Blog do Mario Magalhaes

Questão de perspectiva (ou a reforma trabalhista)
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Mário Magalhães

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Maracanazo, 1950: também questão de perspectiva – Foto reprodução

 

Para os japoneses, ideogramas expressam palavras e ideias. Para mim, que não os compreendo, são arte.

Para um coreano, um prato de comida mexicana que abrasa a minha língua não passa de placebo desenxabido.

Para o Popeye, acostumado com a Olívia Palito, qualquer quadril modesto representa fartura.

Enquanto eu peço para a gurizada não falar tão alto, temendo importunar os passageiros que dormem no trem, um cidadão arrota como o Shrek, pois na sua terra longínqua o gesto de ogro não incomoda ninguém.

Um chama o outro de cagão, sinônimo de sortudo, e o outro pensa ter sido achincalhado como frouxo.

O turista lamenta o tempo ruim, o temporal que despenca impiedoso, e o morador do lugar agradece a piedade dos céus pelo tempo bom, o aguaceiro que mitiga as mazelas da seca.

As fotografias do atentado contra Ronald Reagan são grande momento da carreira de Sebastião Salgado, mas o documentário do filho sobre o pai fotógrafo ignora o episódio.

A legítima paella valenciana à mesa, o gole de vinho branco espanhol na boca e o Mediterrâneo no horizonte alimentam meu momento sereno e feliz. Dois dos quatro comensais tomam um comprimido de Lexotan antes da comilança.

Há quem celebra com soco no ar as mudanças na legislação que permitirão bagunçar as férias, alongar a jornada de trabalho e restringir o tempo de almoço. Muitos olham para as novidades como um goleiro desamparado que busca a bola no fundo da rede.

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Crivella insinuou falcatrua de ex-rival agora nomeado secretário no Rio
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Mário Magalhães

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Indio da Costa, durante a campanha – Foto Gustavo Serebrenick/Brazil Photo Press/Ag. O Globo

 

Se há palavra sagrada, não é a de Marcelo Crivella.

O prefeito eleito do Rio anunciou seu futuro secretariado.

O senador prometera que Garotinho não faria parte do governo.

Deveria se referir ao ex-governador Anthony Garotinho, porque a deputada Clarissa Garotinho, a despeito dos rolos recentes e antigos do pai, ocupará a pasta com o pomposo nome de Desenvolvimento, Emprego e Inovação.

Na campanha, Crivella avacalhara o adversário Indio da Costa.

Insinuou falcatruas do deputado em contrato de fornecimento de merenda escolar.

Pois agora o premia com a indicação para a Secretaria de Urbanismo, Infraestrutura e Habitação, responsável por muitas e muitas obras.

O blog havia esmiuçado em 1º de novembro as acusações e farpas trocadas entre Crivella e Indio.

Abaixo, republica o post.

E constata que o futuro prefeito desprestigia sua própria palavra.

* * *

No discurso da vitória, domingo [30 de outubro] em Bangu, Marcelo Crivella (PRB) cercou-se de aliados. Alguns estavam com o prefeito eleito do Rio desde o primeiro turno, como a deputada Clarissa Garotinho (PR) [foi para o PRB], que não costumava ser vista na campanha. Outros se tornaram parceiros no mata-mata derradeiro, como o candidato Carlos Roberto Osório (PSDB), eliminado na rodada inicial.

Um dos mais alegres na comemoração era o deputado Indio da Costa (PSD), que no começo de outubro colheu 9% dos votos válidos. No confronto final contra Marcelo Freixo (PSOL), Indio aderiu à campanha de Crivella, pediu voto na TV, empenhou-se. É cotado para integrar o secretariado do novo prefeito.

Se Crivella nomeá-lo, prestigiará um político contra quem semanas atrás fez insinuação de conduta imprópria como secretário municipal. Em um debate na Band, Crivella fustigou: ''Indio, na época em que você estava na administração pública havia uma musiquinha no Rio de Janeiro que dizia o seguinte: ''Ê, ê, ê, ê, ê, Indio quer merenda, se não der pau vai comer''. Cantou-a com a melodia da célebre marchinha ''Índio quer apito'' (para assistir ao ataque de Crivella, basta clicar na imagem no alto ou aqui).

