Em congresso de brasilianistas nos EUA, Marcelo Paixão condena impeachment
Mário Magalhães
Em conferência na abertura do 13º Congresso da Brazilian Studies Association, o economista Marcelo Paixão condenou ontem a tentativa de impeachment da presidente Dilma Rousseff.
Antigo docente do Instituto de Economia da UFRJ, o carioca Paixão é um dos maiores especialistas em desigualdade no Brasil, sobretudo a racial. Hoje é professor associado da Universidade do Texas, em Austin.
Recusando o maniqueísmo segundo o qual só pode se opor ao afastamento da presidente quem aplaude o seu governo, Paixão criticou Dilma e o PT: ''A atual governante do Brasil, desde o primeiro ano do seu mandato, vem fazendo um péssimo governo''.
O economista se referiu ao ''país que jamais conseguiu transformar os valores da igualdade, da democracia e da dignidade humana em fundamentais''.
Malhou a corrupção: ''A champanhe aberta pelo canalha corrupto de hoje é o professor mal pago da escola pública, a interminável fila do SUS, a formação de um grupo de extermínio composto por policiais e bombeiros, amanhã''.
A desaprovação da administração Dilma não resulta em endosso à sua deposição: ''O atual processo de impeachment da presidenta eleita em 2014 apresenta graves ameaças à democracia no Brasil''.
O pretexto para afastá-la não se sustenta, afirma o economista: ''Mesmo o caso das chamadas pedaladas fiscais se mostra suficientemente pleno de contraditórios, impedindo que haja justificativa, e mesmo legitimidade, para o impedimento da presidenta''.
Paixão apontou motivações dos oposicionistas pró-impeachment: ''A elite política brasileira, se vendo globalmente ameaçada pelas investigações que vêm ocorrendo, prepara neste momento um acordo palaciano para impedir a presidenta''.
Sobre os protestos contra Dilma: ''As atuais manifestações que se voltam contra o mandato da presidenta da República têm como cara pública a moralidade. Mas a análise do conteúdo da fala dos seus participantes sugere que como motor dinâmico existe a busca de uma volta ao passado no qual as hierarquias sociais e raciais se mantinham não questionadas''.
Resumiu: ''A razão que me leva a ser contra o impeachment da presidenta da República diz respeito exatamente ao título desta mesa de debates, o futuro do país. As atuais mudanças que a sociedade brasileira experimentou foram modestas, parcas. Mas ainda assim enojaram profundamente as camadas sociais mais abastadas''.
O congresso da Brasa prossegue até amanhã, na Universidade Brown. A entidade reúne mil associados que estudam temas brasileiros. São acadêmicos dos Estados Unidos, da Europa e da América Latina, incluindo o Brasil.
O blog reproduz abaixo a íntegra do discurso de Marcelo Paixão.
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Futuro do Brasil: começo, meio e fim
Por Marcelo Paixão, Professor Associado da Universidade do Texas, Austin
Prezados membros da Brazilian Studies Association (BRASA),
Inicialmente, agradeço o convite para participar da mesa de abertura do 13o Encontro desta importante associação e que tem o sugestivo nome de O Futuro do Brasil. Agradecimentos especiais faço aos Professores James Green, da Brown University, Antony Pereira, Presidente da BRASA, e demais colegas, Professores Angela Paiva e Vinícius Mariano, que me acompanham nesta mesa de abertura.
O Professor James, quando do convite a nós enviado, solicitou que pensássemos grande, ou seja, para além da conjuntura. Infelizmente os tempos atuais no Brasil estão, sem trocadilho, em brasa. Como então conciliar a necessidade de pensarmos nosso país em termos de épocas e continentes, mas ao mesmo tempo sem deixar de lado as premências de nossa abrasiva conjuntura atual?
Por alguma coincidência, hoje é dia 31 de Março. Esta data nos exige a lembrança de que há 52 anos, em 1º de abril de 1964, o país sofria um golpe de Estado. Este processo não apenas nos legou 21 anos de ditadura militar e inestimáveis perdas de centenas de vidas humanas vitimadas pela morte física, pelo exílio e pela tortura. O legado daquele período nos marca terrivelmente até hoje através de um país ainda caracterizado pelos seus extremados abismos sociais e raciais. Esses abismos estão diretamente associados a um tipo de visão de país que jamais conseguiu transformar os valores da igualdade, da democracia e da dignidade humana em fundamentais.
Sou filho de uma geração que contribuiu para enterrar o regime autoritário no país. Passadas algumas décadas desde então, paulatinamente fui me convencendo de que esta foi a nossa obra geracional maior.
