Laerte: a polícia escolhe seus alvos
Mário Magalhães
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Manifestação anti-Temer no domingo em São Paulo – Foto Júnior Lago/UOL
Livre pensar é só pensar, como dizia o Millôr Fernandes: a cobertura jornalística dos atos públicos de ontem contra Michel Temer teria sido mais ampla se os manifestantes tivessem ido às ruas reivindicar a cassação do direito de Dilma Rousseff exercer função pública? Haveria mais flashes durante a programação televisiva? E cobertura on line mais intensa? Nos dias anteriores seria mais difundida a informação de que haveria protestos? A truculência desproporcional e despropositada da Polícia Militar de São Paulo seria tratada com menos condescendência, ou mesmo criticada como tentativa de sufocar a expressão democrática de ideias? Será que a PM agiria assim em marcha anti-Dilma? São perguntas.
Um fato: ao se referir aos manifestantes como pró-Dilma certo jornalismo comete erro factual e engano histórico. Porque a multidão é anti-Temer, o que não quer dizer necessariamente pró-Dilma. Entre os anti-Temer há os que votaram na presidente deposta, apoiam-na e simpatizam com ela. E tem quem não votou nem votaria em Dilma, nem aprovou sua administração. O ''fora, Temer'' é denominador comum.
Nas jornadas contra o impeachment, antes do patíbulo no Senado, o que unia os participantes era a rejeição à derrubada da presidente constitucional, e não o aplauso ao governo. Mesmo assim o mais comum, sobretudo na televisão, era a referência a ''manifestantes pró-Dilma''. Errado, é evidente.
As marchas ''fora, Dilma'', contudo, nunca foram tratadas como ''pró-Temer''. Correto, pois entre os que se batiam pela queda de Dilma havia quem não fosse a favor de Temer.
Muita gente, tanto nas antigas mobilizações ''fora, Dilma'' e ''não ao impeachment'', como agora nas ''fora, Temer'', defende eleições imediatas para a Presidência.
O jornalismo desinforma ao tratar os atos ''fora, Temer'' + ''diretas já'' como ''pró-Dilma''.
Alguém que não quer a volta de Dilma, mas deseja se livrar já de Temer e votar logo para o Planalto poderia se sentir estimulado a comparecer a protestos como o do domingo. Se acreditar que eles são ''pró-Dilma'', deixará de ir.
Isso tudo não significa que muitos entre os manifestantes contra Temer não sejam partidários de Dilma. São. Mas exigir respeito ao voto popular de 2014 ou diretas já não exige endosso às ações do governo golpeado.
Mário Magalhães
Os Três Patetas (mas éramos dois) – Reprodução internet
Se fosse para contar numa comédia, nossa chegada ao hotel talvez se prestasse a uma sequência escatológica de filme do Monty Python. Assim que eu e o meu filho caçula fizemos o check-in, meu irmão pançudo, que nos dera carona de mais de 250 quilômetros pelos caminhos dos pampas, perguntou ao recepcionista pelo banheiro.
O moleque e eu aguardamos o tio dele para a despedida, mas o vivente não voltava. Pelo visto, as linguiças e carnes da estrada não haviam lhe caído bem. O pessoal da recepção galhofava baixinho: o bagual deve ter se perdido… Meia hora mais tarde, o gordo regressou leve e triunfante, e eu não quis saber de detalhes sórdidos.
No apartamento, o guri e eu incorporamos não os Python, e sim dois patetas. Logo que puxei a cortina, desconfiei que o tradicional hotel não envelhecera saudável: metade do trilho caiu do teto.
Recomendei um cochilo ao meu jovem companheiro de viagem e me debrucei na mesa para despachar no laptop. Até que ouvi o estrondo às costas.
Uma pintura a óleo com moldura da largura de duas camas de solteiro despencara rente à cabeça do filho, e quem quase morreu foi o pai, de susto. O piá de seis anos havia se distraído empurrando-a para cima, com os pés, e os quatro pregos magrinhos que a suportavam cederam.
