Blog do Mario Magalhaes

Uma noite com Gilberto Gil

Mário Magalhães

Gilberto Gil, no bar da Casa do Saber, no Rio, antes da conversa de quinta-feira à noite

 

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É incrível que isso possa acontecer, mas foi calorosa a noite de ontem, a despeito do ar-condicionado polar da Casa do Saber carioca. O autor da façanha foi Gilberto Gil, em bate-papo com a jornalista Regina Zappa, no encontro “Um doce e bárbaro, sempre a mil”.

Ao contrário do que eu supus assim que me sentei numa poltrona do pequeno auditório, lotado com uma centena de pessoas que pagaram R$ 120 cada uma para assistir ao compositor, Gil não se agasalhou mais, nem protegeu a garganta, vestindo apenas uma camisa e uma jaqueta de tecidos leves. “Pra mim, tá bom”, respondeu, quando lhe indagaram sobre a temperatura.

Também não pareceu friorento nos pés: na noite de outono carioca, calçava um par de mocassins _sem meias, como recomenda a elegância, e Gilberto Passos Gil Moreira, 71 anos no mês que vem, é um homem de cabelos brancos muito elegante.

Durante duas horas e 17 minutos, o palestrante desfiou reminiscências e reflexões, das manifestações de racismo na infância aos mais ou menos “100 ácidos” consumidos no exílio londrino, da conversa com Lula para ser ministro da Cultura aos bastidores da composição de obras-primas, de histórias de Chico e Caetano a comoventes e bem-humoradas considerações sobre a velhice.

É curioso que seu típico manancial vocabular dos baianos ilustrados, que lhe rendeu gozação _e tributo_ de Chico Anysio em um personagem célebre, não o tinja de cores pernósticas, e sim, novamente, elegantes. Gil fala muito com as mãos, e nos momentos mais empolgados mexe vigorosamente as duas, como se regesse uma orquestra.

No segundo semestre, a Nova Fronteira publicará uma biografia do artista escrita por Regina Zappa. A seguir, compartilho um pouco do que ouvi ontem, do memorialista e pensador Gilberto Gil, e anotei em 29 páginas de minha caderneta.

Emotivo

Regina Zappa contou que Gil diz funcionar do pescoço para baixo. Ou seja, com emoção, e não com a cabeça. Em abril, ele assistiu a um casamento que se arrastou por duas horas e se emocionou: “Chorei o tempo todo”.

‘Musiqueiro e pai de menino’

Recém-nascido em Salvador, Gil mudou-se com a família para Ituaçu, “cidade de 800 habitantes”. Aos dois anos, o menino disse à mãe o que queria ser quando crescesse: “Musiqueiro e pai de menino”. Compôs mais de 500 músicas e procriou bastante. Ele nega a versão de que na infância tenha dito que queria ser presidente da República.

O primeiro instrumento

Por falta de curso ginasial em Ituaçu, por volta dos dez anos o menino Gil voltou para a capital baiana, onde estudaria no colégio dos irmãos maristas. A mãe perguntou se ele queria mesmo “ser musiqueiro”. Com a resposta positiva, pediu que o filho escolhesse um instrumento. Como era fã de Luiz Gonzaga, ele ganhou uma sanfona.

Racismo

No colégio dos maristas, “foi um pânico absoluto, o colégio era do tamanho da cidade [Ituaçu]”. No interior, seus pais, “se não rei e rainha, eram duques”, disse Gil, referindo-se ao status social de um médico e uma professora em uma pequena comunidade. “Lá, havia um ambiente de convívio compulsório entre raças.” Nos maristas, “aparece a questão de ser negro”. Um professor de matemática dava aula, e Gil, de 10, 11 anos, levantou o dedo e esboçou duas ou três palavras. O mestre reagiu: “Cale a boca, seu negro boçal!”. “Esses incidentes me deram consciência das diferenças raciais”.

