Blog do Mario Magalhaes

Arquivo : outubro 2013

‘Marighella’ vence Jabuti; prêmio para biografia corre risco de extinção
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Mário Magalhães

 

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Compartilho uma grande notícia: o livro “Marighella – O guerrilheiro que incendiou o mundo”, escrito por este blogueiro e editado pela Companhia das Letras, venceu o Prêmio Jabuti de 2013, como melhor biografia.

Tenho a honra de dividir a premiação com dois craques: a historiadora Mary Del Priore, em segundo lugar, com “A carne e o sangue”; e o colega Lira Neto, em terceiro, com “Getúlio: dos anos de formação à conquista do poder (1882-1930)”.

O resultado completo do mais tradicional prêmio literário do país, promovido pela Câmara Brasileira do Livro, pode ser consultado clicando aqui.

As páginas do livro com agradecimentos são mais numerosas do que as de alguns capítulos. Depois do lançamento, minha gratidão estendeu-se a muitas outras pessoas, de cuja generosidade eu jamais esquecerei. Neste post, contei um pouco do que é se dedicar por nove anos ao sonho de contar a história de um brasileiro maldito, goste-se ou não dele: “Caixa-preta de um biógrafo falido (debate público, confissões privadas)”.

Curador do Jabuti desde 1991, José Luiz Goldfarb fez o seguinte comentário ontem, durante a apuração dos votos dos jurados (leia aqui): a categoria biografia do prêmio está “ameaçada de extinção”.

Tem razão: nossos grandes biógrafos, como Fernando Morais, Lira Neto e Ruy Castro, já avisaram que desistirão de escrever biografias caso a legislação atual seja mantida. O Código Civil permite que o biografado ou seus parentes proíbam uma biografia não autorizada que, a seus olhos, fira a “boa fama” do personagem.

A lei confere aos descendentes de Carlos Marighella, D. Pedro I e Getúlio Vargas, os protagonistas das biografias premiadas no Jabuti, o poder de vetar a circulação dos livros. Isso não ocorreu porque o espírito público, a compreensão de que aqueles gigantes da história são patrimônio nacional, impediu-os de impor biografias chapas-brancas e censura prévia.

Muito, muitíssimo obrigado ao pessoal do Prêmio Jabuti e a tanta gente que deu tanta força à biografia que eu escrevi.


‘Meu caro Chico’: minha carta ao Chico Buarque
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Mário Magalhães

Chico Buarque em leitura do seu livro “Leite Derramado” – Foto Danilo Verpa/Folhapress

 

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“O Globo” publica hoje minha resposta ao artigo de Chico Buarque, veiculado ontem pelo jornal. A controvérsia, é claro, trata de biografias não autorizadas e censura. Discuto ideias. A íntegra está abaixo.

O texto do grande compositor, cantor e escritor pode ser lido aqui no blog.

A edição de hoje de “O Globo” traz também um extrato de artigo do editor Luiz Schwarcz, cuja íntegra está no blog da Companhia das Letras. E um texto (aqui) do jornalista Paulo Cesar de Araújo, autor da ótima biografia de Roberto Carlos que o biografado logrou proibir na Justiça.

*

Meu caro Chico

MÁRIO MAGALHÃES

Especial para O GLOBO

Caríssimo Chico Buarque, eis o artigo do Código Civil que o grupo Procure Saber, ao qual você pertence, batalha para eternizar:

“Salvo se autorizadas […], a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais”.

Quando você lançou a obra-prima “Apesar de você”, o ditador Médici presidia o Brasil. Era um tempo em que agentes públicos torturavam milhares de pessoas. Hoje, para biografar o general, só com autorização dos herdeiros. Dá para pensar no rame-rame laudatório que eles exigiriam?

A legislação em vigor permite que Fernando Collor barre uma biografia não autorizada, em nome de sua “boa fama”. Idem o juiz Lalau e o torturador Brilhante Ustra. É assim porque a lei vale para todos, artistas ou não. Pense bem: a prerrogativa de contar a história passou ao coronel Ustra.

No seu elegante artigo “Penso eu”, generoso com meu livro “Marighella – O guerrilheiro que incendiou o mundo”, você menciona, sem título, uma biografia do Cabo Anselmo. Conheço três obras focadas no infiltrado que entregou a mulher grávida para repressores da ditadura a matarem (ela se chamava Soledad, e não Consuelo; todos tropeçamos, não somente os biógrafos).

As de 1984 e 99, com depoimentos mentirosos do covarde, assemelham-se a autobiografias.  A de 81 é um breve perfil independente. A tragédia: publicado ainda durante a ditadura, este livro poderia ser proibido hoje, na democracia, amparado no Código Civil de 2002. A norma obscurantista transfere a Anselmo o poder de definir o conteúdo de uma biografia.

Concordo: é inaceitável a impunidade de biógrafo leviano ou criminoso que difunda informação “infamante ou mentirosa”. Mas a decisão tem de ser da Justiça, e não de censura prévia. Se o Judiciário é lento e a lei dócil com difamadores, aperfeiçoemos ambos. Somos contra a saída temporária no Natal porque, entre milhares de presos, meia dúzia foge? Crimes pontuais não devem abolir direitos coletivos. O conhecimento da história consagra-se como direito humano. Roberto Carlos é, sim, dono da vida dele. Mas não é dono da história.

