Blog do Mario Magalhaes

Comparar Marta e Neymar faz bem às seleções
Comentários Comente

Mário Magalhães

Neymar e Marta: dois nomes para honrar a camisa – Foto reprodução

 

Para começo de conversa, nem Marta é melhor que Neymar, nem Neymar é melhor que Marta.

É opinião. Cada um com a sua.

Ambos jogam demais, são sublimes.

Marta, em suas circunstâncias, é maior do que Neymar nas dele.

Foi eleita cinco vezes a número um do planeta.

Neymar, pode apostar, alcançará tal título. Mas ainda não chegou lá.

Ele ganha muito mais do que ela porque o business do futebol masculino movimenta bilhões.

No feminino, os negócios, quando existem, são modestos.

Marta, balzaca, não conquistou competição relevante pela seleção. Por limitações da equipe, e não dela.

O jovem Neymar é um dos principais craques do mundo em momento de seleção 7 a 1. Sofre como Marta já sofreu.

Na Olimpíada, Marta vem se beneficiando de um time organizado, o Carrossel Tropical montado por Vadão.

Neymar, ao contrário, tem sido um dos onze componentes do caos que Rogério Micale por enquanto não logrou transformar em equipe.

Marta é capitã e de fato lidera.

Neymar é capitão que prevaricou.

Com a seleção que marcou três gols na China e cinco na Suécia, Marta é aguardada nos estádios que a ovacionam _o 0 a 0 de ontem com a África do Sul não conta, pois a maioria da seleção foi de reservas.

A paciência da torcida com Neymar diminuiu, após duas partidas sem o Brasil marcar.

A expectativa com os dois é imensa.

Marta vem correspondendo a ela.

Neymar, não.

Marta não é problema para a seleção de mulheres.

Neymar, como dito no blog há tempos, também não é problema. É solução e esperança de volta por cima.

A comparação entre Neymar e Marta é mais do que legítima.

É útil. Por mais que irrite um ou outro a depender da abordagem, serve como cobrança. Portanto, estímulo.

É desse estímulo que Neymar necessita.

Para brilhar hoje à noite contra a Dinamarca e conduzir a seleção à vitória que a levaria às quartas-de-final. E à possível arrancada para o ouro.

Soa estranho, mas o masculino talvez tenha mais chances de título do que o feminino.

Eles frustram, mas possuem qualidade técnica muito superior à dos adversários.

Elas encantam, porém devem ter pela frente o poderoso escrete dos Estados Unidos. Na sexta, no primeiro mata-mata, encaram as australianas.

A seleção masculina deveria se inspirar na eficiência e na arte da feminina.

Tomara que Neymar esteja mordido com as comparações com Marta.

E que jogue como ela tem jogado.

Futebol ele tem de sobra.

Marta também.

A comparação entre os craques incentiva as duas seleções.

O sonho de dois ouros no futebol permanece vivo.

(O blog está no Facebook e no Twitter )


Paradoxo olímpico: enquanto atleta queima caloria, torcedor engorda no sofá
Comentários Comente

Mário Magalhães

Cartoon Black and White Line Drawing of a Sports Fan Holding a Tv Remote

Imagem reprodução http://toonclips.com/

 

Quanto mais a pessoa gosta de esportes, maior a chance de, em vez de manter ou perder peso, engordar durante os Jogos.

Eis um paradoxo olímpico: os atletas competem, e os torcedores cultivam como nunca o sedentarismo.

Abandonam os exercícios habituais para ficar em frente à TV.

Comem, bebem e torcem.

Às vezes, mais bebem e comem do que torcem.

Na tela, assistem à queimação de calorias.

No sofá, acumulam-nas com prazer, nas modalidades de levantamento de copo e de controle remoto.

Não há por que sentir culpa.

Há muito ano pela frente para aproveitar a inspiração da Olimpíada e retomar a malhação.

Tim-tim.

(O blog está no Facebook e no Twitter )


Com horários esdrúxulos, COI imita Fifa no desprezo pela saúde dos atletas
Comentários Comente

Mário Magalhães

Jogo do Brasil contra a Argentina acabou na madrugada de hoje – Foto reprodução UOL

 

Pela meia-noite e pouco de hoje, Brasil e Argentina ainda se enfrentavam no vôlei feminino _ganharíamos por 3 a 0.