O senador se referia a uma Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara Municipal que em 2006 investigou supostas irregularidades nos contratos de fornecimento de merenda para escolas mantidas pela prefeitura. A CPI da Merenda escrutinou contratos no valor de R$ 80 milhões celebrados quando Indio era o secretário de Administração. O relatório da CPI apontou ''omissão dos gestores da licitação''. Indio negou irregularidades. O inquérito foi arquivado.

Mesmo sem acusação do Ministério Público contra Indio da Costa, Crivella usou o caso da merenda para insinuar comportamento inadequado de Indio.

No mesmo debate, Crivella disse que o então oponente ''não leva em consideração o meu projeto de ajudar as famílias a terminarem suas casas porque ele mora na Vieira Souto [de frente para o mar de Ipanema]''.

A iniciativa do confronto virulento não foi de Crivella, que se defendeu atacando. Foi de Indio, que disparou frases como esta: ''Eu não sei quem quebraria a prefeitura primeiro: o bispo Crivella […] ou o Pedro Paulo [PMDB]''.

E falou ao eleitor: ''Se você não quer a Igreja Universal, com seus dogmas, mandando na escola do seu filho […]'', ''mandando em hospital público […]''.

Agora, Indio pode acabar secretário de Crivella.

(Publicado em 1º de novembro de 2016)

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Palavras malditas (17): elo de ligação
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Mário Magalhães

Máquina de escrever de meados dos anos 1960 – Reprodução “The New York Times''

 

Ao vivo, no meio do furdunço, o repórter de cabelo branco proclama na TV: fulano é o elo de ligação…

Tarimba não equivale a domínio do idioma, mas é possível que a balbúrdia tenha contribuído para o tropeço.

Elo de ligação é uma dessas calamidades que teimam em sobreviver, como a chama daquelas velas de aniversário que, por mais que sopremos, insiste em não se apagar.

Elo, esclarece o ''Michaelis'', significa ''união entre pessoas ou coisas; conexão, ligação''.

Se o elo liga, elo de ligação constitui pleonasmo.

Uma redundância semelhante a subir para cima ou o ébrio pinguço.

Dizem existir gramática que chancela elo de ligação com o propósito retórico de reforçar o caráter do elo.

Discordo. Reforça, isso sim, o mau gosto.

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Palavras malditas (16): bomba de efeito moral
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Mário Magalhães

Máquina de escrever de meados dos anos 1960 – Reprodução “The New York Times''

 

Imagine uma ''bomba de efeito moral'' acertando em cheio o seu cocuruto. Ou um olho.

O sangue e a dor seriam morais, metafóricos, alegóricos?

Ou físicos?

O invólucro da dita cuja costuma ser de plástico, mas machuca. Seus estilhaços cortam e ferem.

O propósito do estrondo é assustar e dispersar aglomerações.

O barulho pode desorientar as pessoas e afetar a audição.

Em seu formato mais tímido, a bomba provoca uma nuvem de pó ao explodir.

Esse ''talco'', no eufemismo dos propagandistas, às vezes irrita as mucosas do nariz, causa crises alérgicas, turva a visão e acelera a frequência cardíaca.

Que os fabricantes tratem seu produto como bomba ou granada de efeito moral até se entende.

Idem quem as arremessa.

Duro é ouvir jornalistas repetirem acriticamente a balela.

Quem já sentiu o estrago sabe que ele não é _somente_ moral.

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Eis as palavras malditas anteriores (clique em cima, se quiser ler):

1) emblemático;

2) instigante;

3) eu, particularmente;

4) circula com desenvoltura;

5) não resistiu;

6) um verdadeiro;

7) amigo pessoal;

8) vítima fatal;

9) figurinha carimbada;

10) evidência;

11) conferência de imprensa; coletiva de imprensa;

12) barbaramente torturado;

13) estrategista;

14) tantas vezes menor;

15) oficial.


