Blog do Mario Magalhaes

Arquivo : maio 2013

Nome de Havelange no Engenhão é como criar ‘estádio Paulo Maluf’, diz biógrafo de João Saldanha
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Mário Magalhães

João Saldanha, com a criança no colo, em 1959; sentado, aparece o jornalista Sandro Moreyra / Foto do Fundo “Última Hora”, Arquivo Público do Estado de São Paulo

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No Brasil da ficha limpa, “não faz sentido” manter a homenagem a João Havelange, batizando com seu nome o Engenhão. É o que pensa o jornalista André Iki Siqueira, biógrafo de João Saldanha (1917-90), o nome que defende para substituir o do ex-presidente da Fifa no estádio carioca.

Para o jornalista, o problema não se limita ao território nacional. “O nome de João Havelange gera também um constrangimento internacional”, afirma nesta entrevista em que provoca: “Alguém imaginaria batizar um novo estádio em São Paulo com o nome de Paulo Maluf?”.

Siqueira é autor da biografia “João Saldanha, uma vida em jogo” (Companhia Editora Nacional, 2007). (Transparência: tive a sorte de assinar o prefácio do livro). Dirigiu com Beto Macedo o filme “João Saldanha”, que recebeu numerosos prêmios e saiu em DVD em 2012.

Foi um dos pioneiros na crítica à escolha do nome de Havelange para o Engenhão, quando o cartola ainda não renunciara à presidência de honra da Fifa em virtude de um escândalo de recebimento de propinas. A renúncia ocorreu em abril.

Hoje André Iki Siqueira escreve um livro e uma série de TV sobre a história do velho Maracanã. Biógrafo do botafoguense João Saldanha, o jornalista é vascaíno.

*

Qual o problema com o nome de João Havelange no Engenhão?

Não é com o nome, é com a biografia. O futebol no Brasil e no Rio envolve milhões de pessoas, sobretudo crianças e jovens. É uma paixão nacional, arte popular, como dizia João Saldanha. O estádio é como se fosse um templo e o nome do estádio deve ser de alguém que seja uma referência ética, um exemplo de vida, de trajetória profissional ligada ao esporte.

Fico imaginando a seguinte cena durante um jogo no Engenhão. O filho pergunta ao pai quem é tal personagem e por que ele merece ser o nome daquele estádio…?

No Brasil de 2013, da ficha limpa, da luta pela ética, da Comissão Nacional da Verdade, não faz sentido manter uma homenagem, que pode ter sido simbólica no momento passado, mas, hoje, é imprópria. O país não vive mais na ditadura militar nem o Rio tem ditador. Com todas as denúncias, o processo na Suíça, por corrupção ou recebimento de comissão, como queiram, e o seu afastamento da FIFA e do COI, o nome de João Havelange gera também um constrangimento internacional. O Engenhão é um equipamento que será utilizado por essas entidades. Havelange sempre perseguiu esses cargos. Se não teve condições de permanecer na FIFA, que ele ajudou a construir, não deve ficar no Engenhão para sempre. Já foi homenageado muito tempo.

Eu defendo um nome honrado, limpo, íntegro, um democrata: João Saldanha, que foi vítima de Havelange na seleção brasileira de 1970, durante a ditadura Médici.

Sua proposta de mudança de nome para João Saldanha foi feita antes de Havelange ser denunciado por propina?

Sempre fui contra o nome de Havelange no Engenhão ou em qualquer outro equipamento público, por questões ideológicas. Respeito quem pensa diferente, mas eu penso assim e o meu campo é claro, sou um homem de esquerda. Alguém imaginaria batizar um novo estádio em São Paulo com o nome de Paulo Maluf ou de algum personagem que apoiou ou foi ligado à ditadura no Brasil?

Depois das denúncias publicadas no mundo e da sua queda anunciada e, posteriormente, confirmada, fiquei mais convencido do que nunca.

O importante, primeiro, é ter sensibilidade para desfazer a homenagem eterna e considerá-la uma etapa do Engenhão. O nome do João Saldanha surgiu naturalmente. Há outros bons nomes, mas João é o mais completo.

Aí, quando fecharam o Engenhão para reformas, sugeri aproveitar o momento e reformar também o nome do estádio para João Saldanha, provocando o debate.

Mas é jogo duro. Tenho consciência que será preciso coragem política e atitude para fazer a mudança. Significa enfrentar um grupo poderoso, que manda no esporte nacional há muito tempo. Por isso estamos vendo essa situação que parece que a bola tá queimando no pé de quem precisa resolver o assunto. Na hora da onça beber água, tem gente pipocando

Por que Estádio João Saldanha?

Eu sou suspeito, mas não faltam razões para defender João Saldanha. Homem apaixonado por futebol – não por cargos ou negócios; apaixonado pelo Brasil e pelo Rio, cidade que adotou nos anos 30, vindo do Rio Grande do Sul. Virou o mais carioca dos gaúchos, popular, idolatrado, profundo conhecedor do futebol, treinador campeão pelo Botafogo de 1957, de Nilton Santos e Garrincha; técnico que montou e classificou a seleção de 70 para a Copa do Mundo, com as feras do Saldanha; o comentarista que o Brasil inteiro consagrou; escritor de primeira qualidade, respeitado em todo mundo do futebol, por profissionais, imprensa e povo. Um homem que sempre esteve com sua vida em jogo na defesa do Brasil, da liberdade e do esporte.

Imaginem o pai contando para o filho quem foi João Saldanha. Não é uma diferença gritante de resposta?

E futebol é alegria, mas também é escola de vida.

Que iniciativas estão em curso para que ocorra a mudança?

A mobilização está ganhando força na internet, entre jornalistas, botafoguenses e até vascaínos, como eu. A ideia surgiu no ano passado e foi lançada pelo Núcleo de Estudos e Projetos Esporte e Cidadania. Há uma iniciativa dos vereadores Eliomar Coelho, Paulo Pinheiro e Renato Cinco (PSOL), que encaminharam um projeto de lei na semana passada. Alguns deputados estaduais – Marcelo Freixo (PSOL) e Robson Leite (PT) – e federais também estão na defesa do nome de Saldanha, incluindo Romário (PSB) e Chico Alencar (PSOL). O presidente da Comissão Estadual da Verdade (RJ), Wadih Damous já defendeu a troca de nomes.

