Sabáticas: Memórias de um glutão
Mário Magalhães
Uma badalada churrascaria do Rio ousou cobrar em dobro de um solitário comensal que chegou às duas da tarde e partiu às cinco. Como ele atravessou os alegados horários do almoço e do jantar, a conta somou dois rodízios, desaforo que o freguês se negou a pagar.
Ao ler a notícia, lembrei-me de outra casa de carnes carioca que, como a da garfada inusitada, também já ostentou mais saúde e sabores. Foi lá que eu devorei a mais pantagruélica refeição da minha vida de glutão.
Mais ou menos da uma às cinco da tarde de um sábado, um amigo e eu percorremos vorazmente o roteiro completo do que os gaúchos denominam espeto corrido, com acréscimos peculiares como, na largada do banquete, crustáceos grelhados. Depois de nos lambuzarmos com as sobremesas, perguntaram se, enfim, queríamos café. Espantados, ouviram que iríamos recomeçar.
Dito e feito: serviram novamente linguiças, picanha, costela e tudo mais, e põe mais nisso. Ninguém teve de pagar dobrado.
Como telefone celular só existia em filme futurista, quase perdi a namorada aflita, a quem esqueci de avisar sobre a comilança noite adentro. Por sorte, ela perdoou meu incurável pecado da gula e dali a um tempo vivemos experiência semelhante em Nova York.
Num restaurante do West Village, dois jovens japoneses seduziam olhos e estômagos esgrimindo suas facas e honrando o balcão como ateliê culinário. Nem nas viagens ao Japão eu me encantara com sushis e sashimis tão bonitos.
O talento dos garotos como mestres-cucas estava à altura dos seus dotes de artesãos. As pequenas obras de arte esculpidas com peixe cru e bolinhos de arroz eram deliciosas. O jantar não tinha fim.
“The check, sir?”, indagava o garçom, admirado com o desvario do casal fominha. Mais de dez vezes recusei a conta: “The menu, please”. A cada nova dupla de sushis pedida, os sushimen sorriam triunfantes.
A vocação para comilão vem de longe. A memória da família guarda um apelido de infância, Mestre Empadinhas, derivado da minha veneração pelas ditas cujas. Contam que mastiguei com sofreguidão um cacho inteiro de bananas. Noutra feita, acabei no hospital, ao enfiar no ouvido um grão cru de feijão. Dizem que germinou, mas eu tenho cá minhas dúvidas.
(Publicado originalmente na revista Azul Magazine, agosto de 2014)