Tudo é história (e presente): ‘O povo tá a fim da cabeça do Delfim’
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Mário Magalhães

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Michel Temer, Romero Jucá e Delfim Netto – Foto Fabio Braga/Folhapress

 

O nome de Wellington Moreira Franco, secretário com poderes de superministro, é mencionado 34 vezes no acordo de delação de Cláudio Melo Filho, ex-chefão da Odebrecht.

O de Michel Temer, 43.

O ex-ministro Geddel Vieira Lima caiu devido a maquinações para erguer um espigão em área de Salvador onde prédios excessivamente altos são vetados.

Michel Temer aparece no listão de Melo Filho como agenciador de R$ 10 milhões de propina da Odebrecht para o PMDB.

O senador Romero Jucá é o autor do enunciado ''estancar essa sangria''.

Temer materializa a Lei Jucá _noutras palavras, a impunidade.

O antigo executivo da Odebrecht qualificou o ministro Eliseu Padilha como ''arrecadador''.

De acordo com mensagem do deputado Eduardo Cunha, Temer arrecadou R$ 5 milhões do dono da construtora OAS.

Moreira Franco e Eliseu Padilha balançam, mas até agora não caíram.

Jucá, o ''Caju'' da relação da Odebrecht, caiu, mas para cima: virou líder do governo no Congresso.

Muso do impeachment que permitiu a Temer ser presidente, Cunha amarga uma temporada em cana.

E Temer vai gerenciando escândalos e rolos por meio do descarte de ministros. Geddel foi o sexto, em seis meses de administração.

O problema, para Temer e sobretudo para o Brasil, é que os ministros não são o principal problema.

Henrique Meirelles castiga com seus pacotes de perversidades os brasileiros mais pobres.

Mas quem autoriza essas maldades é Temer.

Moreira e Padilha foram alvejados pelas revelações da Lava Jato.

Quem os mantém é Temer, igualmente ferido.

Não é com a saída de ministros que o governo se cobrirá de legitimidade.

Não que não mereçam sair, mas Temer é presidente ilegítimo desde o nascedouro.

Pode trocar mil vezes o Ministério que não se tornará governante legítimo.

A pregação pelo afastamento de determinados ministros, como se a mudança pudesse conferir legitimidade a Michel Temer, evoca uma era distante.

Na primeira metade da década de 1980, Delfim Netto era ministro do derradeiro governo da ditadura.

Nas ruas, manifestantes se esgoelavam com a palavra de ordem ''Abaixo a ditadura'' (e variações, como uma importada da Argentina: ''Vai acabar/ Vai acabar/ A ditadura militar'').

Um grupo, contudo, não gritava pelo fim da ditadura. Preferia ''O povo tá a fim/ Da cabeça do Delfim''.

Titular do Planejamento, Delfim Netto simbolizava a desastrosa condução da economia no governo do ditador Figueiredo. As condições de vida definhavam.

Acontece que, mesmo que Delfim fosse para o olho da rua, a essência da ditadura não mudaria. Continuaria a ser o que era.

Noutra quadra histórica, hoje se passa algo semelhante: os ministros são consequência de decisões do presidente; ainda que um parta e outro chegue, o governo não superará seu pecado original, a ilegitimidade.

Em tempo: Delfim permaneceu no governo, e a ditadura terminou em 1985.

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Sabáticas: A descoberta do futebol
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Mário Magalhães

bola dente de leite

 

Conheço uma guria chamada Ana que anda encantada com o futebol. Na goleada do Brasil sobre o Chile, ouviu da irmã adolescente: “Ué, o Ronaldinho Gaúcho não tá jogando?”

A Ana elucidou: “Claro que não. Levou mais um cartão amarelo. Tá suspenso”. Ela tem quatro anos de idade.

O mundo para a Ana se divide entre os que vão para a Copa e os que não vão. Dia desses, turbinou seu jogo da memória de países. Com o jornal aberto, conferia se a nação estampada na carta estará na Alemanha. Em caso positivo, somava mais um ponto.