Para recolocar o quadro, improvisei um sapato como martelo, mas o solado de borracha era macio demais. Peguei então o tubo da espuma de barbear para martelar os pregos na parede. No segundo golpe, o tubo furou, e a espuma esguichou furibunda, cobrindo camas, roupas, paredes e espelhos. Corri para o banheiro, que embranqueceu com a neve a jato.
Enquanto eu iniciava a limpeza que me tomaria hora e meia, o caçula se sentou numa cadeira de rodinhas, e o trilho vergou mais _a cortina se enroscara na cadeira que deslizava para lá e para cá.
Quase tudo tinindo, fiz a barba com uma nuvem de espuma resgatada no teto do banheiro. Meu amigão, exausto, adormeceu na cerimônia noturna de entrega de um prêmio jornalístico, e tivemos de partir. Carregando-o no colo, atrapalhei-me e rasguei meu honroso diploma.
Trauma infantil? Qual o quê! Quando cruzo com um conhecido, o Daniel escancara o sorriso e dá corda, com seu sotaque carioca: “Já contou a nossa história no hotel de Porto Alegre?”
(MM, publicado originalmente na revista Azul Magazine, abril de 2014)
Mário Magalhães
Gabriel Jesus fez dois gols e sofreu o pênalti convertido por Neymar – AP Photo/Ricardo Mazalan
Doze dias depois de o Brasil conquistar a medalha de ouro com o elenco olímpico, a seleção venceu o Equador por 3 a 0 em Quito.
No Maracanã, semeou o futuro. No estádio Atahualpa, regou a esperança. Estará na Copa da Rússia.
A ótima atuação, desde o primeiro tempo, evidenciou o progresso em relação aos tempos de Dunga.
O ex-técnico teimava em barrar Marcelo, e o lateral-esquerdo reincorporado por Tite foi magistral.
O antigo ataque devagar-quase-parando se movimentou muito, infernizando a defesa da casa.
Registre-se, a favor de Dunga, que ele não teve uma Olimpíada para constatar que aos 19 anos Gabriel Jesus tem mesmo bola para o time principal.
A escalação do garoto pelo meio do ataque foi uma boa sacada de Tite.
Não é Neymar, mais frequente na ponta-esquerda, quem marca o lateral-direito oponente, e sim o palmeirense que logo estará no Manchester City.
O inspirador do glória, glória, aleluia nos estádios fez dois gols e sofreu o pênalti convertido por Neymar.
Pode ter sido impressão falsa, de quem viu o jogo pela TV, mas parece existir uma diferença entre o nosso ataque arisco, e a rapidez dos laterais, e o meio-campo mais cadenciado, com Casemiro, Renato Augusto e Paulinho. O titular Willian e Philippe Coutinho, que entrou muito bem, são mais atacantes do que meias. A lentidão torna mais difícil surpreender time retrancado, o que o Equador não foi ontem.
A velocidade dos atacantes brasileiros contrastou com a dos argentinos, mais parados, em sua vitória de 1 a 0 sobre o Uruguai. Falo só do primeiro tempo, até a obscena expulsão do argentino Dybala. Mas é preciso relativizar a comparação Brasil-Argentina porque os uruguaios, fora de casa, montaram uma defesa muito mais sólida e com mais qualidade técnica que a equatoriana. Perderam pela ineficiência ofensiva e porque do outro lado havia Messi _que nem foi o melhor em campo, e sim Mascherano. O meio-campo do Uruguai é limitado.
A seleção brasileira tem muito a evoluir. Mas é certo que 7 a 1 nunca mais, ao menos nos gramados.
Mário Magalhães
Espaço ''O escritor indica'', que eu tenho a honra de inaugurar; ainda faltam quatro autores
Acabei de chegar de lá: a Livraria Leonardo da Vinci, patrimônio de 64 anos da cultura carioca, reabriu hoje.
Desde que o seu fechamento foi anunciado no ano passado, muita gente pensava que o célebre local de cultivo de livros e ideias tinha ido para a cucuia.