Mas o prefeito Eduardo Paes, com todo respeito, pisou na bola em entrevistas recentes, quando disse que é uma decisão do Botafogo e não vai alterar denominações de instituições ou de áreas públicas por não concordar com a homenagem. Citou os exemplos de uma escola que leva o nome de Emílio Garrastazu Médici e do viaduto 31 de março. Respeito sua posição, mas discordo. Aliás, seria uma boa oportunidade, aproveitando a sua lembrança, para trocar também o nome da escola, porque Médici é um péssimo exemplo para os alunos, o general-presidente do período mais duro da repressão política. A história avança, novos fatos vão surgindo e é preciso rever posições.

Mas afinal, o Botafogo pode dar nome eterno para um equipamento da cidade e que é seu apenas temporariamente?

Espero que o prefeito, vascaíno, que gosta de futebol, reflita, mude de opinião e troque de João. Vai dar até mais sorte ao Engenhão. Em outro momento, vale lembrar, o prefeito trocou a Cidade da Música por Cidade das Artes…

Quem decide sobre a mudança, a prefeitura ou a Câmara Municipal?

Está na hora de alguém explicar definitivamente de quem é o poder e não correr da bola dividida.

E se um dia a Prefeitura do Rio transferir o controle do Engenhão para outro clube, como ficaria o estádio, batizado com o nome de um botafoguense?

João Saldanha era Botafogo doente, mas era de todas as torcidas. É apenas uma coincidência. O Engenhão não é do Botafogo, é da cidade do Rio de Janeiro. João Saldanha era respeitado por torcedores de todos os clubes do Rio e do Brasil. Gente que ele conquistou com a sua seleção de craques, com seu talento comentando e escrevendo e sua sinceridade, transparência. Um dos melhores brasileiros de todos os tempos. E lembrar que Havelange torce para o Fluminense e Mário Filho era flamenguista. O time não importa, o que conta é a folha corrida.

Com a série de aumentos de custo na construção do Engenhão e os alegados problemas com a cobertura, será que o nome Havelange não tem mais a ver do que o de Saldanha?

Havelange ficou sem cobertura…

O que João Saldanha, corrido por Havelange da seleção depois de classificá-la para a Copa de 70, estaria dizendo agora que vêm à tona tantas histórias sobre o antigo presidente da Fifa?

“Vida que segue…”. “Foi pro vinagre”.

Entendo que trocar João Havelange por João Saldanha seria um ajuste de contas histórico.

Que história sobre Saldanha você considera a mais engraçada em seu livro?

João era um personagem dramaticamente completo, prato feito para um bom ator interpretar. A vida dele teve de tudo: tragédia, drama, aventura, amor e comédia. O temperamento do João e as suas ações eram sempre imprevisíveis. Difícil escolher a história mais engraçada entre tantas, mas a clássica é a dos tiros no goleiro Manga. João falando sobre a briga e as versões das pessoas que entrevistei, contando o caso com detalhes diferentes, é de rolar de rir: a arma era grande, pequena, dourada, prateada; atirou para o alto, para baixo; Manga saiu correndo e pulou um muro de altura que variava entre metro e meio e três metros… João disse que esperou Manga, deitado embaixo de um Fusca!

João era muito engraçado, tinha um humor fino. Fico pensando como seria João Saldanha com internet, Twitter e Facebook. Dinamite pura.

E a mais comovente?

De todo o material que pesquisei, a imagem que me marcou mais foi a chegada do corpo do João, em 1990, no setor de cargas do Galeão, dentro de um caixote, recebido por poucos parentes e companheiros do Partidão. Um desrespeito absoluto, descaso e injustiça. João Saldanha merece todas as homenagens dos brasileiros.

E a frase definitiva do seu amigo Oscar Niemeyer, “João, quanta falta você nos faz!”.


Na noite de Santa Maria, um cartaz acarinha a mãe morta na boate Kiss
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Mário Magalhães

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Em Santa Maria (RS)

Pelas dez e meia da noite deste domingo das mães, não se vê ninguém diante dos destroços da boate Kiss, em Santa Maria, mas as flores frescas denunciam romarias recentes até ali.

Uma mensagem de feliz Dia das Mães foi colada ao lado de um cartaz que reverencia a memória de uma moça chamada Marfisa. Depois, já no hotel, leio na internet que ela era funcionária do estabelecimento e tinha um filho.

Os tapumes em frente ao que foi a boate formam um imenso painel de homenagens às 241 pessoas que perderam a vida no incêndio criminoso de 27 de janeiro. Marfisa, a mãe, foi uma delas.

 

 

 


Carta a Ari Cipola (1962-2004), onde quer que esteja
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Mário Magalhães

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Salve, Ari, quanta saudade. Já são nove anos, desde aquele fim de manhã, começo de tarde, quando nos despedimos de ti no cemitério em Maceió, depois de o teu coração te pregar uma peça.

Não faço ideia de se onde estás as notícias chegam rápido, por isso trato de contar as novidades. Terminou ontem à noite o julgamento relativo às mortes de Paulo César Farias e Suzana Marcolino.

Sim, demoraram 17 anos para julgar, e os meus tímpanos tremem só de pensar no teu vozeirão: “Dezessete anos? Para com isso, Marião!”.

Está aí uma coisa que eu nunca entendi: com o dobro do meu tamanho verticalmente e o triplo na horizontal, és tu que me chamas de Marião, e eu jamais te trato por Arizão. Um dia a gente conversa, e tu me explicas isso melhor.

Os jurados decidiram que não houve o tal crime passional alardeado pela polícia em 1996, com o endosso de uma turma de peritos que bancou a versão de que Suzana teria assassinado PC e depois se suicidado.

O júri popular concluiu que houve duplo homicídio, mas não puniu os quatro réus, aqueles policiais militares e seguranças do PC que tu conheceste.

Achei que gostarias de saber que não foi em vão o teu esforço, farejando pistas e revelando informações que contradiziam a versão oficial de 1996 sobre o crime. É isso mesmo: de acordo com a Justiça, o PC e a Suzana foram assassinados. Ela não deu um só tiro na madrugada ou na manhã de 23 de junho de 1996.

Minha opinião sobre a absolvição? Acabei de escrever um artigo sobre isso. O juiz falou em “clemência”. É difícil acreditar que os PMs não tenham ouvido os disparos, mas, se condenados, haveria um incômodo: a punição de peixes pequenos, sem a identificação do mandante.

Embora o júri tenha visto o óbvio, as provas ululantes de duplo homicídio, o julgamento consagrou a impunidade: a Suzana e o chapa do Collor foram mesmo eliminados, mas ninguém pagará por isso.

