Blog do Mario Magalhaes

De Lacerda a Marighella, histórias de Fidel Castro que passam pelo Brasil

Mário Magalhães

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O cubano Fidel Castro (1926-2016), nos velhos tempos – Foto Acervo Folha

 

Morto na sexta-feira aos 90 anos, o cubano Fidel Castro viveu histórias e historietas com o Brasil e brasileiros.

Onze delas:

1) em maio de 1959, com menos de seis meses no poder, Fidel veio ao Brasil. Embora tivesse lutado na Sierra Maestra ao lado de militantes comunistas como seu irmão Raúl Castro e o argentino Ernesto Guevara, o Che, o caráter político do principal líder da Revolução Cubana ainda era nebuloso. Aqui, poucos se entusiasmaram tanto com ele como o deputado federal Carlos Lacerda (1914-1977). Mais popular prócer da União Democrática Nacional, partido de direita, Lacerda conheceu o visitante num jantar no bairro carioca do Humaitá. No seu jornal, ''Tribuna da Imprensa'', estampou na primeira página uma fotografia sua, sorriso rasgado, com Fidel. Estavam na casa da família Nabuco. Comeram galinha, e Fidel aceitou uma taça de champanha. Lacerda assinalou suas impressões: ''Nunca vi alguém falando tanto sem ser nada prolixo''; Fidel tem ''imenso desejo de realizar uma grande obra'', pertence à espécie dos ''libertadores idealistas''; em tom elogioso, interpretou o barbudo como um ''Bolívar do nosso tempo'', ''um desses temperamentos bolivarianos para os quais a ambição do poder é pequena porque eles aspiram a muito mais _porque aspiram à glória''. Lacerda endossou o que denominou  ''justiçamentos'' de alegados criminosos vinculados ao regime decaído de Fulgencio Batista. As execuções seriam celebrizadas como ''paredão''. Lacerda: ''Não se trata de uma vingança, mas de uma reparação que, na ordem moral, está justificada''. À medida que o governo cubano caminhou para a esquerda, até se reivindicar comunista, o anticomunista Lacerda passou a atacar com virulência os revolucionários caribenhos;

2) em abril de 1959, oito representantes do novo governo cubano haviam visitado o Rio. O sindicato dos barbeiros traquinou e ofereceu cortes gratuitos para as barbas hirsutas dos antigos guerrilheiros. Os enviados de Fidel recusaram o presente;

3) durante o governo Jânio Quadros (1961), Fidel Castro permitiu que brasileiros das Ligas Camponesas treinassem guerrilha em Cuba. A preparação militar de 13 militantes de fato ocorreu;

4) quando o presidente Jânio Quadros renunciou, em agosto de 1961, Fidel conclamou os brasileiros a subirem as montanhas para resistir a golpistas. Imaginava um país com serras semelhantes às da ilha do Caribe;

5) principal dirigente do PCB, Luiz Carlos Prestes disse em entrevista pouco depois do triunfo dos guerrilheiros cubanos, em janeiro de 1959: ''Fidel Castro é um aventureiro pequeno-burguês''. Antes, em conversa partidária, o mais importante líder comunista da história do Brasil se referira a Fidel como ''agente da CIA''. Mais tarde, com a aproximação entre Cuba e União Soviética, apesar das relações ciclotímicas entre os dois governos, Prestes e Fidel se acercariam;

6) o Partido Comunista Brasileiro empenhou-se em campanhas de solidariedade a Cuba, alvo de incursões armadas patrocinadas pelos Estados Unidos. O dirigente que coordenava a atuação nessa frente era o ex-deputado Carlos Marighella (1911-1969). Em março de 1963, aconteceria no Rio uma conferência internacional de solidariedade aos cubanos. O governador da Guanabara (equivalente na época ao atual município do Rio de Janeiro) proibiu o evento. O governador se chamava Carlos Lacerda. A conferência foi transferida para Niterói. Entre os signatários da sua convocação havia correligionários de Lacerda na UDN, mas da ala Bossa Nova, moderada, de centro. Um deles era José Sarney, jovem deputado do Maranhão;

