Blog do Mario Magalhaes

O esquecimento é amigo da barbárie: Santa Maria, um ano, 242 vidas

Mário Magalhães

blog - santa maria 01

Integrantes do Movimento Santa Maria do Luto à Luta; Carina Corrêa é a quinta, da esq. para a dir.

 

( O blog agora está no Facebook e no Twitter )

Hoje faz um ano, e o coração de quem perdeu seus amores carrega a dor eterna.

Em maio, eu estive em Santa Maria e conversei com quem sofria e sofre. Abaixo, republico a reportagem.

Nos meses seguintes, a mobilização foi se esvaziando, nomes de movimentos mudaram.

Desgraçadamente, os temores de impunidade se confirmaram, até agora. Ninguém está preso, a CPI deu em nada.

Enquanto tragédias criminosas como a da boate Kiss permanecerem impunes, mais à vontade se sentirá quem se dispõe a trocar vidas por um punhado de dinheiro.

* * *

Em Santa Maria (RS)

Maio de 2013

Enquanto cumprimentava o pessoal do Movimento Santa Maria do Luto à Luta, eu imaginava o parentesco de cada um com a gurizada morta na tragédia da boate Kiss. Como logo se confirmaria, havia primas, irmãs, amigas e um pai _logo chegou outro. Diante do ar adolescente de Carina Corrêa, cogitei que ela tivesse perdido a irmã.

Thanise, uma moça bonita de 18 anos, parecia mesmo sua irmã, um pouco mais nova. Era assim que as pessoas as reconheciam quando as viam caminhando serelepes pelas ruas da cidade. Mas a estudante de filosofia não era irmã de Carina, a auxiliar em nutrição que, aos 34 anos, há muito se despediu da adolescência. Thanise era sua filha.

Carina foi mãe aos 15 anos. Empenhada em iniciativas que reivindicam punição dos responsáveis pelo incêndio que matou 242 pessoas, ela conta ter ouvido de uma autoridade impaciente com as cobranças por justiça: “O que eu tenho a ver com os filhos de vocês?”.

Hoje, Carina veste a camisa negra com o mote, citação de Cazuza, do movimento que rejeita as acusações de partidarismo proferidas por correligionários do prefeito Cezar Schirmer (PMDB): “Meu partido é um coração partido”.

Foi com o coração partido que Marília Torres Ribeiro, a idealizadora do grupo, fez duas promessas em seguida à morte da prima Flávia, filha única de 22 anos, e outras quatro amigas: “Cuidar da minha tia e lutar por justiça para as gurias. Porque não foi fatalidade, foi assassinato”.

Um mês depois do horror de 27 de janeiro, Marília e seus companheiros mobilizaram 2.500 pessoas em uma passeata contra a impunidade. Ela leu seu discurso: “[…] Vidas que nos foram roubadas, tiradas por negligência do serviço público, por falta de fiscalização das autoridades ditas competentes e pela ganância de alguns ‘empresários’ da noite”. Alertou, sobre a Comissão Parlamentar de Inquérito criada pela Câmara Municipal para investigar o incêndio: “É nossa obrigação enquanto cidadãos fiscalizar, acompanhar e exigir que essa CPI mascarada que foi instalada não acabe em pizza”.

É o que eles têm feito, embora as ilusões desvaneçam. “Vai sair uma pizza grande”, prevê Flávio José da Silva. “Se depender dessa CPI, jamais haverá justiça.” Andrieli, aluna de cursinho pré-vestibular filha de Flávio, festejara 22 anos três dias antes de perder a vida na Kiss.

A apuração sobre os responsáveis pela tragédia foi tocada pela Polícia Civil e pelo Ministério Público. Caberia à CPI esquadrinhar as falhas do serviço público que permitiram à boate funcionar sem condições de segurança e identificar responsáveis. O propósito é prevenir que episódios semelhantes se repitam na cidade.

“O problema é que blindam as pessoas que poderiam enfrentar um julgamento político, como o prefeito, secretários e demais agentes públicos”, observa o advogado Rodrigo Dias, representante do movimento. “A CPI só está refazendo o trabalho que já foi feito pela polícia e o Ministério Público”, lamenta Sérgio da Silva.