Qual nada. Depois de quatro meses de obras, a Da Vinci manteve a elegância e o aconchego. Ganhou um café e mais conforto. No mesmo endereço, na avenida Rio Branco.
Tudo graças à ousadia do livreiro Daniel Louzada, seu novo dono.
''Eu acredito na missão civilizadora da livraria'', disse Daniel ao repórter Leonardo Cazes.
A livraria reformada abrigará também conversas sobre literatura, história, o mundo dos livros.
O ''Papo de Quinta'' estreia logo mais às 18h, com o poeta Antônio Cícero e o jornalista Miguel Conde.
Outra programação regular serão os ''Reencontros com a Civilização Brasileira''. O historiador Jorge Ferreira é o primeiro convidado.
Para acompanhar as novidades da livraria, basta clicar aqui.
Tive a honra de receber o convite para inaugurar o espaço ''O escritor indica'', no qual autores farão sugestões de leitura. Está sendo montado com escritores que participaram em 2013 do I Festival de Biografias, do qual fui o curador literário. Uma turma de responsa: Fernando Morais, Guilherme Fiuza, Humberto Werneck, João Máximo, Lira Neto, Lucas Figueiredo, Luiz Fernando Vianna, Paulo Cesar de Araújo, Regina Zappa e Ruy Castro. Josélia Aguiar, mediadora no festival realizado em Fortaleza, em breve estará nas mesas e estantes da Leonardo da Vinci, com sua biografia de Jorge Amado a sair pelo selo editorial Três Estrelas. Regina Echeverria, que não pôde ir ao encontro de três anos atrás por motivo de força maior, junta-se ao colegas no espaço ''O escritor indica''.
A Leonardo da Vinci não apenas sobreviveu. Tem vida próspera pela frente.
Tim-tim.
Mário Magalhães
A democracia perdeu: 6 dias após eleição já pediam para rasgar os votos – Eduardo Anizelli/Folhapress
No derradeiro dia de agosto, o Senado acaba de depor a presidente constitucional Dilma Rousseff.
A conspiração comandada por suspeitos e acusados dos crimes mais cabeludos derrubou uma mulher inocente, contra quem inexiste indício de ter se apropriado de bens públicos.
O capo do conluio no parlamento, o correntista Eduardo Cunha, permanece protegido por seu mandato na Câmara.
O julgamento farsesco evidenciou que a presidente não cometeu crime de responsabilidade. É possível que o depoimento mais esclarecedor tenha sido o do professor Luiz Gonzaga Belluzzo.
Impeachment sem crime de responsabilidade constitui golpe de Estado, com ou sem blindados e tropas nas ruas.
Governo ruim não configura crime de responsabilidade. Deve ser derrotado pelos cidadãos, em eleições diretas.
Um colégio de 81 senadores violentou a soberania do voto popular. Em 2014, 54.501.118 brasileiros sufragaram Dilma.
Assume de vez o Planalto quem não se elegeu presidente, e sim vice.
O missivista Michel Temer encabeça um governo de enrolados na Operação Lava Jato, sem ministra, sem ministro negro, com venda de patrimônio nacional e intenção de fulminar conquistas dos pobres.
O governo Temer nasce irrevogavelmente ilegítimo.
O golpe vagabundíssimo de 2016 é mais um na história do país.
A República, em 1889, foi proclamada num golpe.
Idem o governo imposto pelo golpe de 1930.
Seu chefe, Getulio Vargas, sapecou mais um golpe, em 1937, introduzindo a ditadura do Estado Novo.
Foi destituído por outro, em 1945.
Depois de Getulio regressar ao Catete bafejado pelas urnas, liquidaram-no numa madrugada de agosto de 1954 com uma dita licença do cargo. O golpe foi revertido pela bala no peito.
Em 1964, o golpe adiado por uma década depôs o presidente João Goulart e pariu a ditadura de 21 anos que barbarizou com golpes dentro do golpe.
O golpe de 2016 é o maior retrocesso da democracia brasileira nos últimos 52 anos.