A culpa não é do júri, mas de uma “investigação”, assim, com aspas, em que, no calor do fato, antes de apurar, algumas autoridades já bradavam a tese de crime passional. Ok, sei que sabes disso tudo muito mais que eu.

O laudo da equipe do Badan Palhares? O júri popular rejeitou-o, adotando o parecer da equipe do Daniel Muñoz, o legista, e do Domingos Tochetto, aquele gaúcho de sotaque italiano, especialista em balística forense.

Imagino que devas estar recordando o perrengue que foi ficar, tu e a tua família, protegido pela Polícia Federal e a Polícia Militar por tanto tempo, depois das intimidações à época da reviravolta no caso, em 1999.

Mas eu queria dizer, reitero, que valeu a pena tu não bajulares peritos, não te submeteres às primeiras versões oficiais, preferindo buscar dados novos, exercendo o trabalho do magnífico repórter que és.

A propósito, Ari, tem uma rapaziada de talento despontando na reportagem, mas tu fazes muita falta. Sei que poucos anos depois do Caso PC resolveste largar o jornalismo. Lamentei, mas respeitei a decisão. De todo o modo, tomara que cada vez mais jovens jornalistas conheçam os trabalhos que fizeste. Não haverá melhor inspiração.

O Paulo Peixoto, nosso companheiro naquelas investigações de 1999, manda um abraço. Estivemos juntos outro dia, em BH. Continua igualzinho, o tempo tem sido generoso com ele. O Paulo escreveu na “Folha” uma análise sobre o episódio, talvez tenhas lido.

Vou me despedindo, para ficar com a criançada. Depois do Caso PC, como sabes, ganhei uma segunda filha, tão adorável quanto a primeira. Quem não conheces é o caçula, que chegou depois daquela nossa despedida em Maceió.

Ontem à noite eu falei de ti para ele, que começou a conhecer a tua história. É isso aí, Ari: enquanto houver quem se lembre da gente depois da partida, nunca morreremos.

Abração do velho amigo que não te esquece,

Mário


Uma noite com Gilberto Gil
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Mário Magalhães

Gilberto Gil, no bar da Casa do Saber, no Rio, antes da conversa de quinta-feira à noite

 

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É incrível que isso possa acontecer, mas foi calorosa a noite de ontem, a despeito do ar-condicionado polar da Casa do Saber carioca. O autor da façanha foi Gilberto Gil, em bate-papo com a jornalista Regina Zappa, no encontro “Um doce e bárbaro, sempre a mil”.

Ao contrário do que eu supus assim que me sentei numa poltrona do pequeno auditório, lotado com uma centena de pessoas que pagaram R$ 120 cada uma para assistir ao compositor, Gil não se agasalhou mais, nem protegeu a garganta, vestindo apenas uma camisa e uma jaqueta de tecidos leves. “Pra mim, tá bom”, respondeu, quando lhe indagaram sobre a temperatura.

Também não pareceu friorento nos pés: na noite de outono carioca, calçava um par de mocassins _sem meias, como recomenda a elegância, e Gilberto Passos Gil Moreira, 71 anos no mês que vem, é um homem de cabelos brancos muito elegante.

Durante duas horas e 17 minutos, o palestrante desfiou reminiscências e reflexões, das manifestações de racismo na infância aos mais ou menos “100 ácidos” consumidos no exílio londrino, da conversa com Lula para ser ministro da Cultura aos bastidores da composição de obras-primas, de histórias de Chico e Caetano a comoventes e bem-humoradas considerações sobre a velhice.

É curioso que seu típico manancial vocabular dos baianos ilustrados, que lhe rendeu gozação _e tributo_ de Chico Anysio em um personagem célebre, não o tinja de cores pernósticas, e sim, novamente, elegantes. Gil fala muito com as mãos, e nos momentos mais empolgados mexe vigorosamente as duas, como se regesse uma orquestra.

No segundo semestre, a Nova Fronteira publicará uma biografia do artista escrita por Regina Zappa. A seguir, compartilho um pouco do que ouvi ontem, do memorialista e pensador Gilberto Gil, e anotei em 29 páginas de minha caderneta.

Emotivo

Regina Zappa contou que Gil diz funcionar do pescoço para baixo. Ou seja, com emoção, e não com a cabeça. Em abril, ele assistiu a um casamento que se arrastou por duas horas e se emocionou: “Chorei o tempo todo”.

‘Musiqueiro e pai de menino’

Recém-nascido em Salvador, Gil mudou-se com a família para Ituaçu, “cidade de 800 habitantes”. Aos dois anos, o menino disse à mãe o que queria ser quando crescesse: “Musiqueiro e pai de menino”. Compôs mais de 500 músicas e procriou bastante. Ele nega a versão de que na infância tenha dito que queria ser presidente da República.

O primeiro instrumento

Por falta de curso ginasial em Ituaçu, por volta dos dez anos o menino Gil voltou para a capital baiana, onde estudaria no colégio dos irmãos maristas. A mãe perguntou se ele queria mesmo “ser musiqueiro”. Com a resposta positiva, pediu que o filho escolhesse um instrumento. Como era fã de Luiz Gonzaga, ele ganhou uma sanfona.

Racismo

No colégio dos maristas, “foi um pânico absoluto, o colégio era do tamanho da cidade [Ituaçu]”. No interior, seus pais, “se não rei e rainha, eram duques”, disse Gil, referindo-se ao status social de um médico e uma professora em uma pequena comunidade. “Lá, havia um ambiente de convívio compulsório entre raças.” Nos maristas, “aparece a questão de ser negro”. Um professor de matemática dava aula, e Gil, de 10, 11 anos, levantou o dedo e esboçou duas ou três palavras. O mestre reagiu: “Cale a boca, seu negro boçal!”. “Esses incidentes me deram consciência das diferenças raciais”.

A descoberta de João Gilberto

O primeiro grande encanto de Gil na música foi o pernambucano Luiz Gonzaga. Mais tarde veio o baiano Dorival Caymmi. O terceiro foi outro filho da Bahia, João Gilberto, no final da década de 1950. Gil voltara do colégio e almoçava ouvindo a Rádio Bahia, que tocava a recém-lançada “Chega de saudade”. Gil cantarola ao recordar: “Vai minha tristeza e diz a ela…”. Ao ouvir pela primeira vez a canção, assombrou-se: “Meu Deus do céu, o que é isso?”. Largou o prato e correu até o armazém vizinho, do galego Manolo, único imóvel com telefone nas redondezas. O galego encontrou o telefone da emissora, e o jovem Gil, 16 ou 17 anos, perguntou de quem era a voz que acabara de ouvir. “É João Gilberto, um cantor que apareceu agora. Novo, baiano.” Gil: “Naquele momento eu disse ‘bom, Gonzaga, Caymmi e agora tem esse rapaz também”. Logo pediu à mãe um violão.

