Tá chegando a hora?
Mário Magalhães
Mário Magalhães
Mário Magalhães
O consórcio empresarial e político que patrocinou a ascensão de Michel Temer ao Palácio do Planalto emite sinais crescentes de que já não identifica no peemedebista puro-sangue as condições para impor plenamente o programa com o qual ele se comprometeu. Vale dizer, corte impiedoso dos gastos públicos, com a consequente asfixia de programas sociais e de desembolsos com saúde e educação; a dita reforma previdenciária; e a igualmente dita reforma trabalhista.
Apressam os conchavos pela opção Rodrigo Maia, presidente da Câmara. A agenda dele é a mesma do clube, do qual também é sócio, que promoveu Temer a capo da República. É a agenda que limita a aprovação do governo a míseros 7% dos brasileiros.
Rodrigo foi reconhecido como o Botafogo das planilhas da Odebrecht. É figurão do DEM, nova embalagem do antigo PFL, continuidade histórica da Arena e do PDS, os partidos oficiais da ditadura que bateu as botas em 1985.
Os partidários da deposição de Dilma Rousseff decidiram entregar a Presidência a Temer para não correr o risco da antecipação das eleições diretas previstas para outubro de 2018. A mudança de data poderia _e pode_ ocorrer com o respeito escrupuloso à Constituição, por meio de proposta de emenda constitucional. Um dos receios dos padrinhos do correligionário de Eduardo Cunha era (é) o voto popular soberano bloquear as coordenadas econômicas em vigor, sufragando candidatos com plataforma oposta à que está aí.
Desenvolve-se manobra semelhante, mudando circunstâncias e nomes, para impedir o pronunciamento dos cidadãos nas urnas.
A denúncia da Procuradoria-Geral da República contra Michel Temer por corrupção passiva só será apreciada pelo Supremo Tribunal Federal se a Câmara autorizar. Se dois terços dos deputados permitirem a instauração do processo, Temer será afastado do cargo por até seis meses. Como presidente da Câmara, Rodrigo Maia assumiria. No caso de o STF condenar Temer, Rodrigo convocaria nova eleição presidencial. Pela regra atual, indireta. O próximo presidente da República, escalado para governar até dezembro do ano que vem, seria escolhido exclusivamente por deputados e senadores. A conspiração em curso pretende consagrar o filho de Cesar Maia como o vitorioso no pleito indireto.
A reivindicação por Diretas Já não implica marcar a eleição para o mês que vem. E sim antecipá-la, por meio de emenda constitucional. São diretas o mais breve possível. Se depender do pessoal que bancou Michel Temer e agora acalenta Rodrigo Maia, o novo presidente também carecerá da legitimidade do voto direto.
Na democracia, presidente se elege no voto.
Mário Magalhães
Indagaram ontem a Antonio Claudio Mariz de Oliveira, advogado de Michel Temer, se o governo está na UTI.
O defensor do chefão peemedebista respondeu: ''Não sou médico, mas diria que o governo está na lanchonete do hospital, comemorando, pensando, trabalhando pelo país''.
Se estivesse na lanchonete, talvez Temer se deleitasse com guloseimas importadas, desembarcadas no porto de Santos.
Ou com um presunto cru da Seara, marca da JBS, grupo do trambiqueiro Joesley Batista.
Aproveitaria para elucubrar sobre o papel dos soviéticos na nova crise em torno da Coreia do Norte.
Mas o governo _e seu cabeça_ não está na lanchonete do hospital.
Está no IML.
À espera de alguém para recolher o cadáver.
O que se vê por aí, jurando inocência, é um governo zumbi.
E olha que o correntista Eduardo Cunha, correligionário de Michel Temer, ainda não jogou no ventilador a delação que está alinhavando.
Mário Magalhães
Quem ainda para em banca de jornal para olhar as primeiras páginas dos diários impressos deparou-se hoje no Rio com três manchetes de destroçar o coração.
''Meia Hora'': ''Rio perde mais uma criança para a violência''.
''Extra'': ''Sobra violência, falta governo''.
''O Dia'': ''O Estado que mata as suas crianças''.
São mesmo títulos de revoltar e comover, mas aparentam sensibilizar cada vez menos.