Frustrou-se a esperança de que prevaleceria a vontade expressa nas urnas.
No lugar das diretas, indireta.
Na democracia, presidente se escolhe com o voto dos cidadãos.
Nessa tarde trágica, em tempos tormentosos, Renato Russo ecoa de novo: ''Hoje a tristeza não é passageira. (…) E quando chegar a noite cada estrela parecerá uma lágrima''.
Mário Magalhães
Quase no fim do interrogatório de 13 horas e 54 minutos, pertinho da meia-noite de 29 de agosto de 2016, Zezé Perrella disparou perguntas duras a Dilma Rousseff.
A presidente constitucional poderia ter indagado se o senador tem viajado de helicóptero, mas se limitou a responder com objetividade ao interrogador.
Pouco antes, tinha sido a vez de Flexa Ribeiro.
A interrogada não mencionou a cana que ele amargara por ocasião da Operação Pororoca. Tratou dos assuntos que o tucano abordara.
Diante de velhos companheiros de refregas contra a ditadura, agora transformados em algozes, poderia ter cantarolado ''quem te viu, quem te vê…''.
E piscado para Chico Buarque, o compositor daqueles versos, que assistia no Senado à cerimônia do adeus.
Em vez da atitude catártica, que talvez fizesse bem para espanar um pouco da poeira da hipocrisia que assola o país, Dilma se conteve.
Nem por isso deixou de lutar. Peleou até o fim, na sessão em que começou a falar às 9h53, em seu discurso de 45 minutos, e pronunciou a última palavra às 23h47.
Consciente do cadafalso que a aguardava em algumas horas, na noite de hoje ou na madrugada de amanhã, a presidente poderia ter denunciado de longe o golpe de Estado e as cartas marcadas, sem comparecer à arena em que provavelmente a devorarão.
Preferiu encarar seus carrascos.
Tá pensando que é moleza?
Michel Temer, o missivista ressentido que conspirou com gente mais suja que pau de galinheiro para depor uma cidadã honesta, acovardou-se até de vaia no Maracanã. Fez forfait na cerimônia de encerramento da Olimpíada.
O senador Romero Jucá, desenvolto em armações pelo impeachment e pela impunidade, não interpelou Dilma. É ele o autor da frase-síntese ''tem que mudar o governo pra poder estancar essa sangria''.
Em vez da pusilanimidade alheia, Dilma ofereceu coragem, aquela que a vida quer da gente, conforme o Guimarães Rosa apreciado por ela.
Seus melhores momentos foram ao defender a soberania do voto popular e a própria inocência. O impeachment está previsto em lei. Mas sem crime de responsabilidade do governante constitui golpe de Estado.
Os argumentos pró-deposição foram sendo respondidos com tamanha clareza que os opositores passaram a versar sobre temas estranhos ao processo _e olha que clareza não é o forte da presidente na iminência de ser deposta. Queriam debate eleitoral. A advogada Janaina Paschoal não elaborou uma só pergunta sobre o que poderia ser crime de responsabilidade. Preocupou-se com crescimento econômico de países latino-americanos.
Os pior de Dilma foi seu silêncio sobre o que não se pode silenciar. Mostrou combatividade ao proclamar a Petrobras e o pré-sal patrimônios nacionais. Calou, contudo, sobre a roubalheira na companhia. É certo que a gatunagem já existia nos anos Fernando Henrique Cardoso. Mas no mínimo se manteve e possivelmente se expandiu na era petista. A rejeição à liquidação do pré-sal e o combate escrupuloso à corrupção não são contraditórios. Combinam-se. Uma ação exige a outra.
A presidente não explicou, quem sabe o porvir explique, por que sacrificou os mais pobres no arrocho dito ajuste que se seguiu à eleição de 2014. Os gráficos que exibiu sobre a degringolada do cenário econômico internacional impressionam. Mas a decisão de cobrar a conta daqueles que a elegeram permanece como mistério.
Nada disso configura crime de responsabilidade. Subsídio não é crédito, como outro dia ensinou o professor Luiz Gonzaga Belluzzo no plenário do Senado. Pedaladas fiscais são pretextos para expulsar quem colheu 54.501.118 votos.