Filho de Sérgio, Augusto, de 20 anos, concluiria a faculdade de direito em agosto de 2014, se não tivesse morrido em meio ao fogo e à fumaça. Sérgio é um dos diretores da Associação de Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria, primeira entidade surgida das cinzas da madrugada de 27 de janeiro.

O receio de frustração com a CPI cresceu devido a uma decisão da semana retrasada, de não convocar para depor os dois proprietários da Kiss que estão presos. Como se Elissandro Spohr e Mauro Hoffmann não tivessem nada a esclarecer sobre as relações que mantinham com funcionários públicos para manter a boate aberta.

Presidente da CPI, a vereadora Maria de Lourdes Castro (PMDB) alegou que cabe à Justiça as sanções criminais, enquanto a comissão da Câmara deve se debruçar sobre o papel da prefeitura. Na sessão da CPI de 9 de maio, Maria de Lourdes afirmou que Santa Maria “tem que voltar a sorrir”. E pediu aos “formadores de opinião” que não recorram à tragédia para “fomentar o ódio”.

“Também queremos seguir a vida, mas depois que houver justiça”, retruca Vanessa Vasconcellos, segurando sua cuia de chimarrão que é abastecida diariamente por três garrafas térmicas com água quente. Sua irmã Letícia, funcionária da Kiss, deixou órfãos filhos de 13 e seis anos. “Há vereadores que dizem que é vingança, ódio nosso, mas é democracia”, argumenta Carina Corrêa, que organizou um ato pelo impeachment do prefeito.

A manifestação mais recente do Movimento Santa Maria do Luto à Luta reuniu 500 pessoas, um quinto da primeira. Carina diz que um dia desses uma pessoa que considera exacerbada sua pregação disparou: “Lugar de mãe é chorando, e não fazendo protesto”.

Outro lado

Presidente da CPI, a vereadora Maria de Lourdes Castro, 56, sustenta que boa parte das críticas se origina de incompreensão sobre as atribuições da comissão: “A CPI visa fazer uma investigação de fatos, ações e omissões administrativas que podem ter levado à tragédia”.

Não haverá pizza porque, ela afirma, “a CPI não tem competência para julgar ou condenar alguém. Ela analisa o que levou a isso, oferece sugestões para que não volte a acontecer”.

Na quarta-feira vão depor mais quatro fiscais do município _oito já foram ouvidos. “Chamamos pessoas das secretarias de Mobilidade Urbana e de Finanças, que foram direta ou indiretamente responsáveis pela legislação, pela autorização e pela fiscalização.”

A vereadora rebate a acusação de blindagem política: “Se tu fores ver todas as pessoas que falaram na CPI vais ver que não existe interferência nenhuma. Tudo o que foi feito [para liberar a Kiss] foi legal. O problema é que a lei é pífia, absurda”. De acordo com Maria de Lourdes, um decreto municipal de 2002 permite a estabelecimentos como a boate incendiada funcionarem precariamente. A CPI proporá a mudança das leis relativas ao tema.

A presidente diz que a CPI resolveu por unanimidade não convocar os donos da Kiss porque eles “são réus, respondem a processo-crime, não haveria por quê. As perguntas que querem fazer para eles podem ser feitas no Judiciário. Não se poderia permitir que houvesse interferência do Legislativo no Judiciário e do Judiciário no Legislativo. Acreditamos na competência de cada Poder”.

Parentes das vítimas haviam assinalado que a CPI poderia indagar a respeito de eventual pagamento de propina a servidores públicos. “Então por que nada foi dito sobre isso no inquérito policial?”, questiona a vereadora.

Os três membros da CPI são da base do prefeito.  Além de Maria de Lourdes, do PMDB, há um vereador do PP e um do DEM. A presidente aponta partidarismo em certos críticos. “Não aceito que uma tragédia desse tamanho sirva de palco para disputas políticas.”

O prefeito Cezar Schirmer será chamado a depor, mas a CPI já concluiu que todos os procedimentos para emissão do alvará da boate Kiss respeitaram a lei.