‘Caetano, venha ver aquele neguinho’

Como relembrou Gil, o episódio integra o “anedotário” da música brasileira. Ele se apresentava no programa de TV do publicitário Jorge Santos. Na Bahia, “era uma espécie de Silvio Santos” antes de existir o programa de Silvio Santos no formato em que se consagraria. Um dia, em Santo Amaro, dona Canô chamou o filho Caetano Veloso: “Caetano, Caetano, venha ver aquele neguinho de que você gosta na televisão!”.

Faculdade e trabalho

O pai tentou seduzir Gil para a medicina, mas o filho fez vestibular para engenharia e levou bomba. Acabou tentando a recém-aberta faculdade de administração, na qual ingressou em 1960. “O vestibular era mais fácil, não tinha química, matemática, física. Pensei: ‘É pra aqui que eu vou’”.  Pela época, Gil foi aprovado em um concurso do Ministério da Fazenda e foi trabalhar na alfândega, como fiscal aduaneiro. Nos plantões noturnos, tocava violão e lia livros como “O Capital”, de Karl Marx.

Caetano

Na tradicional rua Chile, no centro de Salvador, o amigo comum Roberto Santana o apresentou a Caetano Veloso: “Vocês gostam muito de bossa nova, vocês vão se entender”. Sorrindo, como em quase toda a noite, Gil observou ontem: “E a gente se entende muito bem até hoje”.

Elis e Milton

O administrador de empresas Gil se casou com Belina em maio de 1965 e no mês seguinte se mudou para São Paulo, onde foi aprovado em um concurso nacional da Gessy Lever. “Eles queriam ter pela primeira vez um executivo negro no Brasil”, recordou. A música o tirou da empresa, privando-a do seu promissor executivo. Um dia Elis Regina lhe telefonou, e marcaram um encontro no apartamento dela, pertinho da praça da República. Ele mostrou algumas músicas, e “começou a amizade”. Mais tarde, Gil levou Milton Nascimento até lá. Pouco tempo atrás, o mineiro lembrou, segundo o baiano: “O Gil me fez cantar umas 30 músicas para a Elis”. “Mentiroso!”, gargalhou Gil. “Você ganhou ela de cara”. Elis gravou muitas criações dos dois.

Na madrugada, nasce ‘Domingo no Parque’

Gil mencionou diversas vezes e com muito carinho o nome de Chico Buarque. Ao evocar a criação de “Domingo no Parque”, para alguns a mais genial obra gilbertiana, o compositor comentou uma declaração de Chico no filme “Uma noite em 67”, explicando que “música de festival” tem que ter uma pegada diferente, com impacto especial. Já casado com a cantora Nana Caymmi, Gil havia ido jantar com ela na casa do pintor Clóvis Graciano. Ao retornarem para o hotel em São Paulo, ele foi preparar uma música para o Festival da TV Record de 1967. “Tinha que ter um truque qualquer, festival…”. Pensou em berimbau, capoeira, “coisa exótica”. Pegou o violão e o gravador. Pelas 7 da manhã, cutucou Nana e mostrou a música inteirinha. “Teve a ver com a ida à casa de Graciano, os quadros”. Rindo muito, referiu-se às características daquela música de festival, que acabou em segundo lugar, atrás de “Ponteio”: “Era tudo o que o Chico queria”.

Tropicalismo e o porre de Chico

Impressionados com tudo o que os Beatles significavam nos anos 1960, Caetano e Gil marcaram uma reunião para conversar sobre a estética do que depois seria conhecido como Tropicália. Muita gente encrencou com “elementos de música estrangeira”, guitarras, enumerando argumentos caretas em nome de um suposto nacionalismo. Gil e Caetano conversaram. Se os outros não queriam, “então nós fazemos”. Chico conta para Gil até hoje por que não foi à reunião: “Eu tava bêbado, tomei um porre naquela noite”, disse o amigo.

Ácidos em Londres

Depois de ficar preso do fim de 1968 até o Carnaval de 1969, Gil partiu para o exílio na Inglaterra, com Caetano e as respectivas mulheres. Foi uma época de novas experiências: “Cheguei a tomar mais ou menos 100 ácidos lisérgicos em Londres, num período de quase três anos”.

O encontro com Jimi Hendrix

Junto com os Beatles, o guitarrista Jimi Hendrix foi a maior influência estrangeira na música de Gil. Em agosto de 1970, Gil se apresentou no Festival da Ilha de Wight, no Reino Unido. Semanas antes de morrer, Hendrix, já um mito, esteve lá como grande astro. Antes de o músico norte-americano se apresentar, o percussionista brasileiro Airto Moreira apresentou-lhe Gil e Caetano: “Jimi, aqui dois meninos brasileiros, tão em Londres”. Cumprimentaram-se, e quando Hendrix se virou Caetano comentou: “Interessante ele, né? Parece um daqueles mulatos lá de Santo Amaro”.

O pedido de Lula

Quando Luiz Inácio Lula da Silva o chamou para a pasta da Cultura, Gil reagiu: “Presidente, quer mesmo que eu seja ministro? O que quer que eu faça?” Lula devolveu de bate-pronto: “Suba no seu palco. Vá lá e faça como você faz na música”. Gil disse ontem: “Fui escolha pessoal do Lula, contra o PT. Eu levei para lá [o Ministério] o máximo da minha integridade. O governo Lula queria criar admissibilidades para os setores esmagados, discriminados”. Foi o que o ex-ministro disse que buscou fazer na Cultura.

A idade e o ‘rei dos animais’

“Vou fazer 71 anos”, disse Gil. Ele lembrou um verso da canção “O homem velho”, de Caetano: “O homem velho é o rei dos animais”. E arrancou risadas: “Já me sinto um pouco o rei dos animais”. Diz que a idade proporciona “uma zona de conforto mais definitiva. Faz com que o futuro não esteja sujeito a expectativas predominantes. Não há muito o que ficar esperando da vida. Já tou mais quieto, já tou mais calmo”. Lembrou seu mais de meio milhar de composições e as músicas de autoria alheia que o acompanham: “Isso tudo me dá muita coisa”. Jovem, ele saía pela noite paulistana com Chico Buarque e no dia seguinte, num saudável clima de “competitividade” entre os amigos, um ligava para o outro para mostrar a nova canção recém-feita. “Não preciso mais de tanta volúpia. Gosto muito de uma expressão: a conformidade conforme a idade”. A única “dimensão” que permanece intocada na velhice, observou, é a espiritual. “Canô dizia: ‘Quem não morre envelhece’. É a única responsabilidade que vai restando a nós.”

