Blog do Mario Magalhaes

Sabáticas: Compatível com a idade

Mário Magalhães

 

capela vale

 

Mês sim, outro também, estoura escândalo evidenciando que a privacidade na internet é inexistente ou relativa. É mesmo o fim da picada, mas não entendo o espanto. Faz tempo que todo mundo sabe disso.

Não tem um dia em que não chegue e-mail de remetente desconhecido apregoando milagres de produtos de saúde e de loções de beleza para cavalheiros da minha idade. Pelo menos isso, a idade, eles descobriram. Às vezes acertam, estou necessitado. Noutras, a oferta de fortificantes ofende com o menosprezo, se é que me entendem.

Como se eu fosse um cabra desfrutável, o Facebook não cansa de estimular encontros com adoráveis cinquentonas, minha nova turma. Cada uma mais formosa que a outra. A rede tudo rastreia e alerta: você não é mais criança.

O Chico Anysio catalogava os vírus da velhice se insinuando. Devo ser um coroa precoce, pois já havia sido contaminado por dois quando a Legião Urbana ainda era futuro. O primeiro é a paranoia de, depois de sair de casa, voltar para ver se o fogão foi desligado (nunca encontrei o forno aceso). O segundo é a leitura dos obituários nos jornais, porém esse hábito ou mania goza de álibi, a obrigação de repórter.

Talvez o Chico tenha escrito sobre as mudanças na vida dos descasados, ignoro. Mas não esqueço as novidades inventariadas pelo Carlos Eduardo Novaes. Um dos deleites que o cronista observou na solteirice recuperada é poder deixar, em qualquer emergência, a porta do banheiro aberta sem ninguém bronquear.

O Chico Anysio já partiu, o Carlos Eduardo é setentão, e eu tirei a carteirinha do clube dos cinquenta. Daí que, após cinco irresponsáveis anos sem visitar o consultório médico, resolvi passar por um check-up. No procedimento mais assustador, uma alma caridosa, fiel ao protocolo, me injetou um sossega-leão.

Quem procura acha, certo? Num montão de resultados, a dieta farta de gorduras e prazeres apresentou a fatura. Por sorte, nada grave. Um ou dois anos mais velho do que eu, o doutor gente boa anotou com placidez de monge os dados de cada exame. Receitou uns remédios e sorriu. Falei:

“Esse nível no sangue está alto”.

“Compatível com a idade”, o médico esclareceu.

“Mas a ressonância parece estranha”, insisti.

“Compatível com a idade.”

Não desisti: “Vi na internet que tal desvio nos índices pode indicar doença iminente”.

“Compatível com a idade”, ele reiterou, sem perder a fleuma.

Saí feliz da vida. Mas me imaginei daqui a meio século, agonizando na cama do hospital, com alguém de roupa branca olhando para mim e dizendo sem emoção:

“Compatível com a idade”.

(MM, publicado originalmente na revista Azul Magazine, dezembro de 2015)

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