A natação acabou quase na virada do dia.

O horário de muitas competições nos Jogos do Rio subverte os hábitos dos atletas.

Agride seus corpos, acostumados a viver com outros relógios.

Não são meros ajustes, e sim aberrações, como iniciar as finais nas piscinas depois das dez da noite. E acabar com as eliminatórias matinais, transferindo-as para a tarde.

Tudo por exigência da NBC, emissora de TV que derramou uma dinheirama na compra dos direitos de transmissão e quer exibir o filé-mignon no horário nobre dos Estados Unidos.

A bicampeã olímpica Thaisa chiou: “É um horário ingrato com atleta. Agora, vai chegar a que horas? Jantar, tomar banho até poder relaxar, adrenalina baixar e dormir, vai ser lá para a madrugada. É complicado, horrível, para atleta é péssimo. As pessoas precisam pensar no lado do atleta, não só da mídia”.

O Comitê Olímpico Internacional privilegia o dinheiro à saúde dos atletas.

Como a Fifa, que na Copa dos EUA-1994 programou jogos ao meio-dia em pleno verão.

P.S.: o Mauricio Stycer informa que, se o horário da natação é obra da NBC, o do vôlei é exigência da TV Globo. O business impera, para lamento de tantos atletas.

(O blog está no Facebook e no Twitter )


106 anos após Revolta da Chibata, Marinha celebra a sargento negra Rafaela
Comentários Comente

Mário Magalhães

Rafaela Silva, a menina de ouro – Foto Danilo Verpa/NOPP

 

O épico existencial e esportivo de Rafaela Silva, medalha de ouro na Olimpíada do Rio, desmoraliza interpretações que negam a existência de racismo no Brasil.

Insultada por brasileiros com impropérios racistas, na época dos Jogos de Londres, Rafaela perseverou e chegou ao alto do pódio.

Há uma curiosidade histórica proporcionada por seu triunfo.

No programa de apoio a atletas, incorporando-os às Forças Armadas, Rafaela tornou-se terceiro-sargento da Marinha.

Sim, eu preferiria escrever sargenta, mas o padrão militar mantém o nome no masculino.

''Atleta da Marinha conquista medalha de ouro no judô'', apressou-se a divulgar a velha Armada. Fez muito bem. Rafaela orgulha o país.

Tempo, tempo, tempo…

Cento e seis anos atrás, em 1910, a Marinha reprimiu uma rebelião contra castigos físicos.

No cotidiano da Força, subalternos eram punidos com chibatadas, expediente saudosista do escravidão abolida 22 anos antes.

Boa parte dos subalternos era negra.

Os oficiais eram brancos.

O marinheiro negro João Cândido Felisberto comandou a revolta.

Agora, a Marinha celebra a sargento negra.

Tudo coisa de mais de um século atrás, sem cicatrizes?

Se o Brasil não fosse um dos últimos países do planeta a extinguir formalmente o trabalho escravo…

Em 2008, 98 anos depois da Revolta da Chibata, uma estátua de João Cândido foi inaugurada no Rio.

A Marinha não enviou representante ao ato.

E manteve a opinião do comecinho do século 20. Seu Centro de Comunicação emitiu então nota afirmando não reconhecer ''heroísmo nas ações daquele movimento [Revolta da Chibata]''.

A Revolta da Chibata foi um movimento heroico contra a tortura e os resquícios da escravidão. E em defesa da civilização.

João Cândido, o ''almirante negro'', é um herói brasileiro.

E Rafaela Silva, sargento negra, uma heroína em século e circunstâncias diferentes.

A história gosta mesmo de pregar peças.

(O blog está no Facebook e no Twitter )


Capitão Neymar, 24, expõe os companheiros mais jovens ao recusar entrevista
Comentários Comente

Mário Magalhães

Neymar, em imagem de anos atrás – AFP PHOTO/Will Oliver

 

Neymar partiu sem dar entrevista depois do fiasco da seleção olímpica, empate em zero com o Iraque.

