23 anos hoje: A noite em que Maradona salvou a Argentina na repescagem
Mário Magalhães
No centro de Buenos Aires, na véspera da partida, um homem se ajoelhou diante do australiano Robbie Slater e lhe suplicou em castelhano: “Por favor, tenha piedade de nós na decisão”.
Protagonista da seleção mais bem-sucedida da Oceania, o meia com sobrenome de surfista jogava no clube francês Lens. Não passava de um joão-ninguém, comparado aos antagonistas do dia seguinte. Boleiros renomados como o goleiro Goycoechea, o zagueiro Ruggeri, os volantes Redondo e Simeone, o atacante Batistuta. E um amálgama de gente e Deus batizado Diego Armando Maradona.
Na hierarquia do futebol, a Austrália era ainda mais subalterna no entardecer do século XX do que viria a ser nos tempos vindouros. Em contraste, a Argentina conquistara a penúltima Copa do Mundo e alcançara a final da mais recente. Consagrara-se como um timaço. Sua fortuna, contudo, ia se transformando em desgraça: sua sorte dependia do outrora Pibe de Oro. Enquanto Maradona permaneceu no auge, triunfaram; quando o gênio se desnorteou, afundou a equipe como uma âncora excessivamente pesada.
Os destinos de australianos e argentinos se cruzaram porque os sul-americanos, se não chegaram a naufragar, colecionaram malogros nas Eliminatórias do Mundial que os Estados Unidos hospedariam em 1994. Nenhum iceberg lhes provocara tantos estragos como a Colômbia. No Monumental de Núñez, o escrete onírico de Valderrama, Rincón e Asprilla desmoralizara os anfitriões com antológicos 5 a 0.
Na mesma cancha, Argentina e Austrália travariam o segundo e derradeiro confronto da repescagem para a Copa. Em Sydney, haviam empatado em 1 a 1. Vitória ou igualdade sem gols valeria à albiceleste o visto norte-americano. Na noite de 17 de novembro de 1993, uma quarta-feira, o 24º e último participante do Mundial seria conhecido. Traumatizado com a goleada colombiana, o homem aterrorizou-se com nova assombração e implorou: “Por favor, tenha piedade de nós na decisão”.
O desfecho do drama dependeria menos da misericórdia de Slater e mais da impiedade de Maradona. Este já pronunciara na segunda-feira a resposta que acabou com a dúvida que atemorizava a nação: “Sim, eu jogo”. Dores no nervo ciático o atormentavam, perturbando os movimentos da perna direita do campeão canhoto. Sua escalação não assegurava a vaga. Mas sem ele, com ou sem outras manos de Dios, muitos a considerariam um milagre, tamanha a desesperança.
Aos 33 anos, o camisa 10 derretera 12 quilos em 45 dias para recomeçar na seleção para a qual nem fora convocado nas Eliminatórias. Sua decadência esportiva se anunciara em 1991 com a suspensão por 15 meses, devido ao doping com cocaína, e a prisão em Buenos Aires por posse de drogas ilícitas. Trocara o Napoli pelo Sevilha. Mais tarde regressou ao seu país, contratado pelo Newell’s Old Boys.
Em junho, estranhara-se com Ruggeri ao trombetear que o velho companheiro tinha o apelido Cabeção porque “seu cérebro é cheio de bosta”. Antes do jogo de ida da repescagem, firmou a paz com o beque com pinta de roqueiro progressivo da década de 1970. Os australianos prometiam marcação tripla sobre Maradona, com um defensor em seu cangote e dois na cobertura. Não blefavam. Ele conferia nota seis à sua condição física e técnica. Atiçava a massa: “Com o apoio da torcida, posso chegar a oito e meio”.
Para regozijo dos cambistas, não faltavam devotos de Maradona dispostos a lotar o Monumental. Eu mal desembarcara no aeroporto de Ezeiza, e espertalhões já me ofereciam, por obscenos 90 dólares, ingressos populares comprados por 10. Com D10S confirmado, os temores se transferiram para o Olimpo que o aguardava, o gramado maltratado por concertos de Madonna e Michael Jackson. E para a possível presença de Carlos Menem, o presidente maldito como pé-frio.
A jornada principiou promissora, com a informação de que o governante ainda sem fama de gatuno assistiria ao mata-mata pela TV. Torcedores pipoqueavam nas arquibancadas, estimulando a curiosidade sobre cálculo estrutural na construção dos estádios locais. Eu sabia de uma mudança tática, pois estivera na concentração no dia em que Maradona descartara o forfait e proclamara: “É o jogo da minha vida”. Escrevi assim, na Folha de S. Paulo: “O técnico Alfio Basile será mais ofensivo. Tirou o volante Redondo da função quase exclusiva de marcar e o colocou na meia esquerda, para armar”.
Dito e feito. Aos 15 minutos do segundo tempo, o galã Fernando Redondo arrancou pela esquerda da meiuca carregando a bola, que terminou com Gabriel Batistuta na extrema direita, pertinho da linha de fundo. O cabeludo tentou cruzar, a pelota resvalou no seu marcador, encobriu o goleiro, e a explosão catártica sacudiu a casa do River Plate.
Maradona não marcou, mas poucas vezes ouviu uma ovação tão sonora e consagradora, com o cântico “Olê, olê, olê, olê, Diego, Diego!” O voto reverente da multidão se cumpriria para sempre: “Cada dia te quero mais!” Baleado na perna direita, ele se movimentou bem menos que nos bons tempos, embora magro. O Clarín anotou: o craque maior só errou dois passes e foi desarmado apenas uma vez.
Eu nunca tinha visto e nunca mais veria um jogador paradão jogar tanto quanto Maradona naquela noite estrelada. Às vezes ele parava na ponta direita e lá se fincava, feito um ilhéu, esperando a pelota para passá-la. Um quase Saci eleito o melhor em campo. Quando o juiz apitou, sacramentando o 1 a 0, Maradona abriu os braços e deu um soco no ar. Comovido, abraçou Ruggeri. A camisa de mangas compridas e listras azuis e brancas verticais estava imunda, testemunho de perseverança e luta.
Nos arredores do estádio e mais adiante, o pau comeu, com saques e quebra-quebras. Os detidos somaram ao menos 200 e os feridos, 36. Entre os alvos dos ataques identificaram caixa eletrônico, loja de roupas e livraria. Em Buenos Aires, terra letrada, há ladrões que roubam livros.
Dali a muitos anos Maradona daria a entender que o café tomado pelo time antes da partida estava turbinado com estimulante proibido _não houve antidoping. Na Copa de 94, ele voltaria a ser flagrado, seria punido e reencontraria seus demônios.
Em 17 de novembro de 1993, o menino canhoto Lionel Andrés Messi Cuccittini tinha seis anos. Vivia em Rosario, onde em 1995 passaria a treinar no Newell’s Old Boys do crepúsculo de Maradona. Em 2016, a Argentina amarga a zona de repescagem nas Eliminatórias. Mesmo se só tiver um pé, Messi levará sua seleção à Rússia.