Inquérito do caso Amarildo expõe barbárie policial; impunidade ameaça
Mário Magalhães
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A coragem que tempera o inquérito do caso Amarildo é inversamente proporcional ao destaque diminuto que as conclusões policiais receberam nos meios de comunicação: parece que se trata apenas de mais uma peça produzida pela Polícia Civil do Rio de Janeiro.
O relatório encaminhado ontem ao Ministério Público Estadual é corajoso e histórico: indicia dez policiais militares pelos crimes de tortura, assassinato e ocultação de cadáver de Amarildo de Souza (leia aqui a reportagem de Giuliander Carpes). O pedreiro desapareceu depois de ser levado por PMs à sede da Unidade de Polícia Pacificadora da Rocinha. Era noite de 14 de julho de 2013, e o trabalhador nunca mais foi visto.
O indiciamento formaliza a condição dos cidadãos como suspeitos. É atribuição constitucional da Polícia Civil. Cabe ao Ministério Público acusar (ou “denunciar”) e à Justiça julgar. Entre os dez indiciados, perfila o major Edson Santos, comandante da UPP da Rocinha quando Amarildo sumiu. Oficial do Bope, a tropa de elite, ele foi afastado da favela, substituído pela major Pricilla Azevedo.
Prenhe de relatos de tortura e abusos de policiais militares, o inquérito é um roteiro da pior tradição das forças de segurança públicas: a ação à margem da lei, sempre contra os mais pobres. Ainda que os indiciados não sejam culpados pela morte de Amarildo _cabe à Justiça decidir_, os depoimentos sobre a violência cometida reiteradamente por agentes do Estado constitui um inventário de barbárie. Vinte e cinco anos depois da Constituição que redemocratizou o país, essa covardia envergonha o Brasil.
A investigação é corajosa porque, na maior favela do Rio, esquadrinha de modo crítico o que deveria ser uma iniciativa exemplar do modelo das UPPs. É evidente que as bandalheiras dos policiais da unidade da Rocinha não espelham o conjunto do programa, mas está claro que ele não equivale ao parque de diversões alardeado pela incansável e caríssima propaganda oficial. A UPP não pacificou a vida de Amarildo: roubou-a, conforme o inquérito.
Mais coragem ainda o delegado Rivaldo Barbosa demonstrou ao, indiretamente, constranger um colega de Polícia Civil. Titular da Divisão de Homicídios, Barbosa conduziu a apuração, iniciada escrupulosamente pelo colega Orlando Zaccone, na 15ª DP. Em meio à busca pelo desaparecido, um terceiro delegado vinculou Amarildo ao tráfico de drogas. Se verdadeira, a informação vitaminaria a hipótese de traficantes terem executado o pedreiro. Barbosa descobriu que os assassinos são mesmo bandidos, mas de farda.
O indiciamento atinge os policiais que levaram Amarildo para a UPP, os que lá estavam e Edson Santos. O major afirmou que viu o pedreiro deixando a unidade, versão que não encontrou respaldo nem em um dos vira-latas que varam pela Rocinha.
Sim, sobra ainda para a cultura do Bope. Torturar alguém com saco plástico na cabeça não é invenção do cinema, mas cultura de “tropa de elite” fielmente retratada nas telas.
Quem é que vai pagar por isso?
No dia 2 de agosto, este blog publicou o post “Em qualquer cenário, Estado tem responsabilidade pelo desaparecimento de Amarildo” (aqui).
Previa a elucidação do crime: “Não será surpresa para este blog se a investigação em curso esclarecer o episódio. Ao contrário do que ocorreu com a chacina no complexo da Maré, em junho, quando a classe média carioca e o jornalismo pouca pelota deram à barbárie, não há como lançar a pecha de delinquente contra o pedreiro, que a comunidade identifica como trabalhador honesto (e mesmo contra bandido a legislação não admite pena de morte). A zona sul cobra Sérgio Cabral. Apelando para o sofrimento dos seus filhos pequenos, o governador implora pelo fim dos protestos diante de seu apartamento. No morro e no asfalto, os manifestantes respondem dizendo que ninguém tem sofrido mais do que os seis filhos do Amarildo. Politicamente, é de interesse de Cabral chegar aos culpados”.
Se foi a “polícia do Cabral” quem matou Amarildo _de acordo com o inquérito_, foi ela também que averiguou honestamente o desaparecimento. O secretário de Segurança, José Mariano Beltrame, prometeu alcançar os culpados, e ele pensa que isso ocorreu, tamanhos os indícios.
Resta saber que tipo de atitude o governo estadual tomará em relação aos indiciados. Eles não foram julgados, mas são suspeitos. Edson Santos seguirá atuando no Bope?
Mais: é obrigação encontrar os restos mortais de Amarildo para lhe proporcionar um enterro digno, como quer a família.
A bola passa para o Ministério Público, que acompanhou o inquérito. Tudo indica que acusará os PMs pelos crimes tipificados pela Polícia Civil.
Aí se chegará à Justiça. No país da impunidade, o desafio é punir os assassinos do pedreiro Amarildo, deixando o recado: impunidade nunca mais!