Gabriel Jesus deu entrevista, na saída do vestiário.

Neymar é o capitão do time.

Gabriel Jesus, não.

Neymar é um dos melhores jogadores do mundo.

Ao contrário do talentoso Gabriel Jesus.

Neymar tem 24 anos.

Gabriel Jesus, 19.

Neymar é mais velho do que 15 dos 18 jogadores da equipe _a seleção é sub-23. É um dos três com idade livre.

Ao passar sem falar, transferiu a responsabilidade a garotos como Gabriel Jesus.

Pode-se concordar ou divergir do que o atacante do Palmeiras e do Manchester City disse. Mas é impossível negar sua dignidade e coragem ao não fugir da raia.

O capitão deve proteger seus companheiros.

Neymar abandonou-os num momento dramático.

Cracaço, ele não é o problema da seleção, mas a maior esperança da volta por cima que demora.

A braçadeira de capitão, contudo, deve ser entregue a quem assume o princípio do comandante de navio: ser o último a sair.

O jogador do Barcelona tem demonstrado imaturidade e nervosismo despropositados para quem tem a sua experiência já grande.

Largar os mais jovens à própria sorte é grave.

Sim, Neymar é humano.

E os garotos também são.

Às vezes, fora do campo, ocorre algo mais triste do que dentro dele.

(O blog está no Facebook e no Twitter )


Carrossel Tropical de Marta é sonho; seleção de Neymar, vexame e pesadelo
Comentários Comente

Mário Magalhães

Seleção perde chances, termina o primeiro tempo contra o Iraque sem gols e torcida vaia

Gabriel Jesus chuta, no jogo contra o Iraque – Foto Pedro Ladeira/Folhapress

 

Quem achou que o 7 a 1 da Alemanha era o fundo do poço enganou-se.

Empatar na Olimpíada em casa contra o Iraque foi um vexame histórico.

Passar duas partidas sem marcar contra os sul-africanos, que por meia hora tiveram um jogador a menos, e os iraquianos é desmoralizante.

Na estreia, a seleção masculina de futebol teve cabeça e membros, ou seja, defesa e ataque. Mas não corpo, o meio-campo.

Na noite deste domingo, não teve nada. Um fiasco.

O América-MG, lanterninha do Campeonato Brasileiro, faria melhor.

Também o Brasil de Pelotas, da segundona.

E o Fortaleza, da terceirona.

Enquanto o Carrossel Tropical de Marta e companhia encanta, Neymar e seus companheiros envergonham.

Incorporam cones, parados, previsíveis.

O Iraque montou um ferrolho? Sim, mas até acertou a trave brasileira.

E desde quase sempre a seleção enfrenta retrancas. Deveria estar acostumada.

O elenco treinado por Rogério Micale reúne medianos, bons, muito bons e ótimos jogadores.

Mas é cada um por si, e jogando mal. E nenhum por todos.

Na estreia, a seleção olímpica havia sido ruim, não horrível. Agora, foi horrorosa.

A paciência dos torcedores já esgotara com o time principal. Mas esse, de jovens, tem muito a ser cobrado.

Empatou com o Iraque em Brasília!

As vaias foram poucas.

A seleção brasileira virou chacota em todo o mundo. E dá-lhe meme!

É possível melhorar? É óbvio. Porque piorar…

E chegar ao ouro? Idem.

Mas o tempo está acabando.

O Carrossel Tropical é sonho.

O time masculino, pesadelo.

(O blog está no Facebook e no Twitter )


Com Marta fulgurante, nasce o Carrossel Tropical
Comentários Comente

Mário Magalhães

5 a 1: encanto e eficiência enfeitiçam o futebol – Foto reprodução ESPN

 

Em que posição joga Marta na seleção feminina?

Na meia-direita, como se viu no começo do chocolate de 5 a 1 sobre a Suécia.

Mas, no segundo gol, ela atacou pela esquerda e foi quase à linha de fundo, antes de passar para Cristiane marcar.

No terceiro, investiu pelo meio e tocou para Cristiane, que foi derrubada na área. Marta converteu o pênalti.