Crise e ‘Palco’

Certa feita, depois de um ano intenso de trabalho, Gil entrou em crise. “Senti um fastio, não queria mais aquilo tudo. Era medo de que a música pudesse secar.” “Falou” para a música: “Parei com você, música”. “É o que você pensa”, soprou-lhe a música na conversa imaginária. “Se você parou comigo, faça uma música, me use para dizer isso”. Então Gil compôs “Palco”. “Acabou sendo o oposto de quem quer parar.” “Hoje em dia não tenho mais crises. Talvez seria bom que tivesse”, sorriu.

‘Tem que dormir’

Gil evocou versos de Chico: “Eu faço samba e amor até mais tarde/ E tenho muito sono de manhã”. Enfatizou, com mais um sorriso: “Não é mais assim! Há um mandato biológico. É outra história. Tem que dormir”.


Absolvição no Caso PC não seria surpresa: tempo, destruição de provas, investigação deficiente e ‘ausência de mandante’ diminuem chances de condenação
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Mário Magalhães

 

PC Farias em dezembro de 1993, menos de três anos antes de ser assassinado/Foto de Ormuzd Alves

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Com três dias de julgamento dos quatro antigos seguranças de Paulo César Farias acusados de co-autoria das mortes de Suzana Marcolino e do ex-caixa de Fernando Collor, não surgiu novidade importante em relação ao que já se conhecia nos autos do processo.

Não haverá surpresa se os réus forem absolvidos, por muitos motivos.

Passaram quase 17 anos do dia 23 de junho de 1996, quando os cadáveres do casal de namorados foram encontrados em Maceió. Os fatos estão muito mais distantes na memória, inclusive na dos jurados. Houve tempo suficiente para se construírem versões comuns, que de início às vezes não se encaixavam.

Isso mesmo: a Justiça demorou 17 anos para julgar os acusados.

Como em quase todos os crimes, as primeiras horas e dias são fundamentais na investigação da autoria. Em Alagoas, os corpos mal tinham esfriado quando o delegado de polícia anunciou que ocorrera um homicídio seguido de suicídio _Suzana teria assassinado PC e em seguida se matado. A conclusão antecedeu a apuração. Alguns objetos da cena do crime foram queimados, outros sumiram.

Embora o inquérito da Polícia Civil e a denúncia do Ministério Público Estadual de Alagoas em 1999 tenham rejeitado a versão de 1996 e concluído que PC e Suzana foram mortos por outra(s) pessoa(s), jamais identificaram o mandante ou o(s) autor(es) dos disparos. Condenar os seguranças seria condenar co-autores sem punir o mandante.

A acusação contra os seguranças também se enfraquece porque a investigação não conseguiu descrever o papel individual de cada réu nas mortes. Eles estavam no terreno ao redor da cada, por isso teriam de ter ouvido o tiro, consideraram a polícia e o Ministério Público. De alguma forma, teriam participado de uma farsa para encobrir dois homicídios, mas a acusação não entra em detalhes.

Os quatro réus são policiais militares, e três deles estão uniformizados no julgamento. Ignoro estatísticas sobre distorção entre condenação por homicídio de acusados vestidos à paisana ou com uniforme militar no tribunal do júri. Não sei se há jurados que se sentem intimidados.

Por mais eloquentes que sejam as provas técnicas produzidas de 1997 a 1999, estabelecendo claramente que Suzana Marcolino não atirou uma só vez naquele evento, as apresentações dos peritos em balística forense e medicina legal parecem muitas vezes grego a quem não conhece nem aquele alfabeto.

De resto, não seria surpreendente uma eventual absolvição. No país em que Fernando Collor de Mello não sofreu nenhuma condenação definitiva em virtude de suas ações na Presidência, a morte do seu parceiro PC não ser punida não poderia ser mesmo considerada surpresa.


Na vitória do Flu, outra ótima notícia para o Brasil: Fred volta tinindo para a Copa das Confederações
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Mário Magalhães

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O Fluminense que venceu o Emelec por 2 a 0 e passou às quartas-de-final da Libertadores, não é candidato ao título pelo que tem jogado ou jogou em São Januário. É forte pelo que pode jogar, se restabelecer o alto nível com que conquistou o Campeonato Brasileiro de 2012. O próximo adversário será o argentino Tigre ou o paraguaio Olímpia.

A noite de ontem não merece ser celebrada só pelos tricolores, mas por quem anda preocupado com as perspectivas da seleção para a Copa das Confederações. Atacante mais qualificado para ser o centroavante do time de Felipão, Fred voltou tinindo, depois de um mês parado por contusão muscular. Não há hoje ninguém mais indicado para titular na configuração do técnico que exige um centroavante enfiado na zaga adversária.

Fred comandou a equipe. Depois do susto inicial, quando Cavallieri defendeu um chute cara a cara de De Jesús, o atacante infernizou a defesa do Emelec, que logo viu um cartão amarelo quando o capitão tricolor levou uma braçada. Caçado, Fred teve a testa avermelhada e inchada em choques.

Aos 27 minutos, Fred sofreu falta de Narvaez na intermediária direita da defesa do Emelec. Jean cruzou, e Fred marcou de cabeça. Já bastaria, pelo peso maior do gol do Fluminense fora, em Guaiaquil, quando perdeu por 2 a 1.

Confiante, Fred cobrava o juiz e colhia mais amarelos para a equipe equatoriana, que bateu muito. Aos 35 minutos, correu em cima do árbitro, depois que Carlinhos levou um carrinho de Valencia, que não foi amarelado.

“Tou me sentindo bem”, disse Fred no intervalo, com uma voz _eu nunca me dera conta_ que lembra a de Herbert Vianna quando tinha a sua idade.

Com 1 minuto do segundo tempo, Fred deu um passe certeiro para Thiago Neves, que poderia ter saído na cara do gol, mas se atrapalhou com a bola. Fred levou mais empurrões e também empurrou. Ganhou um soco no peito. Voltou no velho estilo lutador.

