Blog do Mario Magalhaes

História: entrevista de Jarbas Passarinho em defesa de Ustra, o torturador

Mário Magalhães

blog - passarinho e costa e silva

Nos anos 1960, o ministro Passarinho é condecorado pelo ditador Costa e Silva (à dir.) – Reprodução

 

Morto neste domingo aos 96 anos, Jarbas Passarinho foi de fato personagem de envergadura histórica. No dia 13 de dezembro de 1968, ao endossar o Ato Institucional número 5, o coronel proclamou na sessão do Conselho de Segurança Nacional: ''Às favas, senhor presidente, neste momento, todos os escrúpulos de consciência''. O presidente era o marechal Arthur da Costa e Silva (1899-1969). Passarinho servia como ministro do Trabalho e Previdência Social.

Dali a dezessete dias, à mesma mesa do Palácio Laranjeiras, o ditador e seu ministro e camarada do Exército aprovaram, com os demais integrantes do conselho, a cassação por dez anos dos direitos políticos de Carlos Lacerda (1914-1977). ''Eu, com a maior tranquilidade, participo desse ato'', disse Passarinho. Em 1964, no alvorecer da ditadura, ele e Lacerda haviam sido governadores e aliados. Na Guanabara, Lacerda se elegera pelo voto popular, anos antes da deposição do presidente João Goulart. Passarinho se tornara governador biônico do Pará por força das armas do regime nascente.

O AI-5 asfixiou ainda mais as liberdades já sufocadas. Michel Temer declarou ontem que Passarinho foi um ''grande brasileiro''.

Até onde a memória alcança, conversei apenas uma vez com o antigo ministro. Entrevistei-o por telefone em 2006. A entrevista, reproduzida abaixo, foi publicada pela ''Folha'' em 24 de novembro daquele ano.

O ex-prócer da ditadura saiu em defesa do então coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra (1932-2015). Uma família acionara Ustra na Justiça, pedindo que o oficial fosse declarado torturador (leia aqui).

Mais tarde, decisão judicial reconheceu Ustra como o que ele foi, torturador.

Eis a entrevista de 2006:

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Ação contra coronel é imitação da Argentina, afirma Passarinho

Com artigos na imprensa e discurso em ato público, o coronel reformado do Exército Jarbas Passarinho, 86, é apoiador destacado de um colega acusado de tortura durante o regime militar (1964-85), o coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra.

Uma família de cinco pessoas aponta Ustra como autor de tortura física e psicológica em 1972 e 73, quando o militar dirigia em São Paulo a unidade local do Doi (Destacamento de Operações de Informações).

Passarinho era o líder do governo no Senado quando a Lei de Anistia (1979) entrou em vigor. Em 1968, ministro do Trabalho, foi um dos signatários do Ato Institucional número 5, que endureceu o regime.

Em entrevista telefônica, o coronel disse que a ação visa repetir o que houve recentemente na Argentina, com a revogação das leis de anistia locais. Para Passarinho, a Justiça se sobrepõe à lei brasileira ao permitir o prosseguimento do processo contra Ustra.

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O que o leva a apoiar Ustra?
JARBAS PASSARINHO –
Ao ler o primeiro livro dele [''Rompendo o Silêncio'', 1987], fiquei impressionado com a convicção de que ele não tinha praticado tortura. Tive um caso no Ministério da Educação: uma moça foi torturada, levei o caso ao presidente Médici [1969-74], que tomou providências imediatas. Foi o que me fez defender a ideia de que a tortura não era, como nos países totalitários, institucional. Era episódica.

O senhor, como Ustra, entende que o processo põe em questão a Lei de Anistia.
PASSARINHO –
Também. No Exército, em curso de tática, a gente recebe uma missão. Ao analisá-la você verifica que há uma missão deduzida dentro daquela. A missão deduzida [do processo contra Ustra] é tentar fazer, ou imitar, o que o [o atual presidente Néstor] Kirchner fez na Argentina. A obediência devida só foi modificada no tribunal de Nuremberg [após a Segunda Guerra]. Os regulamentos militares dizem que o comandante é o único responsável por tudo na sua unidade. E Ustra, jovem major, recebeu uma missão.

Os ex-ditadores Jorge Rafael Videla (Argentina), Juan María Bordaberry (Uruguai) e Augusto Pinochet (Chile) têm enfrentado processos e prisões por crimes contra os direitos humanos. O que significa esse fenômeno para o Cone Sul?
PASSARINHO –
Em primeiro lugar tem que fazer uma diferença de casos. No Brasil, nunca se comparou o país com a repressão argentina, com a repressão chilena. São coisas completamente diferentes. Talvez a história de ''sangre caliente'' dos espanhóis responda por um pouco disso. Segundo você verifica que os nossos cinco generais [presidentes]… O Castelo foi o primeiro que reagiu contra a tortura. Os outros já morreram. Você não pode pensar que pode acontecer a mesma coisa que aconteceu com Bordaberry e Videla.

O juiz Gustavo Santini Teodoro, da 23ª Vara Cível de São Paulo, não aceitou o argumento da defesa de Ustra, segundo a qual o processo não poderia prosseguir devido à Lei de Anistia.
PASSARINHO –
O coronel não poderia sofrer mais qualquer tipo de punição penal. Tanto que ele está sendo processado numa área civil. Eles querem só caracterizá-lo como sendo o exemplo da tortura no regime.

O juiz cita na decisão que, para a ONU, crimes contra os direitos humanos são imprescritíveis.
PASSARINHO –
Isso é uma forma de tentar acabar com a Lei de Anistia. Será que não houve os crimes do outro lado? O juiz está se sobrepondo à Lei de Anistia. Foi uma anistia mútua. É preciso reconciliação. Para reconciliar, é preciso esquecer.

O Projeto Brasil: Nunca Mais estimou em mais de 40 os opositores mortos no Doi paulista na gestão de Ustra, além de mais de 500 denúncias de tortura.
PASSARINHO –
Não tenho elementos para julgar, mas tenho elementos para dizer que, do lado de cá, foram 109 mortos.

A família Almeida-Teles [que processa o coronel], a atriz Bete Mendes e muitas outras pessoas afirmam ter sido torturadas pessoalmente por Ustra.
PASSARINHO –
No movimento de 64, o chefe da 2ª Seção [Informações, do Exército] apreendeu uns documentos. Um era de aulas de capacitação do Partido Comunista. Outro era ''Se Fores Preso, Camarada''. Dizia que ele [o preso] devia cuspir na cara, provocar a reação, e dizer a vida inteira que foi torturado. E isso existe com os advogados. Você vê o cara confessando na TV e 15 dias depois dizendo ao juiz que foi torturado.

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