Se governo desastroso, como o segundo mandato de Dilma, justificasse afastamento, os governadores Pezão-Dornelles deveriam ter recebido cartão vermelho muito antes.
Na democracia, presidente se elege na urna, e não no tapetão.
A presidente defendeu-se no processo e depôs para a história.
A sessão de ontem, e não apenas o seu discurso, equivale a uma carta testamento.
Querer a mesma dramaticidade da carta de Getulio Vargas em 1954 é desconsiderar que um era cadáver, saíra da vida e entrara na história. Dilma tem muita vida pela frente, embora também já seja história.
É preciso ser muito insensível ou cultivar o ódio para não perceber o contraste entre uma mulher batalhando com altivez, concorde-se ou não com ela, e o novo governo que expurgou as mulheres do Ministério.
Entre a mulher que deu a cara para bater no Senado hostil e o sucessor sem voto que se esconde em meio às brumas da intriga.
Entre a mulher que dá nome aos bois, a começar por Eduardo Cunha, o patrono do impeachment, e quem trama para proteger o deputado correntista.
Beira a desonestidade intelectual fazer o balanço de ontem com base exclusivamente em votos mudados. O jogo já estava jogado. Nem por isso a presidente se acovardou.
Se a vida quer é coragem, a vida não pode reclamar de Dilma Rousseff.
Mário Magalhães
O artífice, o muso, a cara e o coração do impeachment – Foto Pedro Ladeira/Folhapress
Salvo reviravolta improvável, daqui a algumas dezenas de horas a presidente constitucional Dilma Rousseff será deposta.
Trata-se de um golpe vagabundíssimo, como assinalado no blog em maio, no artigo reproduzido abaixo.
Depois de escrito aquele post, sobrevieram fatos que reforçaram a convicção de embuste contra a democracia.
Uma gravação com figurões do PMDB evidenciou que o impeachment é também trama para assegurar impunidade.
Os pretextos legais são tão frágeis que Michel Temer declarou: ''Essa questão do impeachment no Senado não depende da nossa atuação. Depende da avaliação política –não uma avaliação jurídica– que o Senado está fazendo''. Mais claro impossível.
*
Mais um golpe vagabundíssimo
Poucos anos depois da deposição do presidente constitucional João Goulart, em 1964, um dos arautos mais estridentes do movimento avacalhou-o como “golpe vagabundíssimo''. Houvera, de fato, golpe de Estado. Mas antes o arauto o incensara como “Revolução'', em caixa-alta. E como cruzada em defesa da democracia e contra a corrupção.
Proclamaram que seria uma “Revolução'' destinada a assegurar eleições diretas para o Planalto. Logo as aboliram. Denunciados pelos golpistas como larápios, Jango e o ex-presidente Juscelino Kubitschek tiveram a vida devassada, e os esbirros não obtiveram uma só prova de que os investigados tivessem se apropriado de patrimônio público. Os dois acabaram formando ao lado do velho antagonista. Batalhando pela redemocratização, conforme os ex-governantes, ou democratização, como preferia o arauto do 1º de abril. Juntos contra a ditadura parida pela derrubada de Goulart.
Neste instante, começo da tarde de 11 de maio de 2016, o Senado debate o afastamento da presidente constitucional Dilma Rousseff. A guilhotina tem hora marcada, a madrugada vindoura. Sem blindados nas ruas e divisões de infantaria nas estradas. Com uma embalagem menos vulgar que a de 52 anos atrás. Mas mesmo assim um golpe de Estado. Mais um golpe vagabundíssimo.
Dilma sofre processo de impeachment sem que exista prova ou indício de que tenha cometido crime. Ao contrário de numerosos algozes, os senadores e deputados acusados de uma vastidão de artigos do Código Penal. As manobras fiscais de créditos e as ditas pedaladas não constituem subtração de dinheiro do povo. Eram práticas corriqueiras de todos os partidos grandes, aqueles que em maioria se preparam para eliminar a presidente consagrada em 2014 por 54.501.118 votos. Configura injustiça _ou golpe_ aplicar determinados critérios punitivos a gestores de certa coloração, e a de outras, não.