A mãe ajuda, pois a Ana tropeça nas letras. Encasquetou, certa noite: “Atlético não começa com a?” O pai confirmou. “E por que, na televisão, tem um c antes do a?” Descobriu o Clube Atlético Mineiro.

A Ana tem olho para tudo. Procura a foto do Kaká e fala que ele é bonito. Tudo bem, não faz mais do que repetir a Maria, a irmã de 15 anos.

Mas na transmissão de Bétis e Barça apareceu o Rijkaard em close, e a Ana indagou: “É o técnico do Barcelona?” Ela já entendeu que técnico é mais ou menos como o professor na escola. Então, suspirou: “Como ele é lindo. Não é, pai?”

Ao ver o retrato do Ramirez, contou: “Ei, o El Tigre pintou o cabelo de roxo”. Será verdade? Antes do segundo jogo do paraguaio pelo novo time, cantou músicas que criou em homenagem ao atacante. Logo o cara se contundiu, e a Ana murchou.

Sabe-se lá por que, torce pelo Flamengo. Deve ser coisa da mãe e da irmã. Diz que é também seleção brasileira e Ceará. Impressionada com o apitador gatuno, a cada falta implora: “Expulsa! Expulsa!” Se não sai o vermelho, grita: “Juiz ladrão, juiz do mensalão!”

Imagino que não tenha ideia do que se trata. Apropriou-se dos versinhos lançados pelo pai de um amiguinho tricolor. Preocupa-se: “Será que o juiz vai nos prejudicar de novo?” O verbo é esse, prejudicar. Ignora-se como o aprendeu.

Adora uma polêmica. Pulando sobre a cama, proclamou: “Não foi falta, não foi falta!” No lance, um jogador do Grêmio e um do Avaí foram expulsos. Ficou feliz quando o avô ligou para dizer a mesma coisa.

A Ana acorda cedo e corre para ver os resultados no jornal. É que ela adormece antes do fim das partidas noturnas. Quer saber por que tantos jogadores raspam o cabelo. Acha o Parreira parecido com o Abel.

Está chateada com o Diego, porque o goleiro rubro-negro “deixa passar todas as bolas”. Pergunta se o Zico vai jogar domingo contra o São Paulo. Quando o Flamengo perde mais uma, consola: “Não fica triste, que o importante é que o Brasil já tá na Copa”.

Anteontem, esqueceu por um instante a seleção: “Quando não existe nenhuma pessoa, como é que nasce a primeira pessoa?” O pai ficou de pensar.

Ele se enternece com as descobertas da Ana e desconfia que, a despeito das bandalheiras de muita gente, ninguém vai acabar com a paixão pelo futebol.

(Publicado originalmente na Folha de S. Paulo, 14 de outubro de 2005)

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Viúva condenada: a história do ganhador da Mega-Sena que acabou assassinado
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Mário Magalhães

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Renê Senna e Adriana Almeida, união que resultou em morte – Foto reprodução

 

Adriana Almeida, célebre na crônica policial como ''viúva da Mega-Sena'', foi condenada ontem a vinte anos de prisão por mandar matar o marido, Renê Senna.

O tribunal do júri concluiu que ela estava mancomunada com antigos seguranças de Renê que o assassinaram no comecinho de 2007.

Naquele ano, contei na ''Folha'' um pouco da história do ex-lavrador que ficou rico e como a rima de Senna com Mega-Sena precipitou sua morte.

Abaixo, o blog reproduz a reportagem.

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*

Antes de ficar rico, Renê vivia de favor

O lavrador Renê Senna parecia tatear o fundo do poço no começo de 2002, ano em que completaria meio século de vida. Morava de favor na casa alugada pela irmã Ângela no Boqueirão, localidade de Rio Bonito (RJ), a pouco mais de 70 km do Rio de Janeiro.

Renê, Ângela e os três filhos dela sobreviviam do benefício de aposentado do nonagenário Estelito Senna. O ancião recebia também pensão de viúvo. No total, lembra a caçula Ângela, dois salários mínimos.