Entre tantos motivos, alguns relacionados ao egoísmo humano e à miséria existencial, está a assiduidade de episódios semelhantes.
Quanto mais surpreendente o fato, maior a tendência de chocar. E vice-versa. Os cariocas se habituaram à crônica da morte de crianças por balas disparadas por policiais e traficantes. Mudam os nomes e as histórias de cada um que se vai, porém as circunstâncias se parecem.
A última tragédia era conhecida desde a véspera, trombeteada na internet. Notícia incandescente, só que com o amargo gosto de déjà-vu: ontem à tarde Vanessa dos Santos foi morta a bala quando estava dentro de casa, num complexo de favelas do Lins de Vasconcelos. Ela tinha onze anos. Atingiram-na na cabeça.
O menino Arthur viria ao mundo na segunda-feira, dia marcado para o parto de sua mãe. Seu nascimento teve de ser antecipado. Na sexta-feira, Claudineia dos Santos Melo foi baleada na favela do Lixão, em Duque de Caxias. A bala feriu Arthur, que já nasceu sofrendo, e luta pela vida, em estado gravíssimo.
Em março, Maria Eduarda Alves da Conceição, moradora da favela da Pedreira, participava da aula de educação física no colégio quando a mataram com três tiros. Havia completado treze anos.
Em janeiro, Sofia Lara Braga, de dois anos, foi morta ao ser baleada no rosto quando brincava no parquinho do Habib's de Irajá.
Às vésperas da Páscoa de 2015, no complexo do Alemão, tinha sido a vez do garoto Eduardo de Jesus, dez anos, filho de Maria e José.
''O Dia'' contabilizou 37 crianças mortas por disparo mais ou menos distante desde 2007.
Crianças cariocas perdem o direito à vida. Quanto mais pobre, maior o risco.
E os mais velhos, também. Há cinco dias, mãe e filha foram mortas no morro da Mangueira. Marlene tinha 76 anos. Ana Cristina, 42.
A banalidade das balas vai fazendo com que a violência aberrante se tinja de inconveniente inescapável.
O jornalismo contribui para omitir ou relativizar a existência de assassinos toda vez que pronuncia ou escreve a expressão indigna ''bala perdida'' (leia mais aqui).
Como disse há pouco o pai de Vanessa, ''não foi bala perdida, foi assassinato''.
Mário Magalhães
Não é que o São Paulo tenha ''apenas'' perdido por 2 a 0 para o Flamengo. Foi mais do que isso. O tricolor levou ontem um baile na Ilha do Urubu, foi dominado quase o jogo inteiro, poderia ter sido derrotado por mais. Amarga a zona de rebaixamento. É fácil apresentar a conta à defesa. Mas é complicado segurar atrás se à frente pouco perigo se constrói. O Lugano, aos 36 anos, está melhor do que eu supunha. Do Pratto, dá pena, tamanha sua solidão. O que foi feito do Cueva, digo, do futebol do Cueva?
A ascensão rubro-negra decorre sobretudo da qualidade do seu elenco. Como tantas vezes escrito aqui, é um dos melhores do país. Começou a dar resultado. A equipe tem se mostrado mais bem armada, depois que enfim o Zé Ricardo desistiu (obrigado, São Judas Tadeu) da parelha Márcio Araújo-Willian Arão na qual tanto insistia _o segundo acabou no banco. O Cuéllar oferece mais qualidade ao meio-campo. Pode oferecer mais, se vacilar menos em alguns passes. O Everton Ribeiro na direita do ataque forma com o Diego uma dupla de armadores criativos _antes o Diego, no meio-campo, tinha de dar conta sozinho desse trabalho, o que facilitava a marcação sobre ele.
Os elencos com mais qualidade ascendem igualmente longe da Gávea-Ninho do Urubu-Ilha do Urubu. Dos cinco favoritos ao título reconhecidos por muita gente na largada do Campeonato Brasileiro, quatro ocupam as primeiras posições às vésperas da 12ª rodada. É um aspecto ruim da competição: sua previsibilidade.
