Blog do Mario Magalhaes

Palavrões em tempos de grampo

Mário Magalhães

Sinônimos de "ânus", no "Houaiss"

Sinônimos de ''ânus'', no ''Houaiss''

 

No romance Número Zero, do Umberto Eco, a jornalista Maia propõe um manual de substituição de palavrões no jornal Amanhã. “Em vez de dizer ‘caralho’, toda vez que alguém quisesse exprimir surpresa ou decepção, deveria dizer: ‘Oh, órgão externo do sistema geniturinário masculino em forma de apêndice cilíndrico na parte anterior do períneo, bateram minha carteira!’”

Sem o exagero caricatural, a imprensa brasileira já foi um pouco assim. Se não dava para substituir o palavrão, então mais conhecido como calão ou baixo calão, limavam-no. Evitavam a vulgaridade, mas às vezes sonegavam informação ao leitor. Uma coisa é publicar que um deputado xingou o colega, e ponto. Outra é contar que o dito cujo gritou “vossa excelência não passa de um grandessíssimo filho da puta”.

Nesse entrevero, não resta dúvida de que, como ensinam os gaúchos à gurizada, pronunciou-se “nome feio”. Há interpretações que vão mudando. Quando eu estreava na adolescência, uma dona falou “sacanagem” numa roda. Uma amiga dela apontou para mim e a repreendeu: “Olha a criança”. Achei sacanagem não verem que eu não era mais menino. “Sacanagem” continua palavrão?

O tempo acolhe o que outrora era tido como chulo. Como imaginar que “chateação” já foi obscenidade? Suponho que por se originar de chato, o inseto que se aninha na região pubiana e, asseguram, é chato pra caramba.  O Rubem Braga desculpou-se, em 1965, ao empregar o verbo “chatear”: “Seu uso generalizou-se de tal modo que se tornou familiar, embora não elegante”.

O cronista explicou por que cedeu: “O governador Carlos Lacerda usou o substantivo ‘chateação’ em seu último discurso na televisão, embora sabendo que se dirigia a um público em grande parte composto de senhoras e senhoritas; assim, a palavra entrou para o vocabulário já não digo oficial, mas oficioso no Estado da Guanabara”.

Sinônimos não costumam resolver. Até porque nunca ou quase nunca uma palavra equivale a outra. Num encontro literário, o Rubem Fonseca mencionou uma lição do Gustave Flaubert: “Ele, sim, sabia que não havia sinônimos. Ouviram? Não existem sinônimos”. O francês, lembrou o brasileiro, procurava sem descanso “le mot juste”, a palavra certa.

Tal palavra varia caso a caso. Numa folha em que noutra época só se podia escrever “impotente”, tenho lido cada vez mais “brocha”. Impotência expressa uma patologia. Brochada, um fiasco. Não dá para dizer que está “defecando” e andando. Flaubert e Fonseca têm razão.

Em meados do século 20, a revista The New Yorker ainda vetava contos que considerava obscenos, para contrariedade do iniciante Truman Capote. Trabalhei, três décadas atrás, em um jornal pudico que hoje imprime sem cerimônia os palavrões mais cabeludos. Na morte do Carlos Drummond de Andrade, não resisti à chance de apimentar as páginas. Escalado para selecionar trechos de um livro inédito do poeta, escolhi os mais picantes.

Não continham palavrões as tiradas do Drummond, como “a masturbação é uma forma econômica de praticar o sexo” e “o grito do orgasmo é espontâneo, mas o orgasmo é elaborado”. Levinho, não? Àquela altura, pareceu uma revolução. Ninguém se atreveu a cortar.

Pesado é o que eu tenho ouvido nesses dias turbulentos. Tem palavrão nos grampos e, fora deles, sobre seus personagens e antagonistas. Os palavrões são os mesmos, troca-se o alvo a malhar. Podem ser contra e a favor. Ou muito pelo contrário, como prefere um amigo que adotou o mantra “estou cagando e andando”.

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