Ela engordou o orçamento trabalhando como empregada doméstica, mas largou o serviço para cuidar do pai provedor. Cego, senil e insone, Estelito comia com as mãos.

Renê não contribuía com um só centavo. A ferida no dedão do seu pé esquerdo acumulara tamanha sujeira que bichos a encobriam. Ele não desconfiava que o diabetes sabotava a cicatrização nem sabia que raio de doença era essa.

Às 7h já não o encontravam. A irmã o flagrava no bar para o desjejum resumido a cachaça. O tio virou diversão dos sobrinhos, que trocavam por água a aguardente das garrafas. ''Vou pegar os filhos da mãe'', era a reação que a família não esquece.

Como o poço era mais fundo, os dias no Boqueirão permaneceram como recordações amenas nos três anos seguintes, quando Renê Senna estava longe de lá. As duas pernas foram consumidas pedaço por pedaço até a amputação completa.

Sua sorte mudou ao apostar R$ 1,50 nas dezenas 03, 21, 25, 37, 54 e 58 em julho de 2005. Ele faturou sozinho os R$ 51,9 milhões da Mega-Sena acumulada _corrigidos, R$ 54 milhões.

Por um ano e meio conheceu a riqueza _material. Teve fazenda de R$ 9 milhões e mulher loira e formosa. O sonho acabou em 7 de janeiro, quando um pistoleiro descarregou a pistola calibre 380 no senhor sem pernas que bebericava cerveja em um botequim.

A Justiça mandou prender a viúva Adriana Almeida, 29, e outras cinco pessoas. A polícia a aponta como suspeita de armar a morte do marido, de olho na herança, e investiga a breve era de bonança, intriga e cobiça em torno do milionário.

Antes, Renê fora um brasileiro como tantos. ''Trabalhava de dia para ter o que comer à noite'', diz o amigo Paulo Corrêa de Castro.

Roça

Renê nasceu numa casa de estuque em Tomascar, recanto rural recortado por um rio que divide os municípios de Tanguá e Rio Bonito. Nela se amontoavam em três quartos os pais, roceiros analfabetos, e os 11 filhos. O futuro fazendeiro, dono de quase mil cabeças de gado, na infância montava burro para buscar e distribuir comida ao lado do pai tropeiro.

O verde exuberante emoldurava o cenário de pobreza. Renê frequentou a escola, aprendeu a ler, mas os pais o queriam na lida. Ele fugia para a cachoeira do rio Tomascar. Logo abandonou as aulas.

Com 11 anos, seu tempo era todo para a lavoura. Plantava aipim, milho, quiabo, maxixe e laranja, o que o livrou da fome. Acordava às 6h, uma hora depois empunhava a enxada, largava às 17h e dormia às 21h.

Foi assim até a vida adulta. Só partiu depois dos 30 anos. Seu horizonte não ia além das montanhas vizinhas _Tomascar é um vale.

Nunca semeou em propriedade da família, que não tinha nem quintal; só para os outros. Como era bom no manejo do tambor, uma peça para torrar farinha, engenhos o contratavam. Desossou boi em açougue.

Na juventude, sem eletricidade, não viu TV. Bom defensor nas peladas, torcia pelo Fluminense. Seus olhos verdes faziam algum sucesso no forró, mas os contemporâneos coincidem: não era um sedutor. Conforme a irmã Jucimar, a primeira mulher de Renê, Malvina, foi também a primeira namorada.

Cova 701

A existência corria tão devagar que o companheiro de roça Paulo Corrêa de Castro considera agitado o cemitério onde hoje é coveiro, com um enterro por mês. Finda a labuta, a rotina deles se repetia: temperavam com caninha a prosa do entardecer.

O alcoolismo corroeu o casamento de Renê e Malvina, confirmam mais de dez testemunhas. A união fez com que ele rompesse o cordão umbilical com sua terra. Uma floricultura de Niterói, famosa pelas orquídeas, empregou-o.