Não tenho acompanhado o São Paulo com a frequência e a atenção indispensáveis para maiores pitacos. A estreia do Rogério Ceni como técnico, sem experiência prévia, num clube gigante constitui uma operação arriscadíssima. Ainda pode dar certo, e eu torço para que dê. Até um treinador genial como o Guardiola não iniciou diretamente no time principal do Barcelona. Já ouvi gente citando experiências do passado, de jogador que, sem escalas, passou a técnico. Mas os tempos mudaram, são mais complexos, um pouco de prática e estudo sistemáticos antes de lances ambiciosos costumam ser importantes no esporte.
É difícil julgar o desempenho do ex-goleiro também porque o clube vai lhe tirando jogadores, transferidos para o exterior. As perdas rebaixam o padrão técnico do elenco e exigem improvisos. Seria penoso mesmo para treinadores mais rodados.
Não gostaria de estar na pele dos torcedores do São Paulo. Eles querem o melhor para o clube e para o ídolo Rogério Ceni. É possível que em determinado momento o recomendável para a instituição não seja a permanência do mito no comando da equipe (esse momento já chegou?). Eis um drama futebolístico-existencial.
Tomara que o Zico jamais treine o Flamengo. Heróis não devem ser expostos assim. Às vezes dá certo, e poderia dar no caso do Zico. Técnico talentoso, tem virtudes para levar longe o Flamengo. Mas se não levasse? Sofrimento em dobro, pelo clube e pelo Galinho. Não quero nem imaginar. Gritar burro? Pedir a cabeça? Vira essa boca pra lá.
Outra questão: são-paulino de coração, Rogério algum dia pensará que o melhor para o clube é a sua saída?
Mário Magalhães
Um grita (quase) generalizada expressou horror com o encontro da terça-feira entre Michel Temer e Gilmar Mendes na casa do ministro. Também participaram os ministros Eliseu Padilha e Moreira Franco. Na véspera, o procurador-geral da República denunciara Temer por corrupção passiva. Um dia depois da conversa na residência do ministro do STF e presidente do TSE, o presidente da República anunciou a escolha da procuradora Raquel Dodge para substituir Rodrigo Janot na PGR.
Eu me associo ao horror, espanto-me com as fantasias rasgadas, no entanto seria cínico se afetasse surpresa. Ou o comportamento de Gilmar Mendes mudou de umas semanas para cá, contrastando com suas atitudes anteriores? Para responder positivamente, só com muita ignorância ou muita desfaçatez.
O ministro poderá julgar Temer, Padilha e Moreira, todos enrolados em investigações sobre uma vastidão de crimes que eles alegam não ter cometido.
De acordo com a BBC Brasil, Gilmar e Temer se encontraram ao menos oito vezes, ''sem registro em suas agendas'', de maio do ano passado ao começo de abril deste ano. Alguns desses convescotes foram noticiados, mas muita gente deu de ombros.
No dia 9 passado, Gilmar Mendes desempatou o julgamento da chapa Dilma Rousseff-Michel Temer no Tribunal Superior Eleitoral. Absolveu-a, em voto que salvou o peemedebista abancado no Planalto. Não se insinua aqui silogismo, que a camaradagem do ministro do Judiciário com o chefe do Executivo teria determinado decisões do primeiro. Apenas se observa a paisagem.
A história é comprida. No almoço de 16 de março de 2016, Gilmar Mendes teve dois comensais conhecidos em sua mesa num restaurante brasiliense: o senador José Serra e Armínio Fraga, o economista que dois anos antes o senador Aécio Neves prometera como seu ministro da Fazenda na hipótese de triunfo na eleição presidencial. A informação, publicada pelo colunista Ilimar Franco, não causou comoção.
Nem dali a dois dias, quando Gilmar Mendes impediu a posse do ex-presidente Lula como ministro-chefe da Casa Civil do agonizante governo Dilma. Se foi certo ou errado é controvérsia sem prazo de vencimento. Saltam aos olhos, porém, a pressa no desfecho da situação de Lula e a demora do Supremo para definir imbróglio semelhante, o do ministro Moreira Franco. Quantos se perturbam com a diferença de tratamento?
