Acordando com tiros
Mário Magalhães
Praça no morro Dona Marta, em 2013, antes da volta dos tiroteios – Foto Daniel Marenco/Folhapress
Faz seis dias que eu não ouço o barulho de tiros. É pouco, para quem ficou ao menos uns sete anos longe deles. E muito, considerando a insistência com que voltaram a atormentar.
Quando me mudei para o bairro, quase 16 anos atrás, o estampido das balas era mais frequente. Só perdia para uma sinfonia que varava a madrugada. Depois que o caminhão do lixo passava à meia-noite, pontual como um ônibus alemão, ressoavam os alarmes dos carros estacionados na rua. Um a um, tinham os aparelhos de som roubados. Se eu quisesse comprar um alarme, teria um catálogo completo para escutar e escolher.
Assim foi até 2008, com a instalação, bem pertinho, da primeira Unidade de Polícia Pacificadora. Calaram os disparos de armas de fogo, e a sinfonia noturna silenciou. Numa manhã, sobreveio o susto: um helicóptero voou rente ao prédio, com homens uniformizados empunhando fuzis. Logo esclareceram: eram atores filmando Tropa de Elite 2.
Nas cercanias, chegaram novos bares, livrarias, lojas, quiosques, restaurantes e, na praça, artistas. Alguém escreveu que Botafogo se tornara o Soho da cidade, como se algum lugar do Rio carecesse de ser comparado a outro para ser reconhecido. Hoje os assaltos assustam também nas horas da boemia.
Os tiroteios no Dona Marta reapareceram há mais de um ano. Por muito tempo os tiros no morro haviam se limitado aos de tinta, nas brincadeiras de paintball. A UPP pioneira malogrou, como o projeto inteiro. Supuseram que a violência decorresse somente do modelo de segurança pública, mas é sobretudo consequência de mazelas sociais.
Quem mais sofre são os moradores do Dona Marta. Noutras comunidades, a aflição é ainda maior, com a contagem cotidiana de cadáveres. Num sábado recente, apontaram para uma loura num carrão e sussurraram: é a mulher do dono do morro. Isto é, o chefete do tráfico local (os chefões de verdade moram de frente para o mar).
A venda de drogas nunca foi interrompida ali. O que havia sumido eram os traficantes armados. Falam que a refrega da quarta-feira principiou com o ataque de um bando à base da UPP. Os relatos variam sobre o horário. Eu não tenho dúvida. Ao ouvir os pipocos, olhei no relógio: sete e vinte da manhã. Já estava de pé. Mas os tiros devem ter acordado muita gente.