Biografias são reportagens, que constituem gênero do jornalismo. Pagar royalties a personagens descaracteriza biografias não autorizadas _você propõe mesmo dar uns caraminguás aos netos do Médici? Se defende que as filhas do Garrincha recebam pelo trabalho árduo do biógrafo, já pensou em remunerá-las, por ter citado o Mané junto com Pelé, Didi, Pagão e Canhoteiro? “O futebol”, sua música, não tem também “fins comerciais”? A imprensa de “fins comerciais” publica perfis. E se o Sarney e o Bolsonaro resolverem cobrar? Devemos reeditar a censura de outrora ou persistir no bom combate a ela?

Chico, perdoe o tom. Você merece interlocutores do “tempo da delicadeza” evocado em “Todo o sentimento”. Aceite um abraço e o carinho deste fã irrevogável.


‘Penso eu’: a contribuição de Chico Buarque ao debate sobre biografias
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Mário Magalhães

Chico Buarque, gênio da raça, cuja opinião sobre biografias e censura difere da minha – Foto Rio News

 

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Chico Buarque publicou hoje em “O Globo” um artigo sobre biografias não autorizadas. Ele expõe opiniões, legítimas, das quais discordo. Agradeço a generosidade em relação ao meu livro “Marighella – O guerrilheiro que incendiou o mundo” (Companhia das Letras).

Para ler o texto do grande artista no site do jornal, basta clicar aqui. Reproduzo-o na íntegra, abaixo.

O post que eu escrevi e ao qual ele se refere, “Caixa-preta de um biógrafo falido”, pode ser lido aqui.

Antes que alguém pergunte: sim, já escrevi para “O Globo” um artigo sobre o assunto. Sairá em breve.

*

Penso eu

Chico Buarque

Cantor, compositor e escritor

Pensei que o Roberto Carlos tivesse o direito de preservar sua vida pessoal. Parece que não. Também me disseram que sua biografia é a sincera homenagem de um fã. Lamento pelo autor, que diz ter empenhado 15 anos de sua vida em pesquisas e entrevistas com não sei quantas pessoas, inclusive eu. Só que ele nunca me entrevistou.

O texto de Mário Magalhães sobre o assunto das biografias me sensibilizou. Penso apenas que ele forçou a mão ao sugerir que a lei vigente protege torturadores, assassinos e bandidos em geral. Ele dá como exemplo o Cabo Anselmo, de quem no entanto já foi publicada uma biografia. A história de Consuelo, mulher e vítima do Cabo Anselmo, também está num livro escrito pelo próprio irmão. Por outro lado, graças à lei que a associação de editores quer modificar, Gloria Perez conseguiu recolher das livrarias rapidamente o livro do assassino de sua filha. Da excelente biografia de Carlos Marighella, por Mário Magalhães, ninguém pode dizer que é chapa-branca. Se fosse infamante ou mentirosa, ou mesmo se trouxesse na capa uma imagem degradante do Marighella, poderia ser igualmente embargada, como aliás acontece em qualquer lugar do mundo. Como Mário Magalhães, sou autor da Companhia das Letras e ainda me considero amigo do seu editor Luiz Schwarcz. Mas também estive perto do Garrincha, conheci algumas de suas filhas em Roma. Li que os herdeiros do Garrincha conseguiram uma alta indenização da Companhia das Letras. Não sei quanto foi, mas acho justo.

O biógrafo de Roberto Carlos escreveu anteriormente um livro chamado “Eu não sou cachorro não”. A fim de divulgar seu lançamento, um repórter do “Jornal do Brasil” me procurou para repercutir, como se diz, uma declaração a mim atribuída. Eu teria criticado Caetano e Gil, então no exílio, por denegrirem a imagem do país no exterior. Era impossível eu ter feito tal declaração. O repórter do “JB”, que era também prefaciador do livro, disse que a matéria fora colhida no jornal “Última Hora”, numa edição de 1971. Procurei saber, e a declaração tinha sido de fato publicada numa coluna chamada Escrache. As fontes do biógrafo e pesquisador eram a “Última Hora”, na época ligada aos porões da ditadura, e uma coluna cafajeste chamada Escrache. Que eu fizesse tal declaração, em pleno governo Médici, em entrevista exclusiva para tal coluna de tal jornal, talvez merecesse ser visto com alguma reserva pelo biógrafo e pesquisador. Talvez ele pudesse me consultar a respeito previamente e tirar suas conclusões. Mas só me procuraram quando o livro estava lançado. Se eu processasse o autor e mandasse recolher o livro, diriam que minha honra tem um preço e que virei censor.

Nos anos 70 a TV Globo me proibiu. Foi além da Censura, proibiu por conta própria imagens minhas e qualquer menção ao meu nome. Amanhã a TV Globo pode querer me homenagear. Buscará nos arquivos as minhas imagens mais bonitas. Escolherá as melhores cantoras para cantar minhas músicas. Vai precisar da minha autorização. Se eu não der, serei eu o censor.


Agora, a testemunha é da PM: Amarildo foi mesmo morto por tortura
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Mário Magalhães

Elizabeth, a mulher de Amarildo, que espera o corpo do marido – Foto Daniel Marenco/Folhapress

 

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Um policial militar lotado na Unidade de Polícia Pacificadora da Rocinha contou à Delegacia de Polícia Judiciária Militar e ao Ministério Público do Rio de Janeiro ter ouvido o pedreiro Amarildo sendo torturado até a morte na noite de 14 de julho.

O depoimento do PM, cuja identidade é mantida em sigilo, confirma o núcleo da investigação desenvolvida pela Divisão de Homicídios da Polícia Civil e pelo MP.

Há três novidades relevantes: pela primeira vez, alguém narra em pormenores o que teria acontecido com Amarildo depois de ele ter sido detido por PMs; a testemunha integra a própria corporação; com a identificação de novos envolvidos, os promotores devem acusar 15 policiais, e não apenas os dez que já foram indiciados e estão presos.