A descoberta de João Gilberto

O primeiro grande encanto de Gil na música foi o pernambucano Luiz Gonzaga. Mais tarde veio o baiano Dorival Caymmi. O terceiro foi outro filho da Bahia, João Gilberto, no final da década de 1950. Gil voltara do colégio e almoçava ouvindo a Rádio Bahia, que tocava a recém-lançada “Chega de saudade”. Gil cantarola ao recordar: “Vai minha tristeza e diz a ela…”. Ao ouvir pela primeira vez a canção, assombrou-se: “Meu Deus do céu, o que é isso?”. Largou o prato e correu até o armazém vizinho, do galego Manolo, único imóvel com telefone nas redondezas. O galego encontrou o telefone da emissora, e o jovem Gil, 16 ou 17 anos, perguntou de quem era a voz que acabara de ouvir. “É João Gilberto, um cantor que apareceu agora. Novo, baiano.” Gil: “Naquele momento eu disse ‘bom, Gonzaga, Caymmi e agora tem esse rapaz também”. Logo pediu à mãe um violão.

‘Caetano, venha ver aquele neguinho’

Como relembrou Gil, o episódio integra o “anedotário” da música brasileira. Ele se apresentava no programa de TV do publicitário Jorge Santos. Na Bahia, “era uma espécie de Silvio Santos” antes de existir o programa de Silvio Santos no formato em que se consagraria. Um dia, em Santo Amaro, dona Canô chamou o filho Caetano Veloso: “Caetano, Caetano, venha ver aquele neguinho de que você gosta na televisão!”.

Faculdade e trabalho

O pai tentou seduzir Gil para a medicina, mas o filho fez vestibular para engenharia e levou bomba. Acabou tentando a recém-aberta faculdade de administração, na qual ingressou em 1960. “O vestibular era mais fácil, não tinha química, matemática, física. Pensei: ‘É pra aqui que eu vou’”.  Pela época, Gil foi aprovado em um concurso do Ministério da Fazenda e foi trabalhar na alfândega, como fiscal aduaneiro. Nos plantões noturnos, tocava violão e lia livros como “O Capital”, de Karl Marx.

Caetano

Na tradicional rua Chile, no centro de Salvador, o amigo comum Roberto Santana o apresentou a Caetano Veloso: “Vocês gostam muito de bossa nova, vocês vão se entender”. Sorrindo, como em quase toda a noite, Gil observou ontem: “E a gente se entende muito bem até hoje”.

Elis e Milton

O administrador de empresas Gil se casou com Belina em maio de 1965 e no mês seguinte se mudou para São Paulo, onde foi aprovado em um concurso nacional da Gessy Lever. “Eles queriam ter pela primeira vez um executivo negro no Brasil”, recordou. A música o tirou da empresa, privando-a do seu promissor executivo. Um dia Elis Regina lhe telefonou, e marcaram um encontro no apartamento dela, pertinho da praça da República. Ele mostrou algumas músicas, e “começou a amizade”. Mais tarde, Gil levou Milton Nascimento até lá. Pouco tempo atrás, o mineiro lembrou, segundo o baiano: “O Gil me fez cantar umas 30 músicas para a Elis”. “Mentiroso!”, gargalhou Gil. “Você ganhou ela de cara”. Elis gravou muitas criações dos dois.

Na madrugada, nasce ‘Domingo no Parque’

Gil mencionou diversas vezes e com muito carinho o nome de Chico Buarque. Ao evocar a criação de “Domingo no Parque”, para alguns a mais genial obra gilbertiana, o compositor comentou uma declaração de Chico no filme “Uma noite em 67”, explicando que “música de festival” tem que ter uma pegada diferente, com impacto especial. Já casado com a cantora Nana Caymmi, Gil havia ido jantar com ela na casa do pintor Clóvis Graciano. Ao retornarem para o hotel em São Paulo, ele foi preparar uma música para o Festival da TV Record de 1967. “Tinha que ter um truque qualquer, festival…”. Pensou em berimbau, capoeira, “coisa exótica”. Pegou o violão e o gravador. Pelas 7 da manhã, cutucou Nana e mostrou a música inteirinha. “Teve a ver com a ida à casa de Graciano, os quadros”. Rindo muito, referiu-se às características daquela música de festival, que acabou em segundo lugar, atrás de “Ponteio”: “Era tudo o que o Chico queria”.