Dilma Rousseff não está sendo deposta em virtude do seu desastroso segundo mandato. Ao trocar suas promessas de palanque pela plataforma do candidato derrotado, ela impôs à sua base social os maiores sacrifícios da crise. Agravou-a, castigando os brasileiros mais pobres. Um dia a história talvez esclareça por que a presidente fez o que fez.
Seria indigno, contudo, culpar Dilma pelo golpe. As responsabilidades são dos autores. Na raiz do impeachment se identifica a rejeição, cultivada por castas sociais poderosas, à soberania do voto popular. Quatro dias após a reeleição, o PSDB já questionava a legitimidade da candidata que triunfara. Diante da inércia e da hesitação do governo, grupelhos de fanáticos de extrema-direita se vitaminaram, deflagrando uma coalização semelhante à que fulminou Jango.
Os grandes proprietários de terras, o empresariado mais graúdo, os meios de comunicação hegemônicos, o Congresso conservador e a classe média mais radicalizada reeditam o papel desempenhado há meio século. As Forças Armadas, cujas ações ainda carecem de clareza, e a Igreja são exceções. A Casa Branca, rápida no gatilho para pitacar até sobre corrida de calhambeques mundo afora, cala sobre a farsa antidemocrática no Brasil.
A recusa às urnas não é mera idiossincrasia desvinculada de outros propósitos. Coube a um jornalista bem-humorado boa explicação. Falando pela boca da dona História, Luis Fernando Verissimo escreveu: “[…] A ilusão que qualquer governo com pretensões sociais poderia conviver, em qualquer lugar do mundo, com os donos do dinheiro e uma plutocracia conservadora, sem que cedo ou tarde houvesse um conflito, e uma tentativa de aniquilamento da discrepância. Um governo para os pobres, mais do que um incômodo político para o conservadorismo dominante, era um mau exemplo, uma ameaça inadmissível para a fortaleza do poder real. Era preciso acabar com a ameaça e jogar sal em cima. Era isso que estava acontecendo [em 2016]”.
Não é no piscar de olhos histórico de pouco mais de um século desde a Abolição que são suprimidas relações de poder obscenas numa das derradeiras nações a extinguir a escravidão formal. O Brasil permanece como um dos países mais desiguais. A terra onde uma patroa de classe média tinha e quem sabe ainda tenha chiliques ao se deparar com a empregada doméstica trajando roupa igual à sua.
Na queda de Dilma, há uma pegadinha marota nos balanços da economia e de indicadores sociais, abrangendo apenas três anos e pouco. O governo agoniza, mas o cartão vermelho é sobretudo para os 13 anos e quatro meses de representantes do PT na Presidência. Perdas e danos devem ser contabilizados desde 2003.
Nesse período, ninguém insinuou revolução ou ameaça aos interesses mais caros dos mandachuvas atávicos. Mas o que se passou não foi indiferente à população que desde o desembarque de Cabral levou a pior. Nos 13 anos petistas, a renda dos mais pobres teve 129% de aumento real, descontada a inflação. A dos mais ricos, 32%.
De 2001 a 2009, a taxa de pobreza no país despencou de 35,2% para 21,4%. A da extrema pobreza, para menos da metade, de 15,3% para 7,3%. O programa Bolsa Família contribuiu para isso, bem como o incremento real do salário mínimo em 53%, nos oito anos de Lula (2003-2010). Em 2013, 13,8 milhões de famílias eram atendidas pelo Bolsa Família, aproximadamente 27% da população ou ao menos 50 milhões de viventes. Poucas iniciativas dos anos Lula-Dilma foram tão demonizadas quanto o Bolsa Família. O programa tem notórias limitações, mas comer um prato de comida não é capricho para os ao menos 30 milhões de seres humanos que deixaram a miséria absoluta, a da fome.