Só saiu, cansado, depois da expulsão de Achilier e antes da de Quiñonez, perdas do Emelec seguidas do gol de Carlinhos. Foi um prêmio para o lateral, que no Equador marcava legalmente um oponente quando o árbitro inventou o pênalti que deu a vitória ao time da casa.

No segundo tempo, o Fluminense foi pressionado e poderia ter sofrido o empate. Um problema a resolver com urgência é a lentidão do meio-campo. Há uma ótima referência de padrão a buscar: a eficiência de Fred, que está inteiro para a Libertadores e a Copa das Confederações.

 


Horário das mortes enfraquece versão de que tiros não foram ouvidos
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Mário Magalhães

Suzana Marcolino e PC Farias, mortos, em 23 de junho de 1996

 

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Todos os funcionários de Paulo César Farias que estavam do lado de fora da casa onde o ex-tesoureiro de Fernando Collor e Suzana Marcolino morreram, em junho de 1996, afirmam que não ouviram o barulho dos disparos. Um vigia que depôs como testemunha no julgamento em curso reafirmou o relato. É a mesma versão dos quatro seguranças, todos policiais militares, acusados de co-autoria por duplo homicídio.

A alegação é a mesma: o foguetório das festas juninas impediu que fossem ouvidos o ruído dos dois tiros.

Perícia feita na investigação, utilizando o mesmo revólver calibre 38 que causara as mortes, mostrou que o barulho seria perfeitamente audível. Os jornalistas que acompanharam a perícia também escutaram.

Os funcionários reiteraram que o foguetório teria impedido a audição dos disparos.

As mortes, contudo, não ocorreram na noite do sábado, 22 de junho de 1996. E sim na madrugada ou manhã do domingo, 23.

Um exame feito em seguida aos óbitos examinou a presença de alimentos no estômago de PC e Suzana. A autora do exame foi a médica Maria Tereza Pacheco, doutora pela Universidade de Paris e então diretora do Departamento de Polícia Técnica da Bahia.

Conclusão do seu laudo: PC (levou um tiro) morreu entre a 1 hora e as 2 horas da madrugada. Suzana (outro tiro), entre as 5 horas e as 7 horas da manhã.

Nesse horário, a barulheira dos fogos é bem menor, residual ou quase inexistente, afirmam moradores de Maceió. Os seguranças de PC asseguram que não ouviram nada.

 

 


Tempo, tempo, tempo…
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Mário Magalhães

 

Para usar um clichê, vejam as voltas que a vida dá: às 13h23 de hoje, era essa a imagem que se via na página principal do UOL (os destaques foram feitos por mim). Quase 17 anos depois de ser assassinado, PC Farias é evocado em um julgamento em Maceió. Vinte e um anos após sofrer impeachment, provocado por negociatas intermediadas por PC, seu velho amigo Fernando Collor está de volta às manchetes. Agora é senador. “Mudaram as estações, nada mudou”, cantava Renato Russo.


Só com mais de 2 metros Suzana se ‘encaixaria’ na versão de suicídio, mostra simulação na USP; entenda por que altura é decisiva no Caso PC
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Mário Magalhães

PC Farias com Suzana Marcolino

 

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Um advogado da defesa dos quatro seguranças acusados de co-autoria das mortes de Paulo César Farias e Suzana Marcolino disse dias atrás que a única altura da namorada de PC que importa é a sentada.

Ele tem razão, pelo menos do ponto de vista da versão de que Suzana teria se suicidado. De acordo com o relato do laudo coordenado pelo legista Fortunato Badan Palhares, em 1996, a “suicida” se mata sentada, com o revólver calibre 38 praticamente encostado ao peito.

Porém, uma simulação produzida na USP demonstrou que, para estar correta a hipótese de suicídio, Suzana teria de medir mais de 2 metros da sola dos pés ao cocuruto. Mas sua estatura era inferior a 1,60 m _na versão da equipe de Badan, que não a mediu, teria 1,67 m.

A altura de Suzana às vezes parece um fetiche no Caso PC. Não é, como explico abaixo em 17 tópicos. Foi uma descoberta relativa à estatura que impediu o arquivamento do processo em 1999 e provocou uma reviravolta na investigação.

Eis um roteiro, tim-tim por tim-tim, para entender a questão:

1)     A altura de Suzana diz respeito exclusivamente à discussão sobre seu suposto suicídio, não à morte de PC Farias. Esqueçamos, aqui, que não havia digitais dela na arma de onde saíram as balas que mataram o casal de namorados em 1996. Nem que não havia nas mãos de Suzana resíduos de chumbo, bário, antimônio, cobre e zinco, substâncias metálicas que grudam à pele de quem atira com a munição usada naqueles disparos.

2)    Foi possível estabelecer a trajetória da bala que matou Suzana, pois o projétil atravessou uma parede de madeira compensada, atrás da cama onde ela foi abatida, e tocou em um móvel atrás. Os dois pontos formam uma reta que fixa a trajetória. A bala ultrapassou a parede a 69,5 cm do solo e bateu no braço de uma cadeira a 66,5 cm, caindo ao chão.

3)    Também ficou definida a trajetória da bala dentro do corpo de Suzana: é descendente, trajetória incomum em suicidas que tiram a vida com disparos no peito. O padrão em suicidas é a trajetória ascendente, de baixo para cima, como ensinam os compêndios de medicina legal e balística forense.

4)    Paulo César Farias tinha 1,63 m de altura, dado não contestado por qualquer perito que tenha sido chamado a se pronunciar no processo.

5)    Ao entregar à Justiça de Alagoas o laudo coordenado por ele, em 1996, Badan Palhares não informou a altura de Suzana Marcolino. Instado pelo juiz, informou: 1,67 m.

6)    Uma segunda equipe de peritos, convocada pela Justiça de Alagoas, produziu um novo laudo em 1997. Exumados os restos mortais de Suzana, foi projetada sua altura com base em ossos longos, da perna. Foram empregadas tabelas antropométricas de projeção consagradas internacionalmente. A altura encontrada ficou em torno de 1,57 m. Isso significaria que, se Suzana estivesse sentada, típica posição de suicidas, considerando seu peso e as características do colchão, a bala teria passado bem acima do seu peito. Suzana teria, na verdade, sido morta se levantando, como numa posição de defesa diante de um atirador.