O casal teve a filha Renata e outro bebê, que nasceu com problemas e morreu. Ao contrário do que sustenta a viúva presa _que Renê deixou Malvina ao surpreendê-la com outro_, a mulher o teria largado devido à bebida.

Sozinho, perto dos 50 anos, Renê tornou-se vendedor à margem de rodovia. Regressou à roça. Num sítio, deixou cair sobre o pé o mourão, pedaço de madeira que sustenta a cerca de arame. A ferida no dedo não cicatrizava, e ele se abrigou com a irmã Ângela. Em seguida outra irmã, Miriam, o acolheu. Depois foi Adinéia, a irmã que morava de graça numa casinha da escola pública de Tanguá onde era merendeira.

Renê chegou sem o dedo. Amputaram-lhe metade do pé. Ainda em 2002, a perna. Devorava gordura demais, ignorando os conselhos médicos ao diabético que ele já sabia ser.

De muletas, escondia-se no Flavio's Bar, em frente, para tomar meio litro de cachaça. Em 2003, foi-se a outra perna, e Renê se isolou. Aposentou-se pelo INSS e se transformou no homem triste que nunca fora. Caso policial ao morrer, ele era então problema social.

Ao enriquecer, recompensaria os parentes que o ampararam na desgraça. Quase todos os irmãos ganharam boas casas e outros presentes. A filha, uma residência de R$ 300 mil e um carro zero. Uma lavradora de Tomascar, o tanque para lavar roupa.

Foi um sobrinho que levou às Loterias Tanguá o jogo simples do tio. Renê fizera promessa a Nossa Senhora de Nazaré. Certa manhã, os funcionários da escola se surpreenderam: Adinéia, os filhos e o irmão haviam sumido para nunca mais voltar. Meses depois, o sorteado estouraria 20 caixas de fogos para a santa. Promessa cumprida.

Os Senna se recusaram a enterrar o irmão no cemitério da elite de Rio Bonito, no qual a viúva comprou um jazigo por R$ 5.000,00.

Pela taxa de R$ 105,29, Renê descansou sobre o corpo do pai, que já estava sobre o da mãe no cemitério de Rio Seco. O velho camarada o enterrou. Castro, o coveiro, já arriscou três vezes o número da cova, 701, no jogo do bicho. Até agora, continua tão pobre como um dia foi o seu amigo Renê.

(Folha de S. Paulo, 11 de fevereiro de 2007)


Tudo é história: de 1964 a 2016, políticos-morcegos atacam de madrugada
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Mário Magalhães

blog - bela lugosi

Bela Lugosi (1882-1956), célebre intérprete do Drácula: os dedos lembram os de alguém?

 

É raro eu me lembrar dos sonhos da madrugada. Otimista patológico e ingênuo irrecuperável, sonho de dia, acordado. Sei que ontem à noite vi uma comédia romântica com a Salma Hayek, o Pierce Brosnan e a Jessica Alba. Antes de dormir, pouco depois da meia-noite, tive uma recaída e tomei um todinho. Pensei no dom Paulo, cabra de coragem, que descansou. Talvez ele tenha assistido de algum lugar aos fariseus, que o demonizaram durante a ditadura, louvaminhando-o na cerimônia do adeus. Sei lá o que eu sonhava quando faltavam uns minutinhos para as três da manhã.

A essa hora terminou a sessão da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania. Os deputados deram sinal verde ao projeto de mudança na Previdência que desata pesadelos nos brasileiros mais pobres. Milhões deles teriam direito à aposentadoria integral só depois de esticar as canelas. E olha que para boa parte o benefício mesmo a 100% não passa de mixaria, mas é indispensável para sobreviver. O nome da comissão confere mais uma medalha ao país campeão em hipocrisia.

Noutra madrugada recente de 2016, pelas quatro horas, já haviam aprontado na Câmara. Fulminaram um projeto de combate à corrupção com espírito de dobermann. Virou bóxer. A brabeza desta adorável raça alemã, mal-encarada, é aparente. O bóxer costuma ser dócil e bom companheiro de crianças, embora alguns estimulem a agressividade dos cães e os adestrem para guarda. O bóxer do pacote anticorrupção desfigurado nem assustar assusta. Castraram-no.