No quarto, Marta recebeu pelo centro, avançou pela esquerda e anotou.

Mas ela não joga pela direita do meio-campo?

Sim, mas depois que Cristiane saiu contundida Marta passou para o ataque. Além de se adiantar, ficou um pouco mais centralizada. Fez dobradinha com Beatriz, à sua esquerda.

Afinal, em que posição joga Marta?

A grande diferença em relação aos 3 a 0 na China foi que ela circulou muito mais à vontade.

Já na primeira etapa trocou de lugar com a meia-esquerda Andressa Alves.

Logo destrocaram. E trocaram de novo.

A combinação de eficiência e arte volta a enfeitiçar o futebol.

A última vez em que uma adolescente que adora futebol havia olhado para mim e dito ''O que é isso?'' havia sido no terceiro ou quarto gol da Alemanha em 2014.

Ontem à noite ela repetiu, agora fascinada: ''O que é isso?''

É o Carrossel Tropical.

Tem um milhão de diferenças com o Carrossel Holandês de 1974.

E com o Carrossel Caipira que Vadão, o técnico da seleção, criou no Mogi Mirim no começo da década de 1990, num time com o jovem Rivaldo.

Mas tem o DNA comum.

O do cultivo da posse de bola. O apreço pelo futebol bem jogado. A recusa a ficar parado como botão em mesa. A equipe roda, não fica no mesmo lugar.

Não faz muito tempo a seleção funcionava com uma jogadora de linha se aproximando da goleira para receber a bola. Ou a goleira dava um chutão. Agora, as zagueiras abrem nas laterais, as duas volantes ou meias se aproximam, e a bola sai de pé em pé. O padrão do Barcelona de Guardiola, herdeiro das lições de Cruijff.

A troca de bola rápida no ataque, com movimentação constante, embora menos intensa que a dos holandeses, confunde a marcação. A Suécia é um dos grandes no futebol feminino. Ficou zonza.

A seleção feminina consegue o que se sonha para os homens: misturar no mesmo time qualidade técnica, disciplina tática e inteligência de jogo.

Vai girando a bola, as jogadoras se desmarcam, e o futebol vive seu esplendor.

A seleção será campeã, superará as norte-americanas e outras adversárias?

A Holanda não foi em 74.

Nem o Mogi Mirim.

Mas aqueles foram times para a história. Da Laranja Mecânica nem se fala. E era um prazer assistir ao Carrossel Caipira em campo.

Não se poderá contar mais a história do futebol sem lembrar os 5 a 1 no estádio Nilton Santos. Sem celebrar Marta, Vadão, a seleção inteira, o Carrossel Tropical.

(O blog está no Facebook e no Twitter )


Candelária: da Chacina dos meninos ao menino com o fogo olímpico
Comentários Comente

Mário Magalhães

blog-candelária-1

Na Candelária, a cruz com o nome dos mortos em 1993

 

O fogo olímpico arde na Candelária. Acendeu-o Jorge Gomes, um garoto de 14 anos.

Vinte e três anos antes, meninos do Rio haviam sido mortos ali. Quando a chacina completou duas décadas, fui à Candelária e contei a barbárie.

Candelária: nossa emoção, nossa vergonha, nossa história.

Desgraçadamente, a matança de jovens permanece no Brasil, sobretudo de pobres e negros. E com a bênção da impunidade.

O blog republica abaixo a crônica contra o esquecimento, escrita em 2013.

*

Vinte anos nesta meia-noite (ou uma crônica contra o esquecimento)

Um sino da Candelária badala, mas não dobra por ninguém. O som anuncia a meia-noite de 22 de julho de 2013, ou zero hora do dia 23. Vinte anos atrás, diante das marquises de prédios ao redor da igreja, assassinos desceram de dois Chevettes e abriram fogo contra uns 70 sem-teto que tentavam descansar no inverno carioca. Mataram oito meninos de rua e mendigos. O mais velho tinha 19 anos. O mais novo, 11.