Como informam as repórteres Adriana Cruz e Maria Inez Magalhães (leia aqui), a testemunha disse ter ficado trancada em um contêiner na sede da UPP da favela, por ordem do subcomandante da unidade.

De lá, depôs o PM, ele teria ouvido Amarildo sendo torturado, com choques elétricos e asfixia com saco plástico. Até que gritaram “deu merda”, pois o pedreiro teria desmaiado. Seus gritos e gemidos de dor foram ouvidos do contêiner, descreveu a testemunha.


Hoje faz três meses que o Amarildo sumiu. Estado deve corpo à família
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Mário Magalhães

 

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Logo mais, quando a noite se esparramar sobre a Rocinha, o desaparecimento de Amarildo de Souza completará três meses. De acordo com as investigações, é aniversário também do assassinato por tortura do trabalhador da construção civil. Até esta manhã, seu corpo não havia sido encontrado, para que a família possa lhe oferecer o enterro digno que deseja.

No dia 14 de julho, Amarildo foi levado por policiais militares para a sede da Unidade de Polícia Pacificadora da favela, na zona sul carioca. Nunca mais apareceu.

A Polícia Civil indiciou dez PMs, por tortura seguida de morte e ocultação de cadáver. Inclusive o major Edson Santos, oficial do Bope que comandava então a UPP da Rocinha. A Justiça decretou a prisão preventiva dos suspeitos.

Trocando em miúdos, o Estado, por meio da Divisão de Homicídios, afirma que agentes públicos mataram e sumiram com Amarildo. Portanto, cabe ao Estado descobrir onde está o corpo do qual seus funcionários deram cabo.

Não é a única responsabilidade. A família de Amarildo deverá ser indenizada. Dinheiro não trará de volta o pai e marido, mas proporcionará melhores chances na vida à sua mulher e seus filhos.

Espero que eventuais condenados venham a ser obrigados pela Justiça a bancar a indenização, e não o conjunto dos contribuintes.

No sábado, um filho de Amarildo deu queixa contra um PM por abuso de autoridade (leia aqui).

No domingo, a repórter Carolina Heringer noticiou a existência de uma testemunha segundo quem a PM transformou em centro de tortura uma antiga casa do traficante Nem (aqui). Sim, na Rocinha.

Tudo indica que mataram o Amarildo. Para quem ficou, a barra continua pesada.


Caixa-preta de um biógrafo falido (debate público, confissões privadas)
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Mário Magalhães

Árvore de Natal montada com exemplares da biografia “Marighella”, em 2012; infelizmente, o Papai Noel não é tão generoso com os biógrafos como supõe Djavan – Foto Leonardo Pinto

 

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Em 2003, quando abandonei minha confortável vida de jornalista de redação, alguns amigos supuseram que eu ficara maluco. Trocar a segurança do ótimo salário e o prestígio de repórter de grande jornal pela aventura de me tornar biógrafo não passaria disso mesmo: uma aventura. Ao saberem que o meu personagem seria um brasileiro maldito, castigado pelas conspirações do silêncio e do preconceito, tiveram certeza: eu surtara.

Dez anos depois, desconfio de que os amigos estavam certos. Porém, numa contradição aparente, não me arrependo do rumo tomado: dediquei nove anos de trabalho insano a preparar uma biografia não autorizada do revolucionário Carlos Marighella (1911-69). Por cinco anos e nove meses, cuidei exclusivamente do livro, sem outra fonte de renda digna de nota.

Até agora, considerava que os perrengues enfrentados, decorrentes da minha decisão, constituíam assunto da esfera privada. Diante do debate público sobre restrições à publicação de biografias, penso que se torna legítimo contar um pouco do meu sufoco. “Editores e biógrafos ganham fortunas”, afirmou Djavan (leia aqui). Será?

O que eu fiz nos nove anos mergulhado no livro: entrevistei 256 pessoas, algumas por dezenas de horas, em várias sessões, viajando para cá e para lá; consultei dezenas de milhares de páginas de documentos, boa parte secreta na origem _os papéis e as fotografias são oriundos de 32 arquivos públicos e privados de Brasil, Paraguai, Estados Unidos, República Tcheca e Rússia; devorei uma bibliografia de 500 títulos; organizei 2.580 notas sobre fontes, agrupadas ao fim do volume; escrevi e reescrevi obsessivamente, em busca da minha utopia literária: uma narrativa de tirar o fôlego, assim como havia sido de tirar o fôlego a vida do protagonista.

Com exceção de uma pequena, mas valiosa e reconhecida ajuda da Companhia das Letras, banquei tudo do próprio bolso: passagens aéreas, hospedagens, pesquisadores auxiliares em Salvador, São Paulo, Campinas e Moscou, profissionais qualificados na transcrição de quase mil horas de gravação, serviços de conversão de microfilmes em imagem digital e muito, muito mais. Sem eliminar as despesas de uma família de classe média carioca, com três filhos em idade escolar, da universidade privada à pré-escola idem (o caçula nasceu durante a elaboração da biografia).

Graças a muita gente a quem serei grato até o meu derradeiro suspiro, o livro foi bem-sucedido. A crítica recebeu-o generosamente, tanto a acadêmica quanto a jornalística. A Associação Paulista de Críticos de Arte premiou-o como a melhor biografia de 2012. O ator Wagner Moura e a O2, produtora do cineasta Fernando Meirelles, arremataram os direitos de adaptação para o cinema. Sob a direção de Wagner, o filme deve chegar às telas em 2016.