Lula e o PT
O PT, ainda na década de 1990, em nome de um projeto de poder que parecia cada vez mais próximo, veio abrindo mão de seus valores fundamentais. O arranjo de forças vibrante que nos legara práticas alternativas, tanto no interior dos movimentos sociais como na gestão de algumas prefeituras, veio sendo substituído por um crônico processo burocratizante. Processos eleitorais, organizados desde o clamor apaixonado das bases, passou a ser visto como um penduricalho dispensável, sendo substituídos por campanhas milionárias, palanques hollywoodianos e ilusões de marketing.
Lord Acton dizia que todo poder corrompe. Lula, você e seu partido devem sérias explicações sobre o rumo que tomaram. Gonzaguinha, saudoso, já nos cantara isto a muito tempo. É, a gente não tem cara de panaca/ A gente não tem jeito de babaca. Vocês, com vosso exacerbado apetite por cargos, casas luxuosas e DAS, expuseram à desmoralização milhões de honestos e abnegados ativistas que um dia acreditaram em vocês.
Neste momento não bastam mais palavras autocríticas maquiadas pela sapiência dos marqueteiros. Não bastam mais frases evasivas, ilusórias ou diversionistas em relação aos problemas que o país vive atualmente. Sou de uma geração que aprendeu a deplorar o maquiavelismo que acredita que o poder vale pelo poder. Que as ideias e utopias são meros caprichos de adolescentes e românticos. Ou a esquerda brasileira (e isto vale para todos os grupamentos, não apenas para os que estão no poder) altera radicalmente seus métodos, práticas, modo de funcionamento e estratégia política, ou simplesmente estará se condenando ao desaparecimento. Mas isto não é nem o pior desfecho. Atualmente, está colocada em questão a democracia no próprio país.
Amanhã é dia 1o de Abril, ao menos no Brasil, Dia da Mentira. E do golpe. O fato ocorreu há mais de cinco décadas, mas o barulho das tropas que instalaram a ditadura ainda se faz ouvir em nossas ruas.
Poder Judiciário e afrodescendentes
Não sou advogado e tampouco possuo conhecimentos jurídicos suficientemente amplos para avaliar cada passo que veio sendo dado pelos tribunais brasileiros para debelar a corrupção no país. Ademais, tenho meus motivos para sérias ressalvas em relação ao Poder Judiciário brasileiro. Um razoável exemplo. Os afrodescendentes perfazem 51% da população, mas cerca de 66% dos encarcerados. Os índices de homicídios de homens negros é mais que o dobro que o dos brancos e o percentual de elucidação e punição dos crimes desta natureza não passam de 5% em todo o país. Tenho parcos motivos, no limiar do quase nenhum, para admirar o trabalho realizado por ministros, desembargadores, juízes, delegados e afins no Brasil. De qualquer forma, tal como todo brasileiro, acompanho atentamente o que vem sendo realizado nos marcos da Operação Lava Jato. E não vejo motivos para negar a importância de suas ações.
Quem mais sofre com o desvio de recursos públicos de sua efetiva destinação são os pobres, especialmente os afrodescendentes. Como muitos outros planos da vida nacional, fica praticamente despercebido o fato de que os distintos doutores envolvidos nesta razia dos cofres público são em sua esmagadora maioria brancos. Gente fina. Finíssima. A indústria dos recursos judiciais dando plena garantia à impunidade aos que têm dinheiro para contratar grandes consultórios de advocacia e os elevadíssimos custos de processos judiciais. A champanhe aberta pelo canalha corrupto de hoje é o professor mal pago da escola pública, a interminável fila do SUS, a formação de um grupo de extermínio composto por policiais e bombeiros, amanhã.
Uma vez a Lava Jato tendo se iniciado, como brasileiro, o que posso esperar é que ela vá até o fim. Que se elucide o que tiver de ser elucidado e se puna quem tiver cometido malversação dos fundos públicos. Mas o fato é que esta operação vem se desdobrando para o plano político. E, como tal, seus desdobramentos permitem a participação de qualquer cidadão brasileiro, independentemente de suas habilidades no mundo da jurisprudência.
Governo Dilma
A atual governante do Brasil, desde o primeiro ano do seu mandato, vem fazendo um péssimo governo. Dilma não soube administrar o país quando tinha altos níveis de popularidade, assim como não vem sabendo administrar atualmente, quando a economia brasileira se deteriorou. Sua política de controle da inflação através do represamento dos preços de combustíveis e derivados do petróleo se mostrou desastrada e desastrosa. Sua política industrial baseada em ações seletivas para setores eleitos do empresariado brasileiro é injustificável e incompreensível. A forma pela qual tentou responder à crise econômica, através do sacrifício dos mais pobres é reprovável. À luz dos recentes acontecimentos que se revelaram pela Lava Jato, sua capacidade de controlar e coordenar seus ministros e pessoas de confiança é francamente pequena.
Dilma Vana Rousseff: seu governo do ponto de vista político, gerencial e administrativo é um verdadeiro fracasso!