É meia-noite aqui na praça Pio X, e eu não vejo viva alma, nem flores, nem vela. Uma cruz de madeira que já perdeu lascas de tinta, monumento simples como eram aqueles mortos, testemunha a passagem do tempo. Nela estão inscritos os nomes dos desgraçados que ficaram para trás.

Ando um pouco e vislumbro três seres humanos que parecem dormir. Sob a marquise de um edifício, como os moleques no passado, uma mulher se cobre com um lençol estampado claro, que oferece a vantagem de contrastar com sacos pretos que os lixeiros carregarão. Ninguém a arremessará no caminhão por engano.

Na porta da extrema esquerda da fachada da igreja de estilo colonial e neoclássico, construída de 1775 a 1811, um homem deita coberto por papelão. Ao seu lado, abaixo de uma janela, outro miserável se agasalha com um cobertor cinza escuro.

Resisto à tentação cretina de despertá-los para conversar e parto em busca da memória. Uma placa para turistas divulga “fatos históricos” do templo portentoso: “Nas pinturas e fotografias do início do século [XX], destacou-se em relação às outras construções, pelo seu talento e estilo”.

Nada sobre o episódio eternizado como Chacina da Candelária. Nem a respeito da jornada de 1968 em que os cavalarianos, com talento repressor e estilo furioso, atacaram os cidadãos na saída da missa em homenagem a um estudante morto pela ditadura.

Dou a volta na igreja e no ponto de táxi próximo à avenida Rio Branco abordo um motorista com 18 anos de profissão. Para não inibi-lo, descarto perguntar por seu nome. Falo do massacre dos garotos, e ele de fato não se inibe.

“Garotos?”, ironiza.

“Sim, 11, 13 anos, eram garotos.”

“Sabe por que morreram?”, ele indaga, como quem cultiva um segredo.

“Não morreram, foram mortos”, corrijo. E o questiono sobre o motivo.

“Pesquisa”, tripudia o taxista.

Insisto, e ele especula:

“Derrubaram a mãe de alguém.”

“Justifica?”, retruco.

“A toda ação corresponde uma reação”, ele pontifica.

Nunca se soube ao certo o que despertou a ira da turma de matadores vinculada à Polícia Militar. Falaram que os pivetes teriam roubado e agredido a mãe ou mulher de um PM. E apedrejado um carro da corporação, bronqueados com a detenção de um amigo que cheirava cola.

O certo é que sobreveio a vingança, da qual o Brasil tomou conhecimento no amanhecer de 23 de julho de 1993. “Estou horrorizado”, declarou o presidente Itamar Franco. “É uma provocação sem precedentes à sociedade”, interpretou o sociólogo Betinho. O governador Leonel de Moura Brizola não afinou: investigar a PM “é o ponto de partida”.

De regresso à praça Pio X, lembro-me da visita do papa João Paulo II ao Rio em outubro de 1997, quando um ato público rememorou a chacina. A professora Sandra Cavalcanti, então secretária municipal, opôs-se. Alegou que não queria chamuscar a efusiva recepção ao pontífice com a evocação de uma tragédia.

Nesta meia-noite, o papa Francisco descansa em “terra carioca”, expressão que ele empregou no Twitter. E aqui, na praça com o nome de outro papa, eu avisto um garoto negro baixo e forte carregando três enormes sacos abarrotados de garrafas plásticas. Ele vem da rua Primeiro de Março e caminha rumo a um ferro velho nas cercanias da Central do Brasil. Receberá 50 centavos por quilo. Estima ter recolhido de 20 a 30 quilos. Batizado com nome de poeta, Vinicius tem 13 anos. Diz que ouviu “muita coisa” acerca do que ocorreu ali quando ele nem nascera.

“Você não tem medo de andar a essa hora por aqui?”, pergunto.

“Medo eu tenho, mas tenho que trabalhar.”

Morador de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, Vinicius não estuda. Largou a escola na quinta série. O que é um obstáculo para alcançar o sonho que exige, ele esclarece, ensino médio:

“Eu queria mesmo era ser bombeiro”, conta, escancarando o sorriso.

