal aquele que não é humano? Pato com pato, rato com rato, tubarão com tubarão.

Dos mais pernósticos aos mais coloquiais escribas, muito caem na esparrela do amigo pessoal.

O propósito é quase sempre o mesmo: informar que, além de certas identidades, os personagens mantêm proximidade afetiva.

Basta chamar de amigo. Um e outro são amigos. Outros e uns são correligionários, partidários.

Assim: além de membros da mesma agremiação, beltrano e sicrano são amigos.

Não existe, até luz em contrário, amigo pessoal, e sim amigo, esse substantivo tão bonito.


‘As Dilmas’, por Janio de Freitas
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Mário Magalhães

A presidente Dilma Rousseff no fórum de Davos – Foto Ruben Sprich/Reuters

 

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As Dilmas

Por Janio de Freitas (“Folha de S. Paulo”, domingo)

Ir à Suíça para dizer como está o Brasil de hoje, isso não faz sentido. Dilma Rousseff choveu, não no molhado, mas em uma inundação digna de São Paulo. Os endinheirados a quem a presidente pediu investimentos ocupam-se de ganhar dinheiro pelo mundo afora, o que lhes exige, e aos seus assessores, estar bem informados para detectar oportunidades. No convescote dos cifrões, mal denominado Fórum Econômico Mundial, por certo muitos sabiam sobre o Brasil o que nem no Brasil se sabe.

A Dilma Rousseff que foi a Davos não é a Dilma Rousseff que chegou à Presidência. Não é o oposto, mas é bastante diferente. Se nos princípios ou nos fins, eis a questão. Fernando Henrique e Lula, mal ouviram falar em Davos e seu pessoal, começaram a preparar as malas. A ida de Dilma, só agora no ano final do mandato, reflete dupla concessão. Uma, na concepção de políticas governamentais que a levavam a desconsiderar Davos, convicta de um Brasil capaz de cuidar de si mesmo. Outra, no seu diagnóstico do momento vivido pelo país e, em particular, pelo governo.

A íntegra da coluna pode ser lida clicando aqui.


O esquecimento é amigo da barbárie: Santa Maria, um ano, 242 vidas
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Mário Magalhães

blog - santa maria 01

Integrantes do Movimento Santa Maria do Luto à Luta; Carina Corrêa é a quinta, da esq. para a dir.

 

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Hoje faz um ano, e o coração de quem perdeu seus amores carrega a dor eterna.

Em maio, eu estive em Santa Maria e conversei com quem sofria e sofre. Abaixo, republico a reportagem.

Nos meses seguintes, a mobilização foi se esvaziando, nomes de movimentos mudaram.

Desgraçadamente, os temores de impunidade se confirmaram, até agora. Ninguém está preso, a CPI deu em nada.

Enquanto tragédias criminosas como a da boate Kiss permanecerem impunes, mais à vontade se sentirá quem se dispõe a trocar vidas por um punhado de dinheiro.

* * *

Em Santa Maria (RS)

Maio de 2013

Enquanto cumprimentava o pessoal do Movimento Santa Maria do Luto à Luta, eu imaginava o parentesco de cada um com a gurizada morta na tragédia da boate Kiss. Como logo se confirmaria, havia primas, irmãs, amigas e um pai _logo chegou outro. Diante do ar adolescente de Carina Corrêa, cogitei que ela tivesse perdido a irmã.

Thanise, uma moça bonita de 18 anos, parecia mesmo sua irmã, um pouco mais nova. Era assim que as pessoas as reconheciam quando as viam caminhando serelepes pelas ruas da cidade. Mas a estudante de filosofia não era irmã de Carina, a auxiliar em nutrição que, aos 34 anos, há muito se despediu da adolescência. Thanise era sua filha.

Carina foi mãe aos 15 anos. Empenhada em iniciativas que reivindicam punição dos responsáveis pelo incêndio que matou 242 pessoas, ela conta ter ouvido de uma autoridade impaciente com as cobranças por justiça: “O que eu tenho a ver com os filhos de vocês?”.

