Blog do Mario Magalhaes

Caixa-preta de um biógrafo falido (debate público, confissões privadas)

Mário Magalhães

Árvore de Natal montada com exemplares da biografia ''Marighella'', em 2012; infelizmente, o Papai Noel não é tão generoso com os biógrafos como supõe Djavan – Foto Leonardo Pinto

 

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Em 2003, quando abandonei minha confortável vida de jornalista de redação, alguns amigos supuseram que eu ficara maluco. Trocar a segurança do ótimo salário e o prestígio de repórter de grande jornal pela aventura de me tornar biógrafo não passaria disso mesmo: uma aventura. Ao saberem que o meu personagem seria um brasileiro maldito, castigado pelas conspirações do silêncio e do preconceito, tiveram certeza: eu surtara.

Dez anos depois, desconfio de que os amigos estavam certos. Porém, numa contradição aparente, não me arrependo do rumo tomado: dediquei nove anos de trabalho insano a preparar uma biografia não autorizada do revolucionário Carlos Marighella (1911-69). Por cinco anos e nove meses, cuidei exclusivamente do livro, sem outra fonte de renda digna de nota.

Até agora, considerava que os perrengues enfrentados, decorrentes da minha decisão, constituíam assunto da esfera privada. Diante do debate público sobre restrições à publicação de biografias, penso que se torna legítimo contar um pouco do meu sufoco. “Editores e biógrafos ganham fortunas”, afirmou Djavan (leia aqui). Será?

O que eu fiz nos nove anos mergulhado no livro: entrevistei 256 pessoas, algumas por dezenas de horas, em várias sessões, viajando para cá e para lá; consultei dezenas de milhares de páginas de documentos, boa parte secreta na origem _os papéis e as fotografias são oriundos de 32 arquivos públicos e privados de Brasil, Paraguai, Estados Unidos, República Tcheca e Rússia; devorei uma bibliografia de 500 títulos; organizei 2.580 notas sobre fontes, agrupadas ao fim do volume; escrevi e reescrevi obsessivamente, em busca da minha utopia literária: uma narrativa de tirar o fôlego, assim como havia sido de tirar o fôlego a vida do protagonista.

Com exceção de uma pequena, mas valiosa e reconhecida ajuda da Companhia das Letras, banquei tudo do próprio bolso: passagens aéreas, hospedagens, pesquisadores auxiliares em Salvador, São Paulo, Campinas e Moscou, profissionais qualificados na transcrição de quase mil horas de gravação, serviços de conversão de microfilmes em imagem digital e muito, muito mais. Sem eliminar as despesas de uma família de classe média carioca, com três filhos em idade escolar, da universidade privada à pré-escola idem (o caçula nasceu durante a elaboração da biografia).

Graças a muita gente a quem serei grato até o meu derradeiro suspiro, o livro foi bem-sucedido. A crítica recebeu-o generosamente, tanto a acadêmica quanto a jornalística. A Associação Paulista de Críticos de Arte premiou-o como a melhor biografia de 2012. O ator Wagner Moura e a O2, produtora do cineasta Fernando Meirelles, arremataram os direitos de adaptação para o cinema. Sob a direção de Wagner, o filme deve chegar às telas em 2016.

Nada superou a boa vontade e o carinho dos leitores. Nas livrarias desde outubro de 2012, “Marighella – O guerrilheiro que incendiou o mundo” alcançou quatro reimpressões. Ao todo, já saíram 30 mil exemplares, no país em que a tiragem padrão oscila de 2.000 a 3.000 cópias.

Com todos esses triunfos, a conta é esta, na ponta do lápis e no teclado da calculadora: somando os direitos autorais a que tive direito pelos livros vendidos e a remuneração que receberei pela cessão da biografia para o cinema, o valor representa nanicos 15% do total dos salários de que eu abri mão ao me despedir do jornal. Não me enganei: quinze por cento. Voluntariamente, perdi ou deixei de ganhar 85 em cada 100 reais.

O cálculo é conservador, pois não inclui antigos benefícios, como participação nos lucros da empresa e automóvel zero quilômetro subsidiado.

Para que eu embolsasse o equivalente a um terço (e não 100%) dos salários que teria acumulado em 69 meses, “Marighella” precisaria vender cinco vezes mais do que já vendeu. A meta é irreal, como tem consciência qualquer editor júnior.

O balanço está incompleto. Para trabalhar só no livro, exterminei o respeitável pé-de-meia engordado desde 1986, quando dei os primeiros passos no jornalismo. Lancei-me à biografia em 2003. Quando meu dinheiro acabou, no segundo semestre de 2006, regressei ao jornal, do qual saí de vez em janeiro de 2010: sem dedicação exclusiva, não conseguiria concluir “Marighella”, pelo menos não o “Marighella” que eu escrevi.

Nesses nove anos, o padrão de vida aqui em casa decaiu. Como o pessoal tem os corações imensos, desses que comovem até almas brutas, ninguém se queixou. O vermelho tingiu meus extratos de conta corrente. Tivemos que fazer um empréstimo bancário. Um, não: três. Só pude ficar por conta do livro até o fim do ano passado porque a minha mulher, jornalista assalariada, segurou as pontas.