Tudo isto é verdade. Mas o atual processo de impeachment da presidenta eleita em 2014 apresenta graves ameaças à democracia no Brasil.
Há um primeiro fato, talvez de natureza jurídica, que me leva a fundamentar esta conclusão. Como já disse. Não sou detetive ou investigador policial. Mas até o momento não há provas incontestáveis de que a atual presidente tenha se apropriado pessoalmente de repasses de recursos públicos através de atos de corrupção. Mesmo o caso das chamadas pedaladas fiscais se mostra suficientemente pleno de contraditórios, impedindo que haja justificativa, e mesmo legitimidade, para o impedimento da presidenta.
Acordos de elite
Porém, existe um segundo plano que precisa ser mencionado de forma mais nítida. Muitos falam que a Lava Jato se inspira na Mani Puliti italiana. Se assim for, que ótimo. Porém, tenho sim, boas razões para suspeitar de tal expediente no país que se marcou na história pelos grandes acordos por cima. O historiador José Honório Rodrigues em seu livro Conciliação e Reforma no Brasil nos dizia que há no Brasil uma indelével tendência apaziguadora entre as elites brasileiras que, assim, evitaram chegar às últimas consequências de uma cisão interna. Não precisamos usar nossa bola de cristal para vermos o óbvio. A elite política brasileira, se vendo globalmente ameaçada pelas investigações que vêm ocorrendo, prepara neste momento um acordo palaciano para impedir a presidente. Se as mãos estão sujas, lava-se somente a esquerda. Na fase seguinte, já em um eventual governo Temer, através do arrefecimento das manifestações populares, do controle governamental à moda antiga sobre a Polícia Federal e os tribunais; e de um acordo com a grande mídia; simplesmente se abafaria o que ficou por ser apurado. Tal cadeia de raciocínio pode ser uma mera hipótese. Mas que fique bem nítido: uma hipótese sobejamente repetida na história do Brasil.
Mais uma vez insisto em minha inapetência no papel de detetive. Mas o conjunto de agremiações políticas brasileiras, e não somente o PT, se encontra sob sérias suspeições de malversação de fundos públicos tanto pela Lava Jato como por outras investigações envolvendo a construção de linhas de metrô, merenda e material escolar (!), dinheiro ilegal em campanhas eleitorais, etc. Não preciso fazer a longa enumeração de casos parados na justiça, arquivados ou abafados envolvendo importantes figuras de partidos como PSDB, PMDB, DEM e quase todo o conjunto de demais siglas que fazem parte do parlamento brasileiro. A sério: alguém acredita que seja a moralidade o princípio norteador daqueles líderes políticos que hoje clamam pelo impeachment? Uma vez não sendo virgens na arte de governar, quais egrégios exemplos teriam a dar de tanta moralidade? Será razoável que uma presidente, que do ponto de vista jurídico não responde por nenhum crime atualmente possa ser julgada por um Congresso no qual os que estão sendo processados por delitos se somam à casa das centenas?
Direitos sociais
De qualquer modo, há um terceiro motivo que me leva a ser contra o impedimento da atual presidenta e que vai além de seu aspecto jurídico ou político. Digamos que esta preocupação se coloca em uma leitura sociológica ou antropológica do atual momento político.
Não há nenhum problema que segmentos brancos, de classe média e de escolaridade superior à média do país venham para o espaço público protestar. É verdadeiramente louvável que estes setores se mostrem tão preocupados com a corrupção, com o patrimonialismo e com o jogo sujo da política dos dias atuais. Porém, a questão que não quer calar é: será que são apenas louváveis problemas morais o que movem tão ilustre segmento social à ida para as ruas?
Analisando os últimos 13 anos, o fato é que ocorreu uma pequena alteração na distribuição de renda no país. Certamente bem menor do que o marketing, ou alguns acadêmicos aduladores (por convicção ou por oportunismo) anunciavam no tempo que o governo petista granjeava ampla popularidade. Mas o suficiente para dar algum poder de consumo aos setores antes privados do mesmo, seja através do mero acesso aos gêneros de primeira necessidade, seja aos bens e serviços de certo status social, antes reservados às classes médias e alta. Não acho que falando isto esteja falando bem do governo atual. O que digo pode ser comprovado pelo uso de estatísticas sociais, nacionais e estrangeiras. Por outro lado, esta última década também ficou marcada pelo avanço dos direitos sociais coletivos, especialmente dos mais pobres (através do Bolsa-Família) e dos afrodescendentes (exclusivamente por conta das ações afirmativas nas universidades) e das empregadas domésticas (apesar da lei em seu benefício ter sido insuficiente e limitada). O atual arranjo de forças no governo foi covarde o suficiente para deixar de lado certas reivindicações sociais de mulheres (direitos reprodutivos, especialmente) e LGBTs. Mas o fez de forma contraditória, pois tais setores também souberam usar o espaço institucional disponível para expressar suas demandas.