Hoje, Carina veste a camisa negra com o mote, citação de Cazuza, do movimento que rejeita as acusações de partidarismo proferidas por correligionários do prefeito Cezar Schirmer (PMDB): “Meu partido é um coração partido”.

Foi com o coração partido que Marília Torres Ribeiro, a idealizadora do grupo, fez duas promessas em seguida à morte da prima Flávia, filha única de 22 anos, e outras quatro amigas: “Cuidar da minha tia e lutar por justiça para as gurias. Porque não foi fatalidade, foi assassinato”.

Um mês depois do horror de 27 de janeiro, Marília e seus companheiros mobilizaram 2.500 pessoas em uma passeata contra a impunidade. Ela leu seu discurso: “[…] Vidas que nos foram roubadas, tiradas por negligência do serviço público, por falta de fiscalização das autoridades ditas competentes e pela ganância de alguns ‘empresários’ da noite”. Alertou, sobre a Comissão Parlamentar de Inquérito criada pela Câmara Municipal para investigar o incêndio: “É nossa obrigação enquanto cidadãos fiscalizar, acompanhar e exigir que essa CPI mascarada que foi instalada não acabe em pizza”.

É o que eles têm feito, embora as ilusões desvaneçam. “Vai sair uma pizza grande”, prevê Flávio José da Silva. “Se depender dessa CPI, jamais haverá justiça.” Andrieli, aluna de cursinho pré-vestibular filha de Flávio, festejara 22 anos três dias antes de perder a vida na Kiss.

A apuração sobre os responsáveis pela tragédia foi tocada pela Polícia Civil e pelo Ministério Público. Caberia à CPI esquadrinhar as falhas do serviço público que permitiram à boate funcionar sem condições de segurança e identificar responsáveis. O propósito é prevenir que episódios semelhantes se repitam na cidade.

“O problema é que blindam as pessoas que poderiam enfrentar um julgamento político, como o prefeito, secretários e demais agentes públicos”, observa o advogado Rodrigo Dias, representante do movimento. “A CPI só está refazendo o trabalho que já foi feito pela polícia e o Ministério Público”, lamenta Sérgio da Silva.

Filho de Sérgio, Augusto, de 20 anos, concluiria a faculdade de direito em agosto de 2014, se não tivesse morrido em meio ao fogo e à fumaça. Sérgio é um dos diretores da Associação de Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria, primeira entidade surgida das cinzas da madrugada de 27 de janeiro.

O receio de frustração com a CPI cresceu devido a uma decisão da semana retrasada, de não convocar para depor os dois proprietários da Kiss que estão presos. Como se Elissandro Spohr e Mauro Hoffmann não tivessem nada a esclarecer sobre as relações que mantinham com funcionários públicos para manter a boate aberta.

Presidente da CPI, a vereadora Maria de Lourdes Castro (PMDB) alegou que cabe à Justiça as sanções criminais, enquanto a comissão da Câmara deve se debruçar sobre o papel da prefeitura. Na sessão da CPI de 9 de maio, Maria de Lourdes afirmou que Santa Maria “tem que voltar a sorrir”. E pediu aos “formadores de opinião” que não recorram à tragédia para “fomentar o ódio”.

“Também queremos seguir a vida, mas depois que houver justiça”, retruca Vanessa Vasconcellos, segurando sua cuia de chimarrão que é abastecida diariamente por três garrafas térmicas com água quente. Sua irmã Letícia, funcionária da Kiss, deixou órfãos filhos de 13 e seis anos. “Há vereadores que dizem que é vingança, ódio nosso, mas é democracia”, argumenta Carina Corrêa, que organizou um ato pelo impeachment do prefeito.

A manifestação mais recente do Movimento Santa Maria do Luto à Luta reuniu 500 pessoas, um quinto da primeira. Carina diz que um dia desses uma pessoa que considera exacerbada sua pregação disparou: “Lugar de mãe é chorando, e não fazendo protesto”.