Nesses 13 anos, as universidades receberam mais estudantes que antes. E mais negros. Avião deixou de ser transporte só de bacana. Empregadas domésticas conquistaram carteira assinada. O desemprego hoje, a despeito do aumento recente, é menor do que em tempos de Fernando Henrique Cardoso. A mortalidade infantil diminuiu. O salário mínimo recuperou-se também com Dilma.
Nada foi benesse, e sim vitória de quem foi à luta. Mas tudo sobreveio de 2003 a 2016, o que é fato, e não opinião.
Eis o que a dona História, de Verissimo, quis dizer: até dividir um pouquinho da riqueza é inaceitável para os donos do dinheiro.
Tomara que no porvir os historiadores não minimizem um capítulo decisivo da deposição de Dilma: o golpe não ocorreria se o PT tivesse aceitado livrar Eduardo Cunha do voto pró-cassação por quebra de decoro parlamentar. Para retaliar, Cunha instaurou a ação do impeachment, acelerou-a, tramou e presidiu a sessão da Câmara em 17 de abril, encaminhando a degola.
Dilma paga por um gesto de decência do PT, e não por uma das numerosas ações indecentes da trajetória do partido. Se Aécio Neves tivesse se submetido à manifestação soberana dos cidadãos em 2014, talvez o impeachment não prosperasse. Sem Eduardo Cunha, com certeza a conspiração não teria vingado.
O PMDB participou das administrações do PSDB e do PT. Agora deve alcançar o poder, sem intermediários. O Brasil cai na mão do que existe de mais atrasado, e não apenas em matéria de zelo pela coisa pública. É medieval a agenda sobre comportamento e direitos civis de muitos figurões do impeachment e do iminente governo Michel Temer. Quem assume é a agremiação de Eduardo Cunha.
Collor foi apeado em 1992 depois de comprovadamente ter cometido crime. Com Dilma, isso não ocorreu. A deposição de 2016 pertence à família da de 1964.
A saída à força da presidente é menos uma derrota pessoal e muito mais uma tragédia para o Brasil e a democracia tão golpeada.
P.S.: o autor da expressão “golpe vagabundíssimo'' é Carlos Lacerda, governador da Guanabara em 1964. Lacerda (1914-1977) foi protagonista de golpes bem-sucedidos ou malogrados. Mas enfrentou duas ditaduras e muitas vezes lutou pela democracia e contra o golpismo. Militou no comunismo, tornou-se anticomunista. “Não era um homem, mas uma convulsão da natureza'', disse Barbosa Lima Sobrinho. É legítimo supor que hoje Lacerda estaria deste ou daquele lado. Não me arrisco a chutar. Ele é o protagonista do meu próximo livro, a sair pela Companhia das Letras no ano que vem. Sem deixar de contar as décadas anteriores, concentro-me no período 1964-1977. Ao iniciar a empreitada do livro, sabia que seus personagens e temas permanecem apaixonantes. Mas não imaginava que seriam tão atuais.
Mário Magalhães
Pedro Paulo e Eduardo Paes – Foto reprodução piauí/Folha
Saiu a primeira pesquisa Ibope no período oficial de campanha eleitoral para prefeito do Rio.
Eis os resultados, com margem de erro de três pontos para cima e para baixo:
Marcello Crivella (PRB): 27%
Marcelo Freixo (PSOL): 12%
Flávio Bolsonaro (PSC): 11%
Jandira Feghali (PC do B) e Pedro Paulo (PMDB): 6% cada um
Índio da Costa (PSD): 5%
Carlos Roberto Osório (PSDB): 4%
Alessandro Molon (Rede): 2%
Carmen Migueles (Novo): 1%
Cyro Garcia (PSTU): 1%
Quem entende de eleição na cidade aposta que haverá segundo turno, e que dificilmente o senador Crivella ficará fora dele.
A disputa para ir ao mata-mata decisivo deve se concentrar em Freixo, Pedro Paulo e Osório.
Pedro Paulo terá muito mais tempo de propaganda na TV do que os adversários.