Tropicalismo e o porre de Chico

Impressionados com tudo o que os Beatles significavam nos anos 1960, Caetano e Gil marcaram uma reunião para conversar sobre a estética do que depois seria conhecido como Tropicália. Muita gente encrencou com “elementos de música estrangeira”, guitarras, enumerando argumentos caretas em nome de um suposto nacionalismo. Gil e Caetano conversaram. Se os outros não queriam, “então nós fazemos”. Chico conta para Gil até hoje por que não foi à reunião: “Eu tava bêbado, tomei um porre naquela noite”, disse o amigo.

Ácidos em Londres

Depois de ficar preso do fim de 1968 até o Carnaval de 1969, Gil partiu para o exílio na Inglaterra, com Caetano e as respectivas mulheres. Foi uma época de novas experiências: “Cheguei a tomar mais ou menos 100 ácidos lisérgicos em Londres, num período de quase três anos”.

O encontro com Jimi Hendrix

Junto com os Beatles, o guitarrista Jimi Hendrix foi a maior influência estrangeira na música de Gil. Em agosto de 1970, Gil se apresentou no Festival da Ilha de Wight, no Reino Unido. Semanas antes de morrer, Hendrix, já um mito, esteve lá como grande astro. Antes de o músico norte-americano se apresentar, o percussionista brasileiro Airto Moreira apresentou-lhe Gil e Caetano: “Jimi, aqui dois meninos brasileiros, tão em Londres”. Cumprimentaram-se, e quando Hendrix se virou Caetano comentou: “Interessante ele, né? Parece um daqueles mulatos lá de Santo Amaro”.

O pedido de Lula

Quando Luiz Inácio Lula da Silva o chamou para a pasta da Cultura, Gil reagiu: “Presidente, quer mesmo que eu seja ministro? O que quer que eu faça?” Lula devolveu de bate-pronto: “Suba no seu palco. Vá lá e faça como você faz na música”. Gil disse ontem: “Fui escolha pessoal do Lula, contra o PT. Eu levei para lá [o Ministério] o máximo da minha integridade. O governo Lula queria criar admissibilidades para os setores esmagados, discriminados”. Foi o que o ex-ministro disse que buscou fazer na Cultura.

A idade e o ‘rei dos animais’

“Vou fazer 71 anos”, disse Gil. Ele lembrou um verso da canção “O homem velho”, de Caetano: “O homem velho é o rei dos animais”. E arrancou risadas: “Já me sinto um pouco o rei dos animais”. Diz que a idade proporciona “uma zona de conforto mais definitiva. Faz com que o futuro não esteja sujeito a expectativas predominantes. Não há muito o que ficar esperando da vida. Já tou mais quieto, já tou mais calmo”. Lembrou seu mais de meio milhar de composições e as músicas de autoria alheia que o acompanham: “Isso tudo me dá muita coisa”. Jovem, ele saía pela noite paulistana com Chico Buarque e no dia seguinte, num saudável clima de “competitividade” entre os amigos, um ligava para o outro para mostrar a nova canção recém-feita. “Não preciso mais de tanta volúpia. Gosto muito de uma expressão: a conformidade conforme a idade”. A única “dimensão” que permanece intocada na velhice, observou, é a espiritual. “Canô dizia: ‘Quem não morre envelhece’. É a única responsabilidade que vai restando a nós.”

Crise e ‘Palco’

Certa feita, depois de um ano intenso de trabalho, Gil entrou em crise. “Senti um fastio, não queria mais aquilo tudo. Era medo de que a música pudesse secar.” “Falou” para a música: “Parei com você, música”. “É o que você pensa”, soprou-lhe a música na conversa imaginária. “Se você parou comigo, faça uma música, me use para dizer isso”. Então Gil compôs “Palco”. “Acabou sendo o oposto de quem quer parar.” “Hoje em dia não tenho mais crises. Talvez seria bom que tivesse”, sorriu.

‘Tem que dormir’

Gil evocou versos de Chico: “Eu faço samba e amor até mais tarde/ E tenho muito sono de manhã”. Enfatizou, com mais um sorriso: “Não é mais assim! Há um mandato biológico. É outra história. Tem que dormir”.