Nada superou a boa vontade e o carinho dos leitores. Nas livrarias desde outubro de 2012, “Marighella – O guerrilheiro que incendiou o mundo” alcançou quatro reimpressões. Ao todo, já saíram 30 mil exemplares, no país em que a tiragem padrão oscila de 2.000 a 3.000 cópias.

Com todos esses triunfos, a conta é esta, na ponta do lápis e no teclado da calculadora: somando os direitos autorais a que tive direito pelos livros vendidos e a remuneração que receberei pela cessão da biografia para o cinema, o valor representa nanicos 15% do total dos salários de que eu abri mão ao me despedir do jornal. Não me enganei: quinze por cento. Voluntariamente, perdi ou deixei de ganhar 85 em cada 100 reais.

O cálculo é conservador, pois não inclui antigos benefícios, como participação nos lucros da empresa e automóvel zero quilômetro subsidiado.

Para que eu embolsasse o equivalente a um terço (e não 100%) dos salários que teria acumulado em 69 meses, “Marighella” precisaria vender cinco vezes mais do que já vendeu. A meta é irreal, como tem consciência qualquer editor júnior.

O balanço está incompleto. Para trabalhar só no livro, exterminei o respeitável pé-de-meia engordado desde 1986, quando dei os primeiros passos no jornalismo. Lancei-me à biografia em 2003. Quando meu dinheiro acabou, no segundo semestre de 2006, regressei ao jornal, do qual saí de vez em janeiro de 2010: sem dedicação exclusiva, não conseguiria concluir “Marighella”, pelo menos não o “Marighella” que eu escrevi.

Nesses nove anos, o padrão de vida aqui em casa decaiu. Como o pessoal tem os corações imensos, desses que comovem até almas brutas, ninguém se queixou. O vermelho tingiu meus extratos de conta corrente. Tivemos que fazer um empréstimo bancário. Um, não: três. Só pude ficar por conta do livro até o fim do ano passado porque a minha mulher, jornalista assalariada, segurou as pontas.

Chororô? Qual nada! Jamais fui tão feliz no jornalismo como nessa década investigando e narrando as estripulias do mulato baiano. Mas nunca mais vou topar uma empreitada semelhante, porque já impus sacrifícios demasiados a quem me ama e é retribuído intensamente.

Pessoal da censura

O modesto resultado financeiro do livro, a despeito do êxito de público e de crítica, não me surpreendeu, confesso. Eu já sabia que seria assim. Por que, então, fiz o que fiz? Por dois motivos, acredite quem quiser.

Primeiro, padeço de uma irrecuperável perversão de caráter: o amor patológico pelo jornalismo e, sobretudo, a paixão pelo gênero jornalístico da reportagem. Às vésperas dos meus 40 anos, completados em 2004, eu aspirava a encarar uma reportagem épica, sem as amarras de tempo (para apurar e escrever) e espaço (para publicar) inerentes a um diário impresso.

Segundo, mas não menos importante, e perdoem a ambição desmedida, típica de repórteres por vocação: eu sonhava legar uma história que, daqui a cem anos, contribuísse para que os brasileiros conhecessem o que foi o nosso embriagante século XX. A trajetória de Marighella tinha encantos jornalísticos suplementares: como certa historiografia oficial tentou eliminar seus rastros, e ele mesmo, por questão de sobrevivência, apagava as pegadas, desvendar mistérios insolúveis configurava desafio sedutor demais.

Todo esse esforço teria sido em vão se o espírito público não pautasse os herdeiros de Carlos Marighella, em particular seu filho, Carlos Augusto Marighella, e a viúva, Clara Charf. Jamais lhes pedi autorização para o livro. Não lhes submeti os originais, nem eles pediram para ler. Acolheram-me com fidalguia e entusiasmo, confiaram no meu trabalho. No entanto, se quisessem, poderiam ter impedido a circulação da biografia: a legislação antidemocrática, primitiva e obscurantista em vigor lhes oferece esse direito.

De acordo com o Código Civil, o direito de os cidadãos conhecerem a história é prerrogativa dos biografados e seus descendentes. O Estado não o assegura, para regozijo de políticos corruptos que almejam eternizar o segredo sobre seus atos. O acesso à memória e à verdade são direitos humanos hoje sonegados por normas totalitárias.

Exagero? Se alguém se propuser a escrevinhar uma biografia independente sobre o Cabo Anselmo, o verme que entregou a mulher grávida para os verdugos da ditadura pós-1964 a trucidarem, terá de pedir autorização ao delator.

Sabe o Amarildo, o trabalhador da construção civil que sumiu na Rocinha na noite de 14 de julho? O comandante da Unidade de Polícia Pacificadora na favela era o major Edson Santos, mais tarde indiciado por tortura seguida de morte e ocultação de cadáver. Quem quiser produzir uma biografia desse oficial da Polícia Militar só a verá nas estantes das livrarias se o major consentir. São elogiáveis as iniciativas para amparar materialmente a família do Amarildo, mas abomináveis os lobbies em favor de uma legislação que asfixia (como o saco plástico do Bope) e eletrocuta (como policiais procediam com moradores da Rocinha) biografias de torturadores e matadores.

Que tipo de biografia resulta desse sistema? Rame-rames laudatórios.

A ordem jurídica aceita hoje censura prévia. Quem gosta de censura é ditadura. Todo o malabarismo retórico que busca bloquear o conhecimento público sobre fatos e pessoas de dimensão pública sucumbe diante da seguinte constatação: se aparecer um neto desconhecido de Adolf Hitler no Brasil, teremos de solicitar protocolarmente autorização sua para publicar uma biografia em que o líder nazista seja descrito como genocida.