Chororô? Qual nada! Jamais fui tão feliz no jornalismo como nessa década investigando e narrando as estripulias do mulato baiano. Mas nunca mais vou topar uma empreitada semelhante, porque já impus sacrifícios demasiados a quem me ama e é retribuído intensamente.

Pessoal da censura

O modesto resultado financeiro do livro, a despeito do êxito de público e de crítica, não me surpreendeu, confesso. Eu já sabia que seria assim. Por que, então, fiz o que fiz? Por dois motivos, acredite quem quiser.

Primeiro, padeço de uma irrecuperável perversão de caráter: o amor patológico pelo jornalismo e, sobretudo, a paixão pelo gênero jornalístico da reportagem. Às vésperas dos meus 40 anos, completados em 2004, eu aspirava a encarar uma reportagem épica, sem as amarras de tempo (para apurar e escrever) e espaço (para publicar) inerentes a um diário impresso.

Segundo, mas não menos importante, e perdoem a ambição desmedida, típica de repórteres por vocação: eu sonhava legar uma história que, daqui a cem anos, contribuísse para que os brasileiros conhecessem o que foi o nosso embriagante século XX. A trajetória de Marighella tinha encantos jornalísticos suplementares: como certa historiografia oficial tentou eliminar seus rastros, e ele mesmo, por questão de sobrevivência, apagava as pegadas, desvendar mistérios insolúveis configurava desafio sedutor demais.

Todo esse esforço teria sido em vão se o espírito público não pautasse os herdeiros de Carlos Marighella, em particular seu filho, Carlos Augusto Marighella, e a viúva, Clara Charf. Jamais lhes pedi autorização para o livro. Não lhes submeti os originais, nem eles pediram para ler. Acolheram-me com fidalguia e entusiasmo, confiaram no meu trabalho. No entanto, se quisessem, poderiam ter impedido a circulação da biografia: a legislação antidemocrática, primitiva e obscurantista em vigor lhes oferece esse direito.

De acordo com o Código Civil, o direito de os cidadãos conhecerem a história é prerrogativa dos biografados e seus descendentes. O Estado não o assegura, para regozijo de políticos corruptos que almejam eternizar o segredo sobre seus atos. O acesso à memória e à verdade são direitos humanos hoje sonegados por normas totalitárias.

Exagero? Se alguém se propuser a escrevinhar uma biografia independente sobre o Cabo Anselmo, o verme que entregou a mulher grávida para os verdugos da ditadura pós-1964 a trucidarem, terá de pedir autorização ao delator.

Sabe o Amarildo, o trabalhador da construção civil que sumiu na Rocinha na noite de 14 de julho? O comandante da Unidade de Polícia Pacificadora na favela era o major Edson Santos, mais tarde indiciado por tortura seguida de morte e ocultação de cadáver. Quem quiser produzir uma biografia desse oficial da Polícia Militar só a verá nas estantes das livrarias se o major consentir. São elogiáveis as iniciativas para amparar materialmente a família do Amarildo, mas abomináveis os lobbies em favor de uma legislação que asfixia (como o saco plástico do Bope) e eletrocuta (como policiais procediam com moradores da Rocinha) biografias de torturadores e matadores.

Que tipo de biografia resulta desse sistema? Rame-rames laudatórios.

A ordem jurídica aceita hoje censura prévia. Quem gosta de censura é ditadura. Todo o malabarismo retórico que busca bloquear o conhecimento público sobre fatos e pessoas de dimensão pública sucumbe diante da seguinte constatação: se aparecer um neto desconhecido de Adolf Hitler no Brasil, teremos de solicitar protocolarmente autorização sua para publicar uma biografia em que o líder nazista seja descrito como genocida.

Só em nosso país, entre as grandes democracias, Hitler seria consagrado como herói, pois só haveria biografias chapas-brancas.

E Paulo César Farias? Uma biografia trombetearia sua postura de empreendedor decente, como exigiria a família, ou apresentaria o inventário de suas falcatruas pelos labirintos da corrupção? Na biografia do PC, o biógrafo teria de cascatear sobre sua morte, inventando que Suzana Marcolino matou-o, como sustentam os irmãos Farias? É assim que o pessoal da censura preconiza que se conte a história do Brasil?

Dudu Braga, filho de Roberto Carlos, indagou no Twitter (aqui): “Na discussão das biografias não autorizadas colocam artistas e esportistas no mesmo saco que ditadores e criminosos?”.

Como assim, “colocam”? Quem defende as restrições existentes é o grupo Procure Saber, no qual reluz Roberto Carlos. A lei não vale para todos? Ou Dudu Braga propõe normas específicas para os artistas, distintas das que governam os demais cidadãos? Na escravidão era assim.

O estatuto atual, com o respaldo do Procure Saber, protege, sim, ditadores e criminosos. Quem procurar saber da barbárie comandada por tiranos terá de recorrer a publicações estrangeiras, porque suas biografias terão sido abortadas no Brasil, com amparo legal.