É o candidato do prefeito Eduardo Paes.
Ao Ibope, 20% dos entrevistados declararam votar branco ou nulo, e 5% dizem não saber quem sufragar.
Os principais concorrentes de Crivella supõem que a rejeição do ex-ministro o derrotará na reta final. Ela decorre do vínculo com a Igreja Universal do Reino de Deus.
O levantamento começou na véspera da cerimônia de encerramento da Olimpíada e terminou um dia depois.
Os círculos próximos ao prefeito e seu candidato consideram que o sucesso dos Jogos (leia análise do blog clicando aqui) impulsionará a campanha de Pedro Paulo.
O correligionário de Michel Temer, Sérgio Cabral e Eduardo Cunha padece sobretudo do desgaste da denúncia de agressão à ex-mulher. O inquérito do caso foi arquivado pelo STF.
A candidatura agonizante de Pedro Paulo só não morreu porque Paes insistiu em mantê-la.
É possível que o capital político proporcionado pela Olimpíada ajude o peemedebista.
Mas não é certo.
O exemplo clássico de governante bafejado por êxito, e que êxito, porém batido nas urnas é o de Winston Churchill.
Ao lado de Ióssif Stálin e Franklin Roosevelt, o então primeiro-ministro britânico posou em fevereiro de 1945 como um dos grandes vencedores iminentes da guerra contra o nazifascismo.
Em julho daquele ano, os cidadãos o defenestraram do governo, votando nos trabalhistas.
O trauma de Churchill é parente do que ameaça Eduardo Paes e Pedro Paulo.
Se a maioria dos cariocas julgar que a Olimpíada valeu a pena, mas que é preciso mudar o governo, o PMDB perderá.
Mário Magalhães
A cerimônia do adeus – Foto Fabrizio Bensch/Reuters
As pitonisas que profetizaram vexame erraram.
Os agourentos se deram mal.
Desde a abertura, o complexo de vira-lata malogrou.
A Olimpíada do Rio esteve longe de ser perfeita, mas foi um sucesso.
Apesar dos pesares. Pergunte a quem a viveu de perto.
Em matéria de organização, houve tropeços.
Eles não comprometeram os Jogos.
Poucas celebrações esportivas pelo mundo foram tão animadas e envolveram tanta gente como a daqui.
Não falo de jogos e provas, com ingressos a preços mais salgados que churrasco feito por neófito.
E sim de passeios como os de milhões de cariocas e visitantes pelo Boulevard Olímpico.
No fim, prevaleceu a lei de Lota: “Aqui no Brasil as coisas são meio empíricas. Mas no final tudo dá certo”.
Por isso, porque deu certo, há escribas passando recibo de seus palpites apocalípticos e desinformados.
Essas anotações sobre a Rio-2016 não minimizam ou relativizam a necessidade de acesso à caixa-preta dos Jogos.
Até agora, a Prefeitura do Rio mantém inacessíveis informações que permitiriam conhecer melhor o custo da Olimpíada.
O governo municipal poderia começar respondendo: em que rubrica estão, no balanço do evento, os gastos de ao menos R$ 200 milhões em indenizações para remover moradores da Vila Autódromo, pequena comunidade grudada ao Parque Olímpico? Esse dinheiro, até onde se sabe, saiu dos cofres do Município.
Será preciso esperar a conclusão da Lava Jato _ou de outras operações semelhantes_ para conferir se o modus operandi da alegada propina na reconstrução do Maracanã se restringiu à administração estadual. Executivos da Odebrecht e da Andrade Gutierrez afirmaram ter pago ao então governador Sérgio Cabral 5% do orçamento oficial da obra no estádio, R$ 1,2 bilhão. Essas duas construtoras também integraram o consórcio que ergueu o Parque Olímpico. Tomara que ali não tenha ocorrido corrupção.
Para uma análise mais profunda das consequências dos Jogos para a cidade, é indispensável o escrutínio de receitas e despesas da prefeitura.
E de sua relação financeira com o Comitê Rio 2016.