Só em nosso país, entre as grandes democracias, Hitler seria consagrado como herói, pois só haveria biografias chapas-brancas.

E Paulo César Farias? Uma biografia trombetearia sua postura de empreendedor decente, como exigiria a família, ou apresentaria o inventário de suas falcatruas pelos labirintos da corrupção? Na biografia do PC, o biógrafo teria de cascatear sobre sua morte, inventando que Suzana Marcolino matou-o, como sustentam os irmãos Farias? É assim que o pessoal da censura preconiza que se conte a história do Brasil?

Dudu Braga, filho de Roberto Carlos, indagou no Twitter (aqui): “Na discussão das biografias não autorizadas colocam artistas e esportistas no mesmo saco que ditadores e criminosos?”.

Como assim, “colocam”? Quem defende as restrições existentes é o grupo Procure Saber, no qual reluz Roberto Carlos. A lei não vale para todos? Ou Dudu Braga propõe normas específicas para os artistas, distintas das que governam os demais cidadãos? Na escravidão era assim.

O estatuto atual, com o respaldo do Procure Saber, protege, sim, ditadores e criminosos. Quem procurar saber da barbárie comandada por tiranos terá de recorrer a publicações estrangeiras, porque suas biografias terão sido abortadas no Brasil, com amparo legal.

Biografia nunca mais?

Escrever uma biografia, mesmo de sucesso, é péssimo negócio, ficou demonstrado. Djavan pontificou: “Editores e biógrafos ganham fortunas enquanto aos biografados resta o ônus do sofrimento e da indignação”. Qual sofrimento, o de Anselmo ou o de Soledad, a brava guerrilheira que o “cabo” entregou aos carrascos?

Sobre “fortunas”, Djavan incorreu em inverdade, espero que por ignorância, e não desonestidade. Mais: para reparar o “ônus do sofrimento e da indignação” existe a Justiça, à qual pode e deve recorrer quem se julga vítima de crimes como calúnia e violação de privacidade. Como neoarautos da censura prévia, o músico e seus parceiros se associam ao autoritarismo característico de regimes fascistas e stalinistas, e não da democracia.

Na ditadura, batalhávamos todos contra a censura prévia. Continuo na mesma barricada, contra as Donas Solanges, públicas ou privadas. Talvez um dia, vai que por uma biografia não autorizada, venhamos a descobrir por que muitos trocaram de lado mais rápido que a mudança da maré.

Estranho a obsessão do novo pessoal da censura com a poupança dos biógrafos que eles passaram a demonizar. Qual o problema em ganhar dinheiro com trabalho suado e escrupuloso, como eles ganham? A propósito, no meu projeto Marighella não recebi verbas públicas, assumidas ou disfarçadas sob os rótulos de renúncia fiscal, tipo Lei Rouanet. Nem um centavo. E nos seus projetos, Djavan?

O desprezo pelo trabalho alheio é ainda mais escrachado na “sugestão” da empresária Paula Lavigne, voz mais estridente do lobby pró-censura prévia (aqui): “Se alguém quiser escrever uma biografia e publicá-la na internet sem cobrar, tudo bem. O problema é lucrar com isso”.

Tal trabalho escravo, inconstitucional desde o século XIX, fulminaria biografias não autorizadas. Reiterando: biografia escrita por repórter constitui reportagem, que é um gênero do jornalismo. Reportagens de fôlego, como biografias, exigem três condições: a) domínio técnico; b) disposição editorial; c) condições materiais. Se não houver remuneração, proveniente da venda de livros, não há como se dedicar a uma história de vida. A não ser que o autor seja milionário… ou louco.

O Procure Saber também advoga que os biografados _artistas ou não, enquanto a lei valer para todos, sem distinguir castas_ recebam obrigatoriamente percentuais da receita dos livros. O compositor Pedro Luís apoia: “Todo mundo que é ingrediente do sucesso deve ser remunerado. Quem faz a revisão, a capa, não é remunerado? E o assunto do produto, não?”. O Cabo Anselmo agradece pelos caraminguás. Não se esqueçam do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra. O famigerado torturador não haverá de rejeitar uma biografia camarada.

As propostas exalam menosprezo, quase asco, pelo trabalho que não é seu. Os compositores reivindicam receber dos biógrafos por eventuais livros de que sejam personagens principais, mas não nutrem o hábito de pagar aos personagens que inspiram suas composições. Não têm mesmo que os remunerar, porque as pessoas não dividiram o trabalho de criação. O criador é remunerado, não o objeto que o inspira. Abstenho-me de enumerar uma relação infinda de músicas célebres inspiradas em pessoas de carne e osso.

Registro: nada contraponho a sociedades acordadas livremente entre biógrafos e biografados. Biografias autorizadas, às vezes muito boas, são legítimas como as não autorizadas. A violência institucional é abolir as biografias independentes, nas quais Paulo Maluf não figura como político devotado à decência, e Fernando Collor de Mello não encarna um estadista injustiçado. Haveria jornalismo crítico em uma biografia na qual a família de Benito Mussolini se tornasse sócia do biógrafo?

A legislação em vigor fere o direito de informar e ser informado, viola a liberdade de expressão, institui o monopólio da verdade, atrasa o Brasil. Não se resume a uma contenda entre biógrafos e censores, mas interessa à nação. É tão daninha que numerosos historiadores e jornalistas descartaram biografias promissoras, nocauteados pela intimidação de biografados e herdeiros que só admitem retratos bajuladores.