Em março de 2017, leu-se que, ''diante das turbulências provocadas pela Lava Jato, o senador José Serra (PSDB-SP) deve apresentar na próxima semana uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que retira da Carta os dispositivos que regulam o sistema eleitoral. O assunto foi discutido no jantar realizado na quarta-feira (15) na casa do presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Gilmar Mendes, com a participação do presidente Michel Temer e de vários convidados do Congresso''.
Em conversa telefônica interceptada com autorização judicial _o grampeado era o então presidente do PSDB_, Aécio Neves falou para Gilmar Mendes, referindo-se ao senador Flexa Ribeiro:
''Você sabe um telefonema que você poderia dar que me ajudaria na condução lá. Não sei como é sua relação com ele, mas ponderando. Enfim, ao final dizendo que me acompanhe lá, que era importante. Era o Flexa, viu?''
Gilmar respondeu: ''O Flexa. Tá bom, eu falo com ele''.
Como o Brasil é a terra da hipocrisia, as broncas são seletivas.
Ao menos o país, enfim, resolveu descobrir Gilmar Mendes.
O ministro não mudou.
Mas só agora muitos se incomodam com ele.
Mário Magalhães
Na próxima segunda-feira, 3 de julho, o nascimento de João Saldanha completará cem anos.
Há uma década, o jornalista, escritor e cineasta André Iki Siqueira presenteou o país com a soberba biografia João Saldanha: Um vida em jogo. A edição da Companhia Editora Nacional esgotou. Quem procura o livro nas livrarias não o encontra. Na internet, frustra-se com o aviso de ''indisponível''.
Retrato da indigência nacional com sua história e em particular com a do futebol, o sumiço da biografia é vergonhoso. O autor procura nova editora, para que a grande história de João Saldanha seja conhecida por mais gente.
O que o livro tem de fraco é o prefácio, da lavra deste blogueiro. Como homenagem ao centenário do João Sem Medo e incentivo a uma nova edição, reproduzo abaixo o que escrevi dez anos atrás.
*
Vida que segue
O menino testemunhava o pai regressar à casa, com o pescoço aquecido pelo lenço encarnado dos maragatos, depois das batalhas contra os chimangos que regavam de sangue os pampas épicos do Sul. Mal saído dos cueiros, empunhava revólveres de verdade e tiroteava de brincadeira com o irmão.
Que tremendo personagem de romance, daqueles clássicos de Erico Verissimo, o guri não daria.
Imagine-o crescido e na pele de um instrutor de guerrilha rural, conspirador protegido por nome de guerra, a treinar camponeses que pelejavam pela posse da terra, matando e morrendo no norte do Paraná.
Merecia filme neo-realista.
Ou, já torcedor passional do Botafogo, a pôr o goleiro da equipe, titular da seleção brasileira em Copa do Mundo, a correr de bala por causa da suspeita de estar na gaveta, vendido aos oponentes.
Valia verbete em qualquer antologia do futebol mundial.
Na qual não faltaria outro entrevero protagonizado pelo alvinegro, então técnico do escrete canarinho, ao invadir a concentração do Flamengo de revólver calibre 32 à mão para acertar contas com um falastrão que o maldissera.
Anos depois, o gaúcho abriria fogo em uma farmácia do Leblon, para vingar a empregada que não conseguira trocar umas pilhas, e acabaria preso.
Como preso fora ao desafiar os policiais truculentos e assassinos que tomaram de assalto a sede da União Nacional dos Estudantes, na praia do Flamengo. Reagira a um tira com uma cadeirada e tivera as costas furadas por um projétil. Ferido e internado, fugiu do pronto-socorro com a camisa ainda ensanguentada.
Outra fuga foi impossível quando o apanharam em uma manifestação pelo monopólio estatal do petróleo e o arrastaram para o Departamento de Ordem Política e Social, em São Paulo, onde o submeteram aos costumes. Ou seja, cobriram-no de sopapos.
O corretivo não lhe roubou o destemor com que, desarmado, peitou o bicheiro que adentrou um estúdio de televisão disposto a calar com pólvora o antagonista _o pirralho gaudério era agora o comentarista esportivo que, sem travas na língua, fustigava o contraventor dado a veleidades de cartola.