Outro lado

Presidente da CPI, a vereadora Maria de Lourdes Castro, 56, sustenta que boa parte das críticas se origina de incompreensão sobre as atribuições da comissão: “A CPI visa fazer uma investigação de fatos, ações e omissões administrativas que podem ter levado à tragédia”.

Não haverá pizza porque, ela afirma, “a CPI não tem competência para julgar ou condenar alguém. Ela analisa o que levou a isso, oferece sugestões para que não volte a acontecer”.

Na quarta-feira vão depor mais quatro fiscais do município _oito já foram ouvidos. “Chamamos pessoas das secretarias de Mobilidade Urbana e de Finanças, que foram direta ou indiretamente responsáveis pela legislação, pela autorização e pela fiscalização.”

A vereadora rebate a acusação de blindagem política: “Se tu fores ver todas as pessoas que falaram na CPI vais ver que não existe interferência nenhuma. Tudo o que foi feito [para liberar a Kiss] foi legal. O problema é que a lei é pífia, absurda”. De acordo com Maria de Lourdes, um decreto municipal de 2002 permite a estabelecimentos como a boate incendiada funcionarem precariamente. A CPI proporá a mudança das leis relativas ao tema.

A presidente diz que a CPI resolveu por unanimidade não convocar os donos da Kiss porque eles “são réus, respondem a processo-crime, não haveria por quê. As perguntas que querem fazer para eles podem ser feitas no Judiciário. Não se poderia permitir que houvesse interferência do Legislativo no Judiciário e do Judiciário no Legislativo. Acreditamos na competência de cada Poder”.

Parentes das vítimas haviam assinalado que a CPI poderia indagar a respeito de eventual pagamento de propina a servidores públicos. “Então por que nada foi dito sobre isso no inquérito policial?”, questiona a vereadora.

Os três membros da CPI são da base do prefeito.  Além de Maria de Lourdes, do PMDB, há um vereador do PP e um do DEM. A presidente aponta partidarismo em certos críticos. “Não aceito que uma tragédia desse tamanho sirva de palco para disputas políticas.”

O prefeito Cezar Schirmer será chamado a depor, mas a CPI já concluiu que todos os procedimentos para emissão do alvará da boate Kiss respeitaram a lei.


São Paulo, 460: há 30 anos, Campanha das Diretas arrancava na praça da Sé
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Mário Magalhães

Primeira página da "Folha", 26 de janeiro de 1984

Primeira página da “Folha”, 26 de janeiro de 1984

 

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Início do fim da ditadura houve vários, e nenhuma história sincera da República pode ignorar o protesto de três décadas atrás na praça da Sé. No dia 25 de janeiro de 1984, São Paulo completava 430 anos, uma geração de balzaquiana mais nova que o aniversário de hoje.

Nunca se soube com certeza se a multidão somou na casa da centena de milhares ou na de centenas. Havia muita gente, como documentou fotografia do Fernando Santos, na primeira página da “Folha de S. Paulo” do dia seguinte.

A Campanha das Diretas não começou ali, mas foi então que deslanchou o movimento de massas que varreria o país exigindo que o povo elegesse o presidente. A última eleição direta ocorrera em 1960 _a de 1965 foi cancelada pela ditadura instaurada em abril de 1964.

Eu não estive na Sé, e sim na Candelária, na tarde-noite de 10 de abril de 1984, quando estimadas _a rigor, chutadas_ 1 milhão de almas se comprimiram no comício mais grandioso a que eu assisti, e de que participei. No palco, Belchior cantarolou à capela: “Saia do meu caminho, eu prefiro andar sozinho…”.

Candelária, Anhangabaú, praças e coretos país afora, todas as manifestações da campanha vieram na esteira da praça da Sé. A emenda das Diretas Já não passaria no Congresso, mas o regime agonizava.

O Brasil deve essa a São Paulo e aos paulistanos. Mais essa.

Tim-tim.