7)    Badan Palhares reagiu em setembro de 1997, com um artigo na “Folha de S. Paulo”, reafirmando 1,67 m. Escreveu que “a altura de Suzana é fundamental. Estando errada, estará errado todo o resto _a começar pela trajetória do tiro e por sua projeção em relação à parede trespassada pela bala”.

8)    No dia 24 de março de 1999, a “Folha” publicou uma série de fotos que mostram que Suzana era menor do que PC, cuja altura era, já se disse, 1,63 m. O autor da reportagem, hoje titular deste blog, ouviu parentes de Suzana, amigos, colegas e professores de academia, viu os sapatos de saltos altíssimos que ela usava, conheceu relatos sobre sua bronca por ser baixinha e muitos outros depoimentos que confirmavam o que as imagens evidenciavam sem margem a dúvidas.

9)    Na véspera da publicação da reportagem, o promotor Luiz Vanconcelos, que cuidava do caso, afirmara que iria pedir o arquivamento do processo, por falta de provas de que não ocorrera o homicídio (Suzana teria assassinado PC) seguido de suicídio (ela dera cabo da própria vida), versão da polícia em 1996. Ao se deparar com as fotos reveladas no jornal, Vasconcelos decidiu reabrir as investigações.

10)    A equipe autora do laudo de 1996 alegou que a altura de 1,67 m aparece em fotos do corpo de Suzana na necropsia efetuada por Badan Palhares, dias depois das mortes. Na mesa de autópsia existe mesmo uma régua lateral. Contudo, como se constata analisando as imagens, as fotos são parciais, mostrando a cabeça, mas não a posição dos pés, se estariam na posição 0 cm da régua.

11)    Por meio de um advogado, Badan Palhares reafirmou que mediu a altura de Suzana na necropsia. Ocorre que Badan providenciou a gravação de todo o procedimento médico-legal, o que resultou em um VHS de 1 hora, 59 minutos e 58 segundos de duração. Essa gravação consta dos autos do processo. Em nenhum momento, de antes de abrir o caixão, até fechá-lo novamente com o cadáver de Suzana, ela teve a altura medida. O áudio demonstra que não se tocou no assunto.

12)    Dois funcionários da Unicamp que participaram da necropsia executada por Badan Palhares depuseram à Polícia Federal. Ambos asseguraram que Suzana não foi medida.

13)    A equipe do primeiro laudo fez referência a um vídeo em que se pergunta a um legista de Alagoas, que participara da autopsia em seguida às mortes, sobre a altura de Suzana. Ele responde 1,67 m. Não há referência a essa altura no laudo da necropsia. Na verdade, era a altura que Suzana informava em documentos, alongando seu tamanho.

14)    Badan Palhares afirmou que se pudesse comparar Suzana com uma pessoa viva ficaria claro que ela tinha 1,67 m. Foi o que eu fiz. Ana Luiza Marcolino foi medida por um médico, e a “Folha” publicou novas fotos, agora das duas irmãs. Ana Luiza mediu 1,63 m no consultório. Era bem maior do que Suzana, como asseguram as imagens e as duas sempre souberam. O maior da família é o irmão, com 1,65 m.

15)    A equipe de Badan Palhares alegou que a tabela antropómétrica empregada pela segunda turma de peritos, para projetar altura com base em ossos longos, não se aplicava a brasileiros. A “Folha” revelou que Badan apresentara em um congresso em Boca Raton, na Flórida, casos em que ele utilizara com sucesso as tabelas que criticava no caso PC. Usei as tabelas adotadas pelo próprio Badan e, com base no tamanho dos ossos longos de Suzana, descobri que sua altura se situava entre 1,57 m e 1,58 m.

16)    O Ministério Público de Alagoas requisitou formalmente, e a “Folha” cedeu as fotos relativas à altura de Suzana. Laudo produzido na Unicamp com estudo em computadores projetou a altura entre 1,53 m e 1,57 m.

17)    De certo modo, praticamente toda a discussão anterior ficou vencida quando o legista Daniel Muñoz, professor da USP, fez em 1999 uma simulação do que teria sido o “suicídio” de Suzana. Muñoz fora o coordenador da equipe que identificou os restos mortais do nazista Josef Mengele. Ele integrou a segunda equipe de peritos a se pronunciar no Caso PC, rechaçando a hipótese de Suzana ter matado o namorado e a si mesma. Usando várias de suas alunas com tamanho e peso parecido ao de Suzana como “dublês”, ele reconstituiu o tiro. Descobriu que, sentada, Suzana precisaria ter mais de 2 metros para que a bala a atingisse no peito. Logo, ela não estaria sentada, o que derruba a versão de suicídio. A simulação conduzida por Munõz foi apresentada em um debate entre os peritos, promovido pela Justiça de Alagoas, e consta dos autos.

 


Irmão de PC diz que STF o inocentou. Verdade: tribunal não o julgou
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Mário Magalhães

Augusto Farias, hoje no julgamento; em 1999, ele foi indiciado pela polícia de Alagoas como co-autor dos homicídios do seu irmão PC Farias e de Suzana Marcolino

 

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O ex-deputado Augusto Farias afirmou hoje, como testemunha no julgamento do Caso PC em Maceió, ter sido “julgado” pelo Supremo Tribunal Federal. Ontem, em entrevista, Augusto dissera ter sido “inocentado” pelo STF da acusação de duplo homicídio do seu irmão Paulo César Farias e de Suzana Marcolino.

Ambas as declarações não têm lastro na realidade: o Supremo jamais julgou Augusto Farias pelas mortes de quase 17 anos atrás.

No julgamento em curso, ele é testemunha de defesa dos quatro ex-seguranças de PC acusados de duplo homicídio. O ex-deputado paga o advogado dos réus.

Augusto foi indiciado em 1999, pela polícia de Alagoas, por co-autoria das duas mortes. Como tinha fórum privilegiado, o Ministério Público estadual não poderia denunciá-lo, pois a prerrogativa era do Ministério Público Federal.

Comandado pelo então procurador-geral da República, Geraldo Brindeiro, o MPF pediu em 2002 o arquivamento do inquérito federal, que investigava Augusto Farias e o médico-legista Fortunato Badan Palhares.

O STF não julgou Augusto e Badan. Simplesmente arquivou o inquérito federal, pois esse fora o pedido do MPF.

O que o Supremo fez, em 2011, foi rejeitar mais um dos recursos da defesa dos quatro seguranças, que tentava evitar um julgamento.

Em 2000, Brindeiro escrevera em parecer: há elementos que “indicam a participação” de Augusto no “duplo homicídio”. Também apontou “indícios fortes” de Badan ter cometido falsa perícia.