Tratava-se do mesmo banqueiro, Castor de Andrade, que teria subornado, ou tentado, o goleiro Manga, do clube da estrela solitária. E que viria a relembrar sua irrupção na TV com o reconhecimento insuspeito: “Foi um corre-corre danado, mas o homem é macho e me enfrentou”.
Era tão valente que o dramaturgo Nelson Rodrigues cunhou a consagração imorredoura para o amigo que ignorava a covardia: João Sem Medo.
Pois o João Sem Medo não foi invenção de Nelson, nem de ninguém. Nenhuma imaginação germinaria, como ficção, a figura de João Saldanha, um herói de carne e osso.
O que você lerá a seguir, portanto, não é um romance. Mas se prepare, porque, como nos romances de aventura mais inspirados, este livro é de tirar o fôlego. Como foram os dias aventurosos de João Saldanha.
O João que renasce pela pena de André Iki Siqueira é ainda mais fascinante que o cidadão de engenhosidade proverbial para fantasiar os fatos.
Ele mirava um mapa no qual se descortinava a Normandia e confidenciava, na cara dura, que perfilara nas forças do marechal Montgomery no desembarque aliado de 1944. Desembarcar na costa francesa no Dia D não desembarcou, mas em Uma vida em jogo descobrimos que ele foi mesmo correspondente de guerra.
Sua alegada intimidade com o líder comunista chinês Mao Zedong rendeu a célebre caçoada do jornalista Sandro Moreyra: Saldanha seguia Mao tão de perto numa marcha, às vésperas do triunfo revolucionário de 1949, que pisou no calcanhar do camarada. O futuro chefe de governo virou-se e bronqueou: “Pôla, João!”.
Se Saldanha não gastou sola na marcha, de fato conheceu muito bem a China vermelha, e lá o passaram na faca, para salvá-lo de uma crise de apendicite. Em uma viagem a Assunção, cantarolou uma canção em chinês, e os colegas tripudiaram: é mais uma marmota do João. No dia seguinte, numa loja, uma anciã chinesa fez coro com ele.
A revelação mais notável de André Iki Siqueira é que, por mais fabuloso que tenha sido o João Saldanha das ilusões de João Saldanha, o personagem real era ainda maior que o dos sonhos. Não o Fred Astaire com quem, pé-de-valsa, ele se comparava, mas o John Wayne brasileiro, na imagem certeira do cartunista Jaguar.
Uma vida em jogo reconstitui a convivência de Saldanha, boleiro da praia de Copacabana, com seu treinador Neném Prancha, o autor das frases mais criativas do futebol nacional; o título de campeão carioca do Botafogo dirigido pelo torcedor desbragado; a camaradagem com Garrincha, que agradecia: “Seu João deixa a gente jogar o que sabe”; com Didi, que o amigo escalou como colunista de um jornal do Partido Comunista; o “Topo!” com que aceitou em 1969 o convite para comandar a seleção; os bastidores das Eliminatórias com as “feras do Saldanha”, como a nação aclamava os craques que conquistariam o Tri; a demissão controversa semanas antes da Copa do México; e o esforço derradeiro para cobrir o Mundial da Itália, de onde só retornou morto.
Saldanha não foi exclusivamente um homem do esporte, ambiente cujos holofotes lhe renderam fama e prestígio. Longe das luzes, foi um militante comunista de dedicação monástica. Nasceu em 1917, ano da revolução dos bolcheviques na Rússia, e morreu em 1990, meses após assistir pela TV ao Muro de Berlim em ruínas. A pesquisa exaustiva de André Iki Siqueira desencobre o homem inteiro, o iluminado e o das sombras.
E não esconde, já que por sorte carece de vocação para hagiografia, passagens que não enobrecem biografia alguma. O revolucionário da política, criatura do seu tempo, proclamou: “Mulher minha não trabalha fora!”. Quando a companheira, bolsa d’água estourada, só pensava em rumar para a maternidade, o marido exigiu que antes ela lhe esquentasse o pão. O democrata que combateu a ditadura militar no Brasil não se furtou a aplaudir a ocupação brutal da Tchecoeslováquia pelas tropas da União Soviética. E fraseou: “Aquilo é a zona do agrião dos soviéticos; a bola dividiu ali, eles entram de sola”.