50 anos pós-1964, paranoia de golpe vermelho ecoa no Leblon em cena cômica
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Mário Magalhães

blog - jb, 1964

“Jornal do Brasil”, 23 de janeiro de 1964

 

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Clicando no vídeo lá em cima, é possível ver e rever o salseiro no Leblon domingo passado. Como se sabe, alguns moradores do bairro, incomodados, deram piti e peitaram pessoas que queriam participar do rolezinho que acabou não rolando no Shopping Leblon _o estabelecimento fechou as portas.

Para além do sofisticado, digno de escola de altos estudos, bate-boca sobre imperialismo, direita e esquerda, o melhor desempenho humorístico foi da senhora de máquina fotográfica, e ninguém tasca.

Parecendo em transe, a madame não gostou quando o cineasta, entre uma bravata e outra em que se jactava de ganhar bem, encarou o Batman e julgou:

“Esses são caras de direita que não querem ver que o país avançou”.

Na desinteligência, ela estava ao lado do cabeça branca, mas não gostou:

“Não é de direita, não. Eu sou de direita e não faria isso”.

Logo a retratista pontificou:

“Existe um plano de ocupação comunista, totalitarista no país. Será que ninguém vê isso?”

Pois é, eu não vejo, mas conheço a origem da paranoia.

Pode-se encontrá-lo em quadras históricas anteriores, mas o espantalho se concentra nas vésperas do golpe de Estado que derrubou o presidente João Goulart em 1964. Bilac Pinto, deputado federal da golpista UDN (União Democrática Nacional), pregava incansavelmente uma dita tese de que estava em curso uma guerra revolucionária no Brasil. Os comunistas vinham aí, e a cuca iria pegar. Muitos brasileiros, notadamente incautos de classe média, fiavam-se na lorota.

Assim como não existia guerra revolucionária em 1964, não haverá golpe agora. Para haver virada de mesa institucional, interesses de poderosos têm de ser severamente ameaçados.

Meio século atrás, a anunciada reforma agrária de Jango e medidas governamentais como a limitação de remessa de lucros para o exterior contrariavam latifundiários e empresas multinacionais, para resumir em dois exemplos.

Hoje, os proprietários de terra lucram como nunca lucraram no Brasil, e bancos estrangeiros salvam aqui suas contas claudicantes nos países de origem.

O rolezinho não rolou no Leblon no fim de janeiro de 2014.

A capa do “Jornal do Brasil”, acima, é de 23 de janeiro de 1964. No meio da página agiganta-se a chamada “UDN dá apoio à denúncia de Bilac”. Denúncia de guerra revolucionária com a participação de Jango.

Os comunistas não deram o golpe e poucos deles resistiram à quartelada.

Quem deu o golpe foram militares e civis que, como a dona do Leblon, disseminavam a empulhação do perigo vermelho.


‘Advogando em causa própria’, por André Barros
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Mário Magalhães

André Barros, o “advogado da Marcha da Maconha” – Foto reprodução internet

 

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O advogado André Barros escreveu um artigo contando um episódio incrível: preso injustamente como ladrão, um jovem cozinheiro morador do Chapéu Mangueira, morro aqui do Leme, seria morto por traficantes na cadeia, mas usou a cuca para se salvar. Contra a barbárie, a força das ideias.

Meu chapa, mas não parente, desde que na adolescência o chamávamos de André Magalhães, seu outro sobrenome, o André ficou conhecido no Rio como o “advogado da Marcha da Maconha”. Integra a Comissão de Direitos Humanos da OAB/RJ.

Ele havia mandado o texto por e-mail, e autorizou a publicação aqui no blog.

* * *

Advogando em causa própria

Por André Barros

Conversando com um amigo de infância num dos visuais mais lindos da cidade, o pico do morro do Chapéu Mangueira, comentava sobre o primeiro encontro antiproibicionista do Rio de Janeiro, realizado no campus da Praia Vermelha da UFRJ. Quando falei que o sistema penal servia apenas para prender negros, pobres e jovens e manter toda a brutal desigualdade desse sistema capitalista, ele me contou uma história incrível.