Para quem amargou tantos sacrifícios, soa ofensiva a acusação, desfraldada ou sutil, de que só se faz biografia para enricar. Mas isso é o de menos. Desgraça, como imaginou o compositor Alceu Valença, será montar no futuro uma nova comissão da verdade para revelar o que poderiam ter contado biografias banidas.

Da minha parte, caríssimo Djavan, seguirei em frente com minha sina de biógrafo de uma biografia só e meu valente Citroën C3, ano 2007.

Desisto de biografias, enquanto perdurarem os ameaçadores garrotes da censura. Maluquice como a que eu cometi, somente uma vez na vida, e olhe lá.

“Marighella” foi minha primeira e, se nada mudar, última biografia.


Afasta de mim esse cale-se (11): Biógrafo do Che Guevara condena restrições
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Mário Magalhães

Ernesto Che Guevara, biografado de Jon Lee Anderson – Foto de Alberto Korda

 

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Jon Lee Anderson, biógrafo de Ernesto Che Guevara, deu entrevista ao colega André Miranda. Na conversa, os dois trataram de restrições e censura a biografias não autorizadas. Anderson é consagrado repórter norte-americano. Prepara uma nova biografia, de Fidel Castro.

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Biógrafo de Che Guevara diz que Brasil se aproxima de Rússia, China e Irã quando restringe biografias

Por André Miranda

Uma resposta à cultura da celebridade ou um luta com motivação política? Repórter de uma das principais revistas do mundo, a “New Yorker”, o americano Jon Lee Anderson vê com preocupação a mobilização em defesa de restrições para que se publiquem biografias no Brasil, lembrando que não são apenas os artistas beneficiados, mas também políticos. Anderson é biógrafo de Che Guevara (“Che, uma biografia”, de 1997, lançado pela editora Objetiva) e vem ao Rio em novembro para ministrar uma oficina de reportagem promovida pela Fundação Gabriel García Márquez para o Novo Jornalismo Ibero-Americano, em parceria com as revistas “piauí” e “Serrote” e o Instituto Moreira Salles. Em entrevista ao GLOBO, por e-mail, Anderson diz que, pela lei atual, o Brasil se aproxima de Rússia, China e Irã quanto à liberdade de expressão.

Está em debate hoje, no Brasil, o direito de se lançar biografias: de um lado, há os que defendem a liberdade de expressão; do outro, os que dizem que privacidade não pode ser comercializada. Como o senhor enxerga essa discussão?

Este debate me lembra um que aconteceu na França, alguns anos atrás, e que terminou com restrições severas às possibilidades de fotógrafos retratarem pessoas. Por exemplo, se você publicasse a imagem de uma pessoa numa manifestação de rua, tecnicamente ela poderia ir à Justiça porque você não lhe pediu permissão. O debate das biografias é similar. Num tempo em que a internet parece acabar com as fronteiras e em que a cultura do tabloide de celebridades conduziu a uma mídia fortemente invasiva, esses debates são reflexo de uma luta para se controlar as representações do indivíduo. Neste sentido, é compreensível que o debate seja travado, mas não estou certo se essas são as razões no Brasil. Trata-se de uma resposta a um fenômeno cultural ou há motivações políticas por trás?

( Para ler a entrevista na íntegra, basta clicar aqui.)


Afasta de mim esse cale-se (10): Como funciona em outros países
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Mário Magalhães

Imagem Wikipedia

 

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O “Segundo Caderno” prestou hoje um serviço ao contar como funciona a edição de biografias não autorizadas nos Estados Unidos, Reino Unido, Espanha e França. A reportagem pode ser lida aqui e abaixo.

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Contexto: quatro países sem restrição prévia a biografias

Em países como Estados Unidos, França, Reino Unido e Espanha, não há restrição prévia à publicação de biografias não autorizadas. Os americanos são muito objetivos nesse sentido — e chegam a se gabar disso. Repetem que a liberdade de expressão está garantida pela Primeira Emenda à Constituição e que, por isso, não pode ser violada. Caso o biografado se sinta a atingido pela obra em circulação, pode recorrer à Justiça.

A legislação francesa também tira do escritor ou do editor a necessidade de ter uma autorização prévia de seu biografado ou de seus herdeiros para publicar um livro. Na França, os autores e editores devem, no entanto, respeitar as exigências da lei no que tange à difamação ou à violação da vida privada. Para dirimir possíveis questionamentos surgidos nesse sentido, o caminho é recorrer à Justiça — sempre após a edição da obra. Neste ano, vale lembrar, por exemplo, que o ex-diretor geral do Fundo Monetário Internacional (FMI) Dominique Strauss-Kahn solicitou por meio de uma ação judicial a interdição do livro em que Marcela Iacub evocou, em forma de romance, a polêmica relação que eles tiveram. A Justiça francesa, no entanto, não interditou o livro. Determinou apenas que em cada exemplar fosse inserido um pequeno encarte dizendo que a obra atentava contra a vida privada do ex-chefão do FMI e condenou a editora do livro a pagar € 50 mil a Strauss-Kahn por danos e prejuízos.

No Reino Unido, também não há restrição à publicação de biografias não autorizadas, desde que fique bem clara sua condição, informa o advogado especializado em direitos autorais Bernard Nyman. Portanto, é dever do autor e da editora deixarem em destaque a informação de que aquela obra não é a versão oficial autorizada pelo objeto do livro. Isso já bastaria.

Na Espanha, o direito de expressar e difundir opiniões, ideias e pensamentos está protegido pelo artigo 20 da Constituição, que também não admite censura prévia. Mas isso não significa que não haja limites. As biografias não autorizadas são permitidas por lá e, de fato, existem, mas o autor, ao mesmo tempo que está livre para publicar seu livro, deve estar preparado para arcar com as consequências caso o biografado considere que ele passou dos limites. A questão é que este mesmo artigo constitucional deixa claro qual é a fronteira a ser respeitada: a da honra, a da intimidade e a do direito à própria imagem. Na Espanha, a decisão de retirar biografias já publicadas das estantes das livrarias só compete, no entanto, a um juiz.

* Com reportagem de André Miranda, Fernando Eichenberg, Priscila Guilayn e Vivian Oswald


Afasta de mim esse cale-se (9): De censurados a censores, por Barcinski
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Mário Magalhães

Zé do Caixão, biografado por André Barcinski e Ivan Finotti

 

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Co-autor, com Ivan Finotti, de uma biografia do Zé do Caixão, o jornalista André Barcinski não tirou o pé da dividida sobre biografias. Ele publicou um artigo em seu blog. Pode ser lido aqui e abaixo.

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Chico, Gil, Caetano e Djavan: de censurados a censores

Tive de ler a reportagem da “Folha” duas vezes para me certificar de que não estava delirando: Chico Buarque, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Djavan, Milton Nascimento e Erasmo Carlos se uniram a Roberto Carlos na campanha para exigir autorização prévia de biografados.

De Roberto Carlos não se podia esperar outra coisa. Afinal, passou a carreira toda sem dar um pio contra a ditadura e viveu os últimos 50 anos como um verdadeiro monarca, decidindo tudo que podia ou não ser dito sobre ele (não é à toa que é chamado de “Rei”, enquanto Xuxa, outra figura pública que ainda acredita viver na Monarquia, é a “Rainha”) .

Mas Chico Buarque? Um dos compositores mais censurados do país? Gil e Caetano, exilados pelos militares? Gil, o ministro do Creative Commons? Absolutamente surreal.

Na coluna de Ancelmo Gois no jornal “O Globo” de sexta, Djavan justificou assim sua decisão:

“A liberdade de expressão, sob qualquer circunstância, precisa ser preservada. Ponto. No entanto, sobre tais biografias, do modo como é hoje, ela, a liberdade de expressão, corre o risco de acolher uma injustiça, à medida em que privilegia o mercado em detrimento do indivíduo; editores e biógrafos ganham fortunas enquanto aos biografados resta o ônus do sofrimento e da indignação. Nos países desenvolvidos, você pode abrir um processo. No Brasil também, com uma enorme diferença: nós não somos um país desenvolvido. 

Brilhante. Quer dizer que, enquanto não formos um “país desenvolvido”, o melhor é recorrer à censura típica das repúblicas das bananas?

O parágrafo de Djavan é tão confuso quanto algumas de suas letras. Ele começa dizendo que é necessário preservar a liberdade de expressão “sob qualquer circunstância”, para logo depois justificar a censura sobre “tais biografias”.

Que biografias seriam essas? As que Djavan e amigos não aprovam?

Depois, o compositor diz que editores e biógrafos ganham “fortunas”. Não sei em que país Djavan vive. Onde eu vivo, se um autor vende dez mil cópias, sai dando cambalhota de felicidade (o escritor ganha, em média, 10% do preço de capa, então faça as contas e verá que escrever no Brasil, com raras exceções, é coisa de maluco ou diletante).

Vivo num país onde o Luis Fernando Veríssimo diz que não sobrevive de literatura. O Veríssimo.

E não adianta Djavan e turma dizerem que não se trata de censura. Claro que é. Só é disfarçada de preocupação de mercado.

Em setembro, durante a Bienal do livro, Ruy Castro leu um manifesto, assinado por 47 nomes, incluindo o historiador Bóris Fausto, o escritor Cristovao Tezza, o poeta Ferreira Gullar, o cineasta Nelson Pereira dos Santos e o jornalista e escritor Carlos Heitor Cony, contra a suspensão da tramitação do projeto de lei que libera a publicação de biografias sem autorização dos retratados.

Um dos trechos do manifesto diz:

“A dispensa do consentimento prévio do biografado não confere ao autor imunidade sobre as consequências do que escrever. Em casos de abuso de direito, uso de informação falsa e ofensiva à honra, a lei já contém os mecanismos inibidores e as punições adequadas à proteção dos direitos da personalidade”.

Ninguém é a favor de biografias mentirosas. Um autor que publica uma calúnia ou informação falsa deve ser punido. Mas também ninguém pode ser a favor de um mercado de livros “chapa branca”, como os ícones da MPB querem criar.


Afasta de mim esse cale-se (8): Obscurantismo, por Luiz Fernando Vianna
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Mário Magalhães

Este é um dos livros de Luiz Fernando Vianna

 

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Autor de livros que narram a vida de Aldir Blanc, João Nogueira e Zeca Pagodinho, o jornalista Luiz Fernando Vianna escreveu a respeito da controvérsia sobre biografias.

Seu artigo saiu no site do Instituto Moreira Salles (aqui) e pode ser lido abaixo. Luiz Fernando é coordenador de internet do IMS.

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‘Procure saber’ o que é censura e obscurantismo

Em nota enviada ao jornal O Globo na semana passada, Djavan apresentou ideias tão nebulosas quanto suas letras. Ou não, poderia dizer, à sua maneira, Caetano Veloso, colega de Djavan no Procure Saber, o movimento que, como dizem as colunas de notas dos grandes jornais, reúne a nata da MPB. A aparente confusão talvez apenas mascare um apreço decidido pelo obscurantismo. O assunto é a necessidade de os biografados (ou seus herdeiros) autorizarem as biografias sobre si mesmos, algo previsto no Código Civil e que os editores de livros estão tentando derrubar.