Foi essa verve, quando a serviço das nobres causas do futebol, que me encantou na infância. No Maracanã, radinho no ouvido, eu matutava: “Por que os técnicos não ouvem no intervalo o que o João Saldanha ensina? Se fizerem o que ele diz, o jogo está no papo”.
Eu não tinha ideia da sua envergadura na história do futebol brasileiro. Nem que era, a rigor, um personagem da história do Brasil. Com suor de repórter obstinado e alma de escritor sensível, André Iki Siqueira buscou na grande história de João Saldanha um pedaço da história perdida do país.
Saldanha pontuava seus artigos com o bordão “Vida que segue”. Pois sua vida comovente segue e pulsa nas próximas páginas, como se ele ainda estivesse ao nosso lado, a puxar dos pulmões castigados a saudação de abertura dos seus comentários: “Meus amigos…”.
Mário Magalhães
Sim, hoje é dia de São Pedro.
Mas o pedido é para São Judas Tadeu, em sua condição de padroeiro do Clube de Regatas do Flamengo.
Misericórdia, não permitais que o Cuéllar volte para o banco. Ainda mais depois do golaço de ontem na vitória de 2 a 0 sobre o Santos.
Consoleis os aflitos, que se desesperam com a habitual injustiça do castigo da reserva como retribuição às boas atuações do colombiano.
Amém.
Mário Magalhães
Michel Temer acaba de se pronunciar sobre a denúncia da Procuradoria-Geral da República, que o acusa do crime de corrupção passiva.
A despeito da voz rouca, tentou falar grosso, radicalizou.
Condenou o ''ataque injurioso, indigno, infamante à minha [dele] dignidade pessoal''.
Buscou ridicularizar Joesley Batista, o empresário recebido pelo presidente na calada da noite no Jaburu. ''Senhor grampeador'', cercado de ''capangas'', assim seria o sócio do conglomerado J&F. Até um boné usado por Joesley, seu antigo amigo, Temer ironizou.
No momento mais patético da declaração, Temer resumiu uma era: ''Não sei como Deus me colocou aqui''.
Ele sabe que não foi Deus, muito pelo contrário.
Temer lembra uma piada em que o personagem é gaúcho, mas poderia ter nascido em qualquer lugar.
O personagem, metido a valente, caiu do barco no rio Guaíba e começou a se afogar.
Não sabia nadar, e ninguém o viu se debatendo na água.
Antes do derradeiro suspiro, o valente de meia-tigela ameaçou: ''Te cuida, Guaíba, senão te bebo todo!''
Michel Temer acabou como personagem de anedota na grande tragédia brasileira.
Mário Magalhães
Já era conhecida, na conversa mafiosa entre Michel Temer e Joesley Batista, a passagem sobre a dieta do empresário.
Mas ao ler hoje o trecho transcrito voltei a rir. As patifarias no Brasil às vezes são mais Molière do que Shakespeare _ou mais Dercy Gonçalves, como disse um médico chamado Mauricio.
Eis o diálogo, iniciado por Temer, nos termos do laudo do Instituto Nacional de Criminalística:
''Mas você tá bem de corpo, não é Joesley?''
''Tô bem. Deixa eu pegar (ininteligível)''.
Joesley conta que faz reeducação alimentar:
''Emagreci, tô bem''.
''Você emagreceu'', adula Temer.
''Emagreci.''
''Preciso fazer isso'', diz o marido de Marcela.
''É, eu … eu tô me alimentando bem'', prossegue o marido de Ticiana. ''Comendo mais saudável. Mas não é comendo pouco não. Tô comendo bastante. Mas coisa mais saudável''.
Temer: ''Entendi''.
Joesley: ''Menos, menos doce. Menos industrializado''.
O grotesco não é Joesley reduzir o consumo de comida industrializada. Ele é um dos donos das indústrias que produzem alimentos com as marcas Friboi, Vigor, Itambé, Leco, Seara, Faixa Azul, Maturatta.
Assim como fabricante de algemas não é obrigado a ser praticante de sexo sadomasô.
O risível é Joesley Batista se gabar por se sentir melhor ao evitar produtos que ele e seus sócios tentam vender para cada vez mais gente.