Há cerca de 20 anos, este jovem, negro, pobre e morador do bairro, fazia o habitual exercício dos moradores de correr pelas areias da praia de Copacabana, quando ocorreu um assalto no local. Meu amigo foi preso por este fato, levado à delegacia policial e, mesmo após a vítima assaltada ter afirmado que ele não era o autor do crime, foi autuado em flagrante delito. Ficou 10 meses preso, até que um grande advogado, seu amigo do asfalto, pegou sua causa.

A defesa arrolou uma série de testemunhas do Leme, que disseram tratar-se de jovem trabalhador, já brilhante cozinheiro, e pessoa totalmente da paz. O juiz perguntou ao acusado como se fazia um fettuccine, prato favorito do meritíssimo. O réu deu uma aula de culinária ao contar como se fazia o prato italiano com camarão. Diante da evidência dos fatos, o próprio promotor de justiça pediu a absolvição do jovem cozinheiro e, finalmente, a expedição de seu alvará de soltura foi determinada pelo magistrado. Como acontece em quase todos os casos, o injustiçado não quis mais saber da Justiça e não entrou com ação de responsabilidade do Estado, no caso, pelos 10 meses de injustiça na terrível cadeia medieval carioca.

Mas a história começa aqui. O jovem cozinheiro contou momentos de horror de outro julgamento que passou dentro da cadeia. Perto de sair daquela masmorra, recebeu a visita de sua mulher. Abraçando a esposa sentiu o chute do filho de sete meses na barriga da gestante. Após a visita deu um beijo forte na esposa, em sua barriga, e voltou pra cela.

O jovem, negro e cozinheiro, morava no Chapéu Mangueira. À época, a facção que dominava o morro era o comando vermelho. Mas o amigo cumpria pena em presídio dominado por duas facções inimigas, o terceiro comando e os amigos dos amigos. Os presos são distribuídos nesses presídios pelo locais das facções que dominam os lugares onde eles moram.

Mesmo conseguindo manter durante quase 10 meses um bom convívio no local, nesse dia foi diferente. Ele foi levado para outra cela, onde seria enforcado. Não tinha noção de que a “teresa” que ajudou a produzir, grande corda de restos de panos trançados usada em fugas ou execuções, era pra ele mesmo. Mirando a “teresa”, pensando em seu primeiro filho, o cozinheiro disse que não iria colocar a cabeça para ser enforcado.

Seus executores apresentaram então como opção uma lança e uma espada, grandes e brilhantes, chamadas de Highlander, parecidas com as do filme. Ele começou então a se defender. Disse que era trabalhador e o único crime que cometia era consumir drogas e se essa era razão para matá-lo, que podiam então começar. Mas que não era de facção alguma e era injusto ele morrer, por morar num local dominado por outra facção. Eis que um dos acusadores conta que, quando tinha 12 anos, seu irmão foi assassinado pelo comando vermelho, porque o local onde morava era dominado por outra facção, logo dizendo que seu argumento não servia e que ele seria morto. Veio então uma questão das profundezas da maior crítica a todo esse sistema penal, através de uma observação em que o cozinheiro, advogando brilhantemente em causa própria, levantou a questão fundamental: “mas seu irmão não vai aparecer de novo e seu problema não será resolvido com minha morte!”.

Diante de sua luta pelo direito à vida, um dos acusadores, com poder de morte, disse que ele era maneiro, estava sendo observado e, diante daqueles argumentos ele teria uma chance com a chegada naquela cadeia de outro conhecido, que atestaria se ele era ou não “bandido”.

Depois de confirmado que ele era realmente trabalhador, não foi enforcado, nem esquartejado, e terminou seus últimos dias na prisão em bom relacionamento com todos. Foi um advogado brilhante, teve calma de argumentar, mesmo quando estava entre a vida e a morte. Ficou literalmente com a lança, a espada e a corda no pescoço. Ganhou a causa de sua vida, está vivo, continua cozinhando, alegre e falante, como sempre foi desde os tempos do futebol de praia nas areias do Leme e Copacabana.

ANDRÉ BARROS, advogado da Marcha da Maconha, mestre em ciências penais, membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB/RJ e membro do Institutos dos Advogados Brasileiros.