Baixo-astral carioca
Mário Magalhães
No começo da tarde de ontem uma pane numa escada rolante provocou a queda de pessoas, caídas umas sobre as outras, na estação Siqueira Campos do metrô. Ao menos três mulheres se feriram e foram encaminhadas a hospitais do bairro, Copacabana, e à UPA. As indigentes escadas rolantes do metrô, serviço incluído na tarifa salgada como pipoca de criança, envergonham o transporte público carioca. Há outras vergonhas, da alma. Ao verem muita gente machucada no chão, urubus não ofereceram a mão para ajudar ou a boca para chamar socorro. Contentaram-se em sacar seus celulares para tirar fotos. Ninguém ajudou.
Pouco mais tarde, o governo do Estado anunciou a interrupção do pagamento a fornecedores. Sustenta que a medida é imprescindível para honrar o 13º dos servidores. Como consequência, em dezembro escolas estaduais servirão aos alunos merenda de biscoito e refresco, em vez da alimentação mais robusta tradicional. Bolsistas da Uerj não viram a cor do dinheiro que já deveria ter saído. Quem paga, previsível como a próxima pichação na estátua do Drummond, são os mais fracos.
À noite, o ''Jornal Nacional'' veiculou a conclusão do Ministério Público sobre a morte de Eduardo de Jesus, filho de Maria e José, às vésperas da Páscoa. O menino de dez anos foi alvejado na cabeça, no complexo do Alemão, com um tiro de fuzil disparado por PM. Dias atrás, a Polícia Civil recusou-se a indiciar o policial militar. Relatou que ele reagiu a disparos de traficantes drogas. Ainda que houvesse tiroteio, a criança estava a cinco metros do PM. Ele poderia ter se protegido, sem tirar a vida alheia. O promotor informou que a primeira perícia no local não encontrou componente de munição de pistolas, com as quais os traficantes alegadamente teriam atirado. Portanto, como testemunharam outros PMs e a mãe Maria, o tiroteio inexistiu. Com a versão fantasia, ninguém paga pela morte do menino Jesus.
Também ontem, no Lins, um garoto de 11 anos e um de 17 foram vítimas das mal denominadas balas perdidas. PMs de uma UPP trocaram tiros com traficantes, e sobrou para os dois jovens. Por sorte, não foram feridos com gravidade.
Anteontem à noite, um ciclista foi atacado no parque do Flamengo. Para lhe roubar a bicicleta, esfaquearam-no nas costas e o chutaram. Um dos ladrões gritava ''vamos matar, vamos matar!''. O incidente ocorreu na altura do hotel Glória, aquele que o Eike Batista disse que reformaria para reviver seus grandes dias e até hoje está fechado.
No domingo, em Ipanema, foi pior. Lincharam um vendedor de gelo com golpes de barra de ferro, pontapés, socos e pedradas. Linchadores disseram ter agido em legítima defesa, papo desmoralizado pelo vídeo que documentou a covardia criminosa. Uma pessoa contou que o problema foi uma cantada em mulher. Isto é, o vendedor de gelo Fabiano Machