Blog do Mario Magalhaes

‘Advogando em causa própria’, por André Barros

Mário Magalhães

André Barros, o ''advogado da Marcha da Maconha'' – Foto reprodução internet

 

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O advogado André Barros escreveu um artigo contando um episódio incrível: preso injustamente como ladrão, um jovem cozinheiro morador do Chapéu Mangueira, morro aqui do Leme, seria morto por traficantes na cadeia, mas usou a cuca para se salvar. Contra a barbárie, a força das ideias.

Meu chapa, mas não parente, desde que na adolescência o chamávamos de André Magalhães, seu outro sobrenome, o André ficou conhecido no Rio como o ''advogado da Marcha da Maconha''. Integra a Comissão de Direitos Humanos da OAB/RJ.

Ele havia mandado o texto por e-mail, e autorizou a publicação aqui no blog.

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Advogando em causa própria

Por André Barros

Conversando com um amigo de infância num dos visuais mais lindos da cidade, o pico do morro do Chapéu Mangueira, comentava sobre o primeiro encontro antiproibicionista do Rio de Janeiro, realizado no campus da Praia Vermelha da UFRJ. Quando falei que o sistema penal servia apenas para prender negros, pobres e jovens e manter toda a brutal desigualdade desse sistema capitalista, ele me contou uma história incrível.

Há cerca de 20 anos, este jovem, negro, pobre e morador do bairro, fazia o habitual exercício dos moradores de correr pelas areias da praia de Copacabana, quando ocorreu um assalto no local. Meu amigo foi preso por este fato, levado à delegacia policial e, mesmo após a vítima assaltada ter afirmado que ele não era o autor do crime, foi autuado em flagrante delito. Ficou 10 meses preso, até que um grande advogado, seu amigo do asfalto, pegou sua causa.

A defesa arrolou uma série de testemunhas do Leme, que disseram tratar-se de jovem trabalhador, já brilhante cozinheiro, e pessoa totalmente da paz. O juiz perguntou ao acusado como se fazia um fettuccine, prato favorito do meritíssimo. O réu deu uma aula de culinária ao contar como se fazia o prato italiano com camarão. Diante da evidência dos fatos, o próprio promotor de justiça pediu a absolvição do jovem cozinheiro e, finalmente, a expedição de seu alvará de soltura foi determinada pelo magistrado. Como acontece em quase todos os casos, o injustiçado não quis mais saber da Justiça e não entrou com ação de responsabilidade do Estado, no caso, pelos 10 meses de injustiça na terrível cadeia medieval carioca.

Mas a história começa aqui. O jovem cozinheiro contou momentos de horror de outro julgamento que passou dentro da cadeia. Perto de sair daquela masmorra, recebeu a visita de sua mulher. Abraçando a esposa sentiu o chute do filho de sete meses na barriga da gestante. Após a visita deu um beijo forte na esposa, em sua barriga, e voltou pra cela.

O jovem, negro e cozinheiro, morava no Chapéu Mangueira. À época, a facção que dominava o morro era o comando vermelho. Mas o amigo cumpria pena em presídio dominado por duas facções inimigas, o terceiro comando e os amigos dos amigos. Os presos são distribuídos nesses presídios pelo locais das facções que dominam os lugares onde eles moram.

Mesmo conseguindo manter durante quase 10 meses um bom convívio no local, nesse dia foi diferente. Ele foi levado para outra cela, onde seria enforcado. Não tinha noção de que a “teresa” que ajudou a produzir, grande corda de restos de panos trançados usada em fugas ou execuções, era pra ele mesmo. Mirando a “teresa”, pensando em seu primeiro filho, o cozinheiro disse que não iria colocar a cabeça para ser enforcado.

Seus executores apresentaram então como opção uma lança e uma espada, grandes e brilhantes, chamadas de Highlander, parecidas com as do filme. Ele começou então a se defender. Disse que era trabalhador e o único crime que cometia era consumir drogas e se essa era razão para matá-lo, que podiam então começar. Mas que não era de facção alguma e era injusto ele morrer, por morar num local dominado por outra facção. Eis que um dos acusadores conta que, quando tinha 12 anos, seu irmão foi assassinado pelo comando vermelho, porque o local onde morava era dominado por outra facção, logo dizendo que seu argumento não servia e que ele seria morto. Veio então uma questão das profundezas da maior crítica a todo esse sistema penal, através de uma observação em que o cozinheiro, advogando brilhantemente em causa própria, levantou a questão fundamental: “mas seu irmão não vai aparecer de novo e seu problema não será resolvido com minha morte!”.

Diante de sua luta pelo direito à vida, um dos acusadores, com poder de morte, disse que ele era maneiro, estava sendo observado e, diante daqueles argumentos ele teria uma chance com a chegada naquela cadeia de outro conhecido, que atestaria se ele era ou não “bandido”.

Depois de confirmado que ele era realmente trabalhador, não foi enforcado, nem esquartejado, e terminou seus últimos dias na prisão em bom relacionamento com todos. Foi um advogado brilhante, teve calma de argumentar, mesmo quando estava entre a vida e a morte. Ficou literalmente com a lança, a espada e a corda no pescoço. Ganhou a causa de sua vida, está vivo, continua cozinhando, alegre e falante, como sempre foi desde os tempos do futebol de praia nas areias do Leme e Copacabana.

ANDRÉ BARROS, advogado da Marcha da Maconha, mestre em ciências penais, membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB/RJ e membro do Institutos dos Advogados Brasileiros.