Não demora e outro jovem negro passa com um saco quase vazio. Ele tenta recolher algum resto na lixeira defronte à igreja, mas sai de mãos vazias. Perto dos três degraus à beira da porta principal, que está fechada, o cheiro de urina se intromete pelas narinas. A alguns passos, a tinta vermelha-cor-de-sangue com o contorno de oito corpos, desenhados há anos em um protesto, ainda tinge a calçada de pedras portuguesas.

Como Vinicius e o catador de lixo, os mortos da Candelária eram pobres, negros e mestiços. Dos 70, 44 viriam a ser mortos de forma violenta, incluindo os oito da madrugada inominável. Embora acusados tenham sido condenados a séculos de reclusão, ninguém mais está preso. Como recordou o amigo Sergio Torres, um coitado pegou cana de três anos por coautoria da matança. Foi engano, ele era inocente.

Outras carnificinas trouxeram mais cadáveres, como a de Vigário Geral e a de Eldorado do Carajás. Com elas, as imagens da Chacina da Candelária foram se desbotando a cada inverno. Na semana passada, celebrou-se missa e promoveu-se manifestação aqui na cidade. Há promessa de outro ato para hoje. Avisaram que em Fortaleza também. Que assim seja, lembremos para não esquecer. Nós nos debruçamos sobre o passado para decidir o futuro. Se a impunidade e a injustiça prevalecem atrás, persistirão à frente.

O tempo e o esquecimento embaralham a memória. Dois dos maiores jornais brasileiros informam que os garotos foram fuzilados no fim da noite de 23 de julho de 1993, mas o terror principiou na virada de uma quinta-feira, 22 de julho, para a sexta, 23. Deflagrado por volta da zero hora, continuou, porque algumas vítimas foram sequestradas e executadas em seguida.

Faz umas duas horas que estiou aqui na Candelária, mas a água da chuva ainda molha as ruas e o gramado da praça. A temperatura cai com a noite, confirmando a previsão dos meteorologistas. Daqui a pouco, haverá 20 anos da tarde em que a mãe de Paulo Roberto Oliveira, uma criança de 11 anos, reconheceu o corpo do filho no Instituto Médico Legal.

Badala o sino, e para mim ele dobra pelos nomes que eu leio na cruz. Um tinha o nome de Cristo, de outro só sobreviveu o apelido. Pretos, pobres, cheiradores de cola, pequenos delinquentes. Eram meninos do Brasil:

Paulo R. Oliveira

Anderson O. Pereira

Paulo J. Silva

Marcos A. Alves Silva

Leandro S. Conceição

Valdevino M. de Almeida

Gambazinho

Marcelo C. Jesus

(O blog está no Facebook e no Twitter )


Na noite do Maracanã, complexo de vira-lata sofre derrota histórica
Comentários Comente

Mário Magalhães

Vanderlei Cordeiro de Lima fez de novo história – Reprodução UOL

 

A noite comovente do Maracanã, na abertura da 31ª Olimpíada, consagrou o talento brasileiro e provocou revés histórico para uma das mais arraigadas enfermidades nacionais: o complexo de vira-lata diagnosticado há mais de meio século por Nelson Rodrigues.

A cerimônia foi bolada e conduzida por artistas brilhantes, do cinema à música, da cenografia às criações do Carnaval, da iluminação à coreografia. Seu maior mérito foi mostrar o Brasil como ele é ou poderia ser. Vimos a nossa cara ou muito dela. Não temos a disciplina oriental que os chineses expuseram em Pequim, mas contamos com criatividade de sobra.

A abertura não foi necessariamente a melhor. Foi diferente. E linda.

A festa espetacular não elimina nossas mazelas atávicas e recentes. Nem mitiga a vasta hipocrisia que vimos sentada nas tribunas de honra no estádio cuja reconstrução foi marcada por propina.

Mas afirma que a incapacidade brasileira para vencer, no sentido mais amplo da palavra, é vontade e não realidade. Vontade de quem padece da renitente patologia do complexo de vira-lata.

Que a noite do 5 de agosto de 2016 inspire o Brasil, sobretudo fora dos estádios.

Com a grandeza, a elegância e a generosidade de um Paulinho da Viola cantando o hino.

Bravo, Rio!

(O blog está no Facebook e no Twitter )