Não é de hoje que Brasília é habitat de políticos-morcegos. Não do Homem-Morcego, o Batman, do bem. Como vampiros, sugam o sangue até arrotar. O sangue dos cidadãos e da democracia. Na calada da noite, entre as três e as quatro horas de 2 de abril de 1964, os presidentes da Câmara, do Senado e do Supremo voaram pelo Palácio do Planalto. Os golpistas nomearam um deles, o capo deputado, para presidir a República, sem ter recebido um mísero voto popular. Ao amanhecer, haviam parido a ditadura.

Dali a meses, em julho, os morcegos esperaram as cinco e meia da manhã para atacar. Em assembleia conjunta de senadores e deputados, prorrogaram o mandato do ditador de plantão. Como lhes faltava um voto, enrolaram até convencer, imagina como, um hesitante que se tornou cúmplice. O Congresso dessangrou ainda mais a nação.

Em Brasília, recomenda-se cuidado com os morcegos-vampiros ou políticos-morcegos. Não à toa lá vive em certo palácio um tipo que já foi chamado de mordomo de filme de terror. Às vezes, por trás do mordomo se esconde o próprio conde Drácula.

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Temer, R$ 10 milhões: se fosse Dilma, cairia; até aqui, prevalece Lei Jucá
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Mário Magalhães

BRASILIA, DF, 19-07-2016, O presidente em exercicio Michel Temer durante uma reuniao para discutir medidas de " melhoria do ambiente de negócios ", como a liberacao de venda de terras a estrangeiros e a securitizacao da divida ativa da Uniao, e tambem a possibilidade de novo corte no Orcamento. ( Foto: Pedro Ladeira/Folhapress, PODER)

Até aqui, PMDB conseguiu estancar a sangria e salvar Temer – Foto Pedro Ladeira/Folhapress

 

Primeiro, um antigo executivo da Odebrecht, Cláudio Melo Filho, contou que Michel Temer agenciou o pagamento de R$ 10 milhões para o PMDB.

Agora, é um dos donos da empreiteira, Marcelo Odebrecht, quem confirma o acerto, que teria sido sacramentado em 2014 no Palácio do Jaburu.

Temer já havia aparecido nas histórias de trambiques de outra construtora, a OAS. De acordo com Rodrigo Janot, procurador-geral da República, o à época deputado ''Eduardo Cunha cobrou Leo Pinheiro [proprietário da OAS] por ter pago, de uma vez, para Michel Temer a quantia de R$ 5 milhões, tendo adiado os compromissos com a turma''.

Tem mais. Sérgio Machado, ex-presidente da Transpetro, disse que Temer retomou o comando do PMDB em 2014 para administrar a partilha de R$ 40 milhões encaminhados por fora pelo PT (depois o PT alega não saber os motivos de sua vergonha e de sua ruína).

Machado revelou que Temer negociou com ele em 2012 o repasse de R$ 1,5 milhão, oriundo de propina, para a campanha do então peemedebista Gabriel Chalita.

Parece notícia de outro século: Dilma Rousseff foi deposta em maio de 2016 por ter cometido ditas ''pedaladas fiscais''. Ninguém a acusou de ter embolsado um só centavo de origem ilícita.

Com metade das denúncias que recaem sobre Temer, Dilma teria caído muito antes.

Até agora prevalece a Lei Jucá.

O hoje líder do governo no Congresso sentenciou, em conversa gravada por Sérgio Machado: ''Tem que mudar o governo pra poder estancar essa sangria''.

A sangria, todo mundo entendeu, era a investigação da Lava Jato.

Machado: ''É um acordo, botar o Michel [Temer], num grande acordo nacional''.

Jucá: ''Com Supremo, com tudo''.

A síntese da sangria estancada é Michel Temer.

Enquanto o missivista ocupar a Presidência, para a qual não recebeu o voto popular, a Lei Jucá permanecerá em vigor.

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