O ex-deputado e o legista sempre negaram autoria de qualquer crime.

Geraldo Brindeiro, procurador no governo de Fernando Henrique Cardoso, era chamado pelos críticos de “engavetador-geral da República”.

O parecer do MPF que pediu o arquivamento ignorou todas as novas provas surgidas na reabertura das investigações em 1999. O procurador que assinou o documento não assistiu a um vídeo relevante, contido nos autos. Esmiucei tudo na edição de 24 de novembro de 2002 da “Folha de São Paulo”. Até hoje, os pormenores do arquivamento impressionam, como se pode ler abaixo:

 

O parecer da Procuradoria Geral da República, que pediu o arquivamento do inquérito federal sobre o caso PC, ignorou todas as provas produzidas em 1999. Naquele ano, fotografias derrubaram a versão inicial sobre as mortes de Paulo César Farias e sua namorada, Suzana Marcolino, ocorridas em 1996.
Também novos laudos e testes foram feitos em 1999 a pedido da Justiça de Alagoas. As conclusões contradisseram o relato de que Suzana matou PC com um tiro e depois se suicidou. Apontaram para o assassinato dos dois por outras pessoas.
PC Farias foi o principal articulador do esquema de corrupção no governo Fernando Collor (1990-92). Horas após sua morte, a polícia divulgou a versão de Suzana como homicida-suicida. Laudo pericial coordenado pelo médico-legista Fortunato Badan Palhares amparou a tese.
O parecer tem erro, omissões e contradições até com o parecer sobre o mesmo caso assinado pelo procurador-geral da República, Geraldo Brindeiro, em 2000. O autor do novo documento é o vice-procurador-geral, Haroldo Ferraz da Nóbrega. Recebeu o “aprovo” de Brindeiro, manifestando concordância.
Nóbrega assinou o parecer no dia 8 passado. Sustentou que Suzana matou PC e se suicidou. No dia 13, o STF (Supremo Tribunal Federal) arquivou o inquérito. Segundo o relator, ministro Sepúlveda Pertence, se o procurador-geral da República pede o arquivamento, o STF deve determinar o encerramento do inquérito, mesmo que não concorde.
O tema dominante do parecer é a altura de Suzana. Ocupa cinco das oito páginas. Sua importância é uma das raras unanimidades técnicas do caso.
Se ela não tivesse a altura de 1,67 m descrita por Badan em 1996, a bala do suposto suicídio a teria atingido não na região mamária, mas no pescoço, na cabeça ou teria passado sobre o ombro.
Estando errada a altura, o resto das conclusões também estaria, escreveu Badan em 1997, num artigo na Folha. Antes, uma segunda equipe pericial estimara a altura em 1,57 m, projetando-a a partir de ossos das pernas (o cadáver estava em decomposição).
Em 1999, o Ministério Público de Alagoas iria arquivar o inquérito estadual sobre o caso por não saber quem tinha razão. Fotografias obtidas pela Folha mostraram que Suzana era menor que PC, que media 1,63 m ao morrer (dado comum a todos os laudos). Por causa das fotos, as investigações foram reabertas.Contradições
Nada do que se descobriu a partir daí contou para a Procuradoria, que levou em conta provas recolhidas em 1996 e 97. Ela aceita -e cita- os argumentos de Badan no artigo de 1997 no qual reafirmava a altura como 1,67 m.
Haroldo da Nóbrega diz concordar que Suzana era 4 cm maior do que PC. Não comenta as fotos -que o contradizem- dela com o namorado. Nem com a irmã, Ana Luiza, maior do que ela (1,63 m, em medição de 1999). As fotos foram analisadas pela Unicamp, que estimou a estatura de Suzana em 1,55 m a 1,57 m.
Está tudo nos autos.
O procurador aceita a versão de que Badan mediu Suzana na necropsia. Mas um vídeo gravado pela equipe do legista mostra o contrário -não há medição. O vídeo integra o inquérito.
Nóbrega apresenta o argumento de Badan, segundo o qual a altura de 1,57 m estipulada pela segunda equipe estaria errada porque as tabelas internacionais de projeção de altura a partir de ossos não servem para brasileiros. O legista, porém, usa tabelas semelhantes em seus trabalhos.
Embora registre a altura de 1,57 m como a definida pelo segundo grupo de peritos, o procurador cita que o dado informado foi 1,67 m. Trata-se, na verdade, de um erro de digitação nos autos, nos quais a informação repetida diversas vezes é 1,57 m.
Em 1999, o erro de digitação foi reconhecido por seus autores. O procurador citou o número errado, digitado uma única vez, e não o dado anunciado repetidamente e em torno do qual é desenvolvida a análise.Acareação
Em 2000, Brindeiro pediu que a Polícia Federal promovesse acareação entre Badan e o fotógrafo Donato Pasqual Júnior e a fotógrafa Noelandi Jimenez. Ambos, chefiados por Badan ao documentar a necropsia, disseram em 1999 que Suzana não foi medida. A PF cumpriu a missão. O procurador calou sobre o resultado.
Uma das maiores contradições é de Brindeiro, que em fevereiro de 2000 escreveu em parecer que “ficou cabalmente provado por meio de novas perícias -com o exame do corpo exumado e de fotografias da vítima- que Suzana (…) media no máximo 1,57 m, o que torna impossível a hipótese de suicídio”.
Brindeiro não explicou o que o fez mudar de idéia. O parecer deste mês desconhece as “novas perícias” e sustenta como fato o que antes era “impossível”.
O inquérito federal investigava a participação do deputado federal Augusto Farias (PPB) nos crimes. Irmão de PC, ele foi indiciado (citado como suspeito) pela polícia de Alagoas em 1999. Também apurava suposto crime de falsa perícia cometido por Badan.
Como o deputado não se reelegeu em outubro (perdeu o foro privilegiado do STF), sua situação -e a de Badan- seria analisada pelo Ministério Público de Alagoas, e não o Federal, a partir de janeiro. Com o arquivamento do inquérito federal, Augusto e Badan escaparam de eventual julgamento em Alagoas. Ambos negam ter cometido crime.
No Estado, a polícia e o Ministério Público consideraram ter havido duplo homicídio. Augusto Farias e oito ex-funcionários de PC foram indiciados. O Ministério Público denunciou (acusou formalmente) oito pessoas -o caso de Augusto foi para o STF. A Justiça de Alagoas decidiu levar quatro réus a julgamento.