7) em 19 de abril de 1964, Fidel Castro discursou sobre o golpe de Estado vitorioso no Brasil no princípio do mês. Retribuiu os ataques que recebia de Carlos Lacerda: “O presidente [João] Goulart foi deposto por um golpe […] no qual um dos principais cérebros foi o mais reacionário homem deste continente. Um homem que, como solução para o problema da pobreza no Estado do Rio de Janeiro [na verdade, Estado da Guanabara], onde ele é governador, propôs a eliminação física de mendigos [a acusação não tinha lastro nos fatos]. É claro que há muitos deles lá, como em qualquer nação subdesenvolvida e explorada. Um homem com uma mente fascista _o governador do Estado da Guanabara, Lacerda, ou o porco, você pode chamá-lo do que quiser”;

8) em 1966, Lacerda já rompera com a ditadura. No comecinho de fevereiro, um diplomata norte-americano almoçou no restaurante da Maison de France, no Rio, com o publisher do ''Jornal do Brasil''. Incomodado pela militância oposicionista do ex-governador, Manuel Francisco do Nascimento Brito falou à mesa: ''Lacerda é diabólico e maquiavélico, provavelmente um dos homens mais inteligentes e amorais hoje no cenário brasileiro. Ele [Nascimento Brito] o vê empregando os métodos de Fidel Castro para alcançar o poder''. Essas palavras constam de relatório classificado como ''confidencial'', despachado pelo diplomata para o Departamento de Estado, em Washington;

9) depois do golpe de 1964, Fidel firmou um acordo secreto com o deputado cassado Leonel Brizola, exilado no Uruguai. O gaúcho de Carazinho mandou militantes para Cuba, onde os adestraram em guerrilha rural. Em 1967, o pacto com Brizola foi trocado pela aliança com Carlos Marighella, então na clandestinidade. Em julho, Marighella viajou para Havana, onde participou da conferência da Organização Latino-Americana de Solidariedade. Em maio de 1969, o Serviço Nacional de Informações brasileiro elaborou um relatório com base em delação de um desertor da inteligência cubana. Trecho: ''Marighella é atualmente o único líder revolucionário brasileiro recebendo reconhecimento e apoio de Cuba, tendo Fidel Castro dito que 'põe toda sua esperança em Marighella'''. Para Alexina Crespo, ex-mulher do advogado Francisco Julião, das Ligas Camponesas, Fidel disse que Marighella era um ''revolucionário engajado, de caráter''. De acordo com a jornalista Claudia Furiati, biógrafa de Fidel, seu biografado afirmou, sobre o guerrilheiro baiano: É ''um revolucionário de muita lucidez''. Marighella e Fidel se encontraram em Havana. Ao todo, uns 250 brasileiros frequentaram cursos de guerrilha em Cuba, a maioria relativa integrante da ALN (Ação Libertadora Nacional), organização armada fundada por Marighella e o jornalista Joaquim Câmara Ferreira;

10)  Marighella foi assassinado por policiais da ditadura em 4 de novembro de 1969. Nos meses que antecederam sua morte, ele estava contrariado com o que considerava intromissão de agentes cubanos em discussões e decisões de militantes da ALN que estavam na ilha. Marighella enviou uma militante de confiança para cuidar do assunto. Ela foi recebida por Fidel Castro, a quem se queixou;

11) a CIA, que tentou várias vezes matar Fidel, recrutou uma Castro como colaboradora: Juanita, irmã do governante, adotou na agência o codinome ''Donna''. Em suas memórias, Juanita Castro revelou que quem a encaminhara para a agência dos EUA havia sido a brasileira Virgínia Leitão da Cunha, mulher de Vasco Leitão da Cunha, embaixador do Brasil em Havana no alvorecer da Revolução Cubana. Ele foi o primeiro ministro das Relações Exteriores da ditadura parida em 1964.

P.S.: as informações acima constam de uma biografia que escrevi e de outra que estou escrevendo. O livro ''Marighella: O guerrilheiro que incendiou o mundo'' foi publicado pela Companhia das Letras, mesma editora do livro, previsto para 2017, que contará a vida de Carlos Lacerda.

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