Biografia nunca mais?

Escrever uma biografia, mesmo de sucesso, é péssimo negócio, ficou demonstrado. Djavan pontificou: “Editores e biógrafos ganham fortunas enquanto aos biografados resta o ônus do sofrimento e da indignação”. Qual sofrimento, o de Anselmo ou o de Soledad, a brava guerrilheira que o “cabo” entregou aos carrascos?

Sobre “fortunas”, Djavan incorreu em inverdade, espero que por ignorância, e não desonestidade. Mais: para reparar o “ônus do sofrimento e da indignação” existe a Justiça, à qual pode e deve recorrer quem se julga vítima de crimes como calúnia e violação de privacidade. Como neoarautos da censura prévia, o músico e seus parceiros se associam ao autoritarismo característico de regimes fascistas e stalinistas, e não da democracia.

Na ditadura, batalhávamos todos contra a censura prévia. Continuo na mesma barricada, contra as Donas Solanges, públicas ou privadas. Talvez um dia, vai que por uma biografia não autorizada, venhamos a descobrir por que muitos trocaram de lado mais rápido que a mudança da maré.

Estranho a obsessão do novo pessoal da censura com a poupança dos biógrafos que eles passaram a demonizar. Qual o problema em ganhar dinheiro com trabalho suado e escrupuloso, como eles ganham? A propósito, no meu projeto Marighella não recebi verbas públicas, assumidas ou disfarçadas sob os rótulos de renúncia fiscal, tipo Lei Rouanet. Nem um centavo. E nos seus projetos, Djavan?

O desprezo pelo trabalho alheio é ainda mais escrachado na “sugestão” da empresária Paula Lavigne, voz mais estridente do lobby pró-censura prévia (aqui): “Se alguém quiser escrever uma biografia e publicá-la na internet sem cobrar, tudo bem. O problema é lucrar com isso”.

Tal trabalho escravo, inconstitucional desde o século XIX, fulminaria biografias não autorizadas. Reiterando: biografia escrita por repórter constitui reportagem, que é um gênero do jornalismo. Reportagens de fôlego, como biografias, exigem três condições: a) domínio técnico; b) disposição editorial; c) condições materiais. Se não houver remuneração, proveniente da venda de livros, não há como se dedicar a uma história de vida. A não ser que o autor seja milionário… ou louco.

O Procure Saber também advoga que os biografados _artistas ou não, enquanto a lei valer para todos, sem distinguir castas_ recebam obrigatoriamente percentuais da receita dos livros. O compositor Pedro Luís apoia: “Todo mundo que é ingrediente do sucesso deve ser remunerado. Quem faz a revisão, a capa, não é remunerado? E o assunto do produto, não?”. O Cabo Anselmo agradece pelos caraminguás. Não se esqueçam do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra. O famigerado torturador não haverá de rejeitar uma biografia camarada.

As propostas exalam menosprezo, quase asco, pelo trabalho que não é seu. Os compositores reivindicam receber dos biógrafos por eventuais livros de que sejam personagens principais, mas não nutrem o hábito de pagar aos personagens que inspiram suas composições. Não têm mesmo que os remunerar, porque as pessoas não dividiram o trabalho de criação. O criador é remunerado, não o objeto que o inspira. Abstenho-me de enumerar uma relação infinda de músicas célebres inspiradas em pessoas de carne e osso.

Registro: nada contraponho a sociedades acordadas livremente entre biógrafos e biografados. Biografias autorizadas, às vezes muito boas, são legítimas como as não autorizadas. A violência institucional é abolir as biografias independentes, nas quais Paulo Maluf não figura como político devotado à decência, e Fernando Collor de Mello não encarna um estadista injustiçado. Haveria jornalismo crítico em uma biografia na qual a família de Benito Mussolini se tornasse sócia do biógrafo?

A legislação em vigor fere o direito de informar e ser informado, viola a liberdade de expressão, institui o monopólio da verdade, atrasa o Brasil. Não se resume a uma contenda entre biógrafos e censores, mas interessa à nação. É tão daninha que numerosos historiadores e jornalistas descartaram biografias promissoras, nocauteados pela intimidação de biografados e herdeiros que só admitem retratos bajuladores.

Para quem amargou tantos sacrifícios, soa ofensiva a acusação, desfraldada ou sutil, de que só se faz biografia para enricar. Mas isso é o de menos. Desgraça, como imaginou o compositor Alceu Valença, será montar no futuro uma nova comissão da verdade para revelar o que poderiam ter contado biografias banidas.

Da minha parte, caríssimo Djavan, seguirei em frente com minha sina de biógrafo de uma biografia só e meu valente Citroën C3, ano 2007.

Desisto de biografias, enquanto perdurarem os ameaçadores garrotes da censura. Maluquice como a que eu cometi, somente uma vez na vida, e olhe lá.

“Marighella” foi minha primeira e, se nada mudar, última biografia.