Nada será como antes
O Brasil do futuro não será mais como antes porque negros não vão mais aceitar serem discriminados calados, as mulheres não serão mais espancadas em casa resignadas (a Lei Maria da Penha talvez possa ser considerada a maior conquista deste atual governo) e os LGBTs não serão mais trancafiáveis nos seus armários. Posso falar disto tudo sem parecer chapa branca por uma razão muito simples: estas conquistas pertencem aos movimentos sociais e não aos partidos atualmente ou antigamente no poder!
As atuais manifestações que se voltam contra o mandato da presidenta da República têm como cara pública a moralidade. Mas a análise do conteúdo da fala dos seus participantes sugere que como motor-dinâmico existe a busca de uma volta ao passado no qual as hierarquias sociais e raciais se mantinham não questionadas. As vozes que são tão estridentes no apoio ao juiz Sérgio Moro (e eu apoio o trabalho do juiz Moro, mesmo com as suas tantas lacunas), não raramente se tornam ainda mais especialmente afinadas quando reivindicam a volta da ditadura militar. São contra as ações afirmativas e o Bolsa-Família. Não porque tais medidas afetem algum princípio ético, mas porque retiram privilégios que julgam ser reservados para os de sempre. Se irritam com Dilma pela alta da inflação e do desemprego, mas também por que passaram a ter de assinar carteira e a reconhecer os direitos sociais de suas empregadas domésticas, coisa que não fizeram desde a abolição da escravatura (ao menos até o começo desta década 2/3 trabalhavam sem carteira assinada).
Não ao impeachment
A razão que me leva a ser contra o impeachment da presidenta da República diz respeito exatamente ao título desta mesa de debates, o futuro do país. As atuais mudanças que a sociedade brasileira experimentou foram modestas, parcas. Mas ainda assim enojaram profundamente as camadas sociais mais abastadas. Boa parte dos atuais manifestantes que exigem o impedimento da atual presidente o fazem baseados nos tantos erros da mandatária. Mas é desconcertante dizer que também o fazem pelos poucos, pouquíssimos, acertos que o atual arranjo de forças conseguiu alcançar, especialmente a modesta distribuição de renda ocorrida no período 2004-2010.
A ruptura institucional causada pelo eventual impedimento da presidente abre as portas do país para um ameaçador quadro de crônica instabilidade política no Brasil pelos próximos anos, senão décadas. Regimes fortes não precisam necessariamente ser exercidos por generais. O Brasil conheceu a fórmula autoritária civil na República Velha (1889-1930) e no Estado Novo (1937-1945). O que alimenta regimes de exceção em geral não são comandantes insanos e brutos. A experiência brasileira ensina que a força vital das ditaduras provém de setores da própria sociedade civil, seja em nome da família e da propriedade; seja em nome da preservação das antigas estruturas sociais e raciais. São as vozes que defendem a redução da idade penal e a pena de morte; que condenam políticas redistributivas em prol dos mais pobres; a proteção dos LGBTs, a discriminação positiva para negros ou direitos sociais coletivos para quem, sugestivamente, lava os carros, os pratos e os banheiros dos mais ricos.
Carlos Lacerda e Juscelino acabaram pagando seu preço pela participação no golpe em 1964. Os principais partidos da oposição ao atual governo se supõem naturais herdeiros da nova gestão que poderá emergir após a antecipação ilegítima do mandato do atual. Todavia, nas manifestações que vieram ocorrendo pelo país recentemente, estes políticos também foram hostilizados aos gritos. Isto sugere que aquelas presenças eram singelamente mau-vindas, também tendo se tornado alvo do rancor atual. Não deixa de ser mesmo curioso, mesmo engraçado. Tais apupos não vêm afetando o deputado Bolsonaro…
O momento atual no Brasil, embora assustador, é academicamente interessante porque impede uma abordagem simplista ou maniqueísta. Seria loucura supor que o PT e seus aliados não tenham imensa dose de responsabilidade no cenário atual. Assim, como seria insanidade imaginar que as velhas, novas e velhacas raposas da política brasileira se movam neste momento tendo por objetivo interesses outros senão ao do velho receituário de Maquiavel de conquistar e se preservar no poder.
De qualquer forma, no saldo deste debate, é preciso perceber que o Brasil profundo acordou. E nestes momentos, a experiência de cinco séculos nos ensina a necessidade de uma constante vigília diante das intenções, dos atos e dos fatos perpetrados pelos adoradores do Leviatã. Gigante monstruoso. Devorador de sonhos. Devorador de gentes.
Providence, Rhode Island, véspera do aniversário de 52 anos do golpe de Estado contra o presidente João Goulart