A nota começa assim: “A liberdade de expressão, sob qualquer circunstância, precisa ser preservada. Ponto. No entanto…”

Se é “sob qualquer circunstância”, como pode haver “no entanto”? O “ponto” de Djavan deveria ser de interrogação.

Continuando: “No entanto, sobre tais biografias, do modo como é hoje, ela, a liberdade de expressão, corre o risco de acolher uma injustiça, a (sic) medida em (sic) que privilegia o mercado em detrimento do indivíduo; editores e biógrafos ganham fortunas enquanto aos biografados resta o ônus do sofrimento e da indignação”.

Djavan está convidado a citar um, apenas um biógrafo que tenha ficado rico no Brasil escrevendo biografias valendo-se de expedientes sensacionalistas. Basta um.

(O mais importante livro sobre um personagem da música brasileira, Noel Rosa – Uma biografia, ficou muitos anos impedido de circular por objeção da família. Alguém diria que é um livro sensacionalista? E posso garantir, por conhecê-los, que os autores, João Máximo e Carlos Didier, não enriqueceram.)

Em seguida, ele diz: “Nos países desenvolvidos, você pode abrir um processo. No Brasil também, com uma enorme diferença: nós não somos um país desenvolvido”.

Acertou em cheio. Se fôssemos um país desenvolvido, o juiz a quem cabia decidir sobre a ação movida por Roberto Carlos contra seu biógrafo Paulo Cesar de Araújo não teria pedido autógrafo ao Rei durante a sessão. Se fôssemos um país desenvolvido, a editora que publicou o livro não teria sido covarde e feito um acordo com o cantor – contra o seu autor e seu próprio patrimônio. Se fôssemos um país desenvolvido, Roberto Carlos não teria o direito de receber todos os exemplares e dar a eles o destino que lhe aprouver, inclusive queimá-los à maneira nazista.

Mais Djavan: “A sugestão de se estabelecer um percentual oriundo desse produto destinado ao biografado me parece razoável, mesmo acreditando que ninguém queira ver sua vida exposta publicamente de maneira predatória por dinheiro”.

Ou seja, se rolar um 10%, os artistas podem pensar em fazer negócio, ainda que não satisfeitos com as biografias. É capaz de o “ônus do sofrimento e da indignação” render um bônus. Mediante pagamento, a liberdade de expressão pode ser preservada.

Por fim: “Essa medida, de certo modo, desmotivaria a edição desenfreada dessas biografias e nos lembraria a todos que ter direitos implica ter deveres também”.

Mas, se esses livros rendem mesmo fortunas aos autores e editores, o que custa pagar 10% ao biografado e ter o caminho livre? É jogo. E o que ele chama de “edição desenfreada”? Que onda é essa que ele enxerga e que não desagua nas livrarias? Salvo Roberto Carlos, nenhum prócer do Procure Saber foi até hoje alvo de uma biografia não autorizada. E, sim, ter direitos implica ter deveres, mas não necessariamente o de ficar calado.

Todo esse zum de besouro seria esquecível se não estivesse sendo propagandeado que a tal “nata da MPB” comunga das mesmas ideias. Na reportagem da Folha de S. Paulo publicada no último sábado, apenas a assessoria de Gilberto Gil confirmou o apoio.

Pois não foi Gil que, quando ministro da Cultura, queria flexibilizar os direitos autorais em nome da democratização da música e da circulação de informações? Será que agora ele quer flexibilizar os direitos de jornalistas e escritores para que só circulem informações que o satisfaçam?

Ao lado de Gil, Caetano Veloso foi preso pela ditadura militar e exilado. Sempre se orgulhou, com razão, de ser um libertário que resolvia as pendengas na arena pública. Será que agora vai se esconder sob as saias da empresária e ex-mulher Paula Lavigne e se calar? Ou vai, de fato, dizer que endossa as frases de Djavan? Logo ele, tão cioso do bom português e que, se a memória não falha, já se opôs à decisão de Roberto Carlos de proibir o livro de Paulo Cesar de Araújo.

Quanto a Chico Buarque, possivelmente o mais censurado dos compositores sob a ditadura, apenas se ele vier a público afirmar que apoia essa causa é que isto será fato. Por enquanto, só é possível crer que estão usando o nome dele em vão.

Em artigo disponível na página do Procure Saber no Facebook, Paula Lavigne escreve: “Longe do que vem sendo divulgado, a Associação Procure Saber, entidade representativa dos artistas que buscam estudar, entender e esclarecer assuntos de interesse da classe artística e da população em geral, não defende a censura ou a diminuição da liberdade de informação e pensamento; o que a Procure Saber deseja é apresentar uma alternativa que atenda aos escritores mas não crie uma situação de exploração da obra e da vida alheia sem a remuneração correspondente e sem que a vida privada e a intimidade do biografado sejam violados”.

Mais uma vez, ressalta-se que é preciso pagar para escrever o que se quer. E olha que quem “privilegia o mercado” são os autores e as editoras… Além do mais, quem vai delimitar o ponto exato onde acaba o interesse público e começa a suposta invasão da vida privada? O juiz que pede autógrafo ao cantor? O artista, separando o que quer e o que não quer que se diga dele? Em bom português – aquilo que inexiste no texto de Djavan – os nomes disso são censura e obscurantismo.

Aproveitando, Paula Lavigne: deixe “a população em geral” em paz. Continue alimentando de notas as colunas de jornal e fazendo seus negócios, mas não advogue em nome de quem não está pedindo. E estude a possibilidade de contratar um bom jornalista para redigir os textos do Procure Saber.

Luiz Fernando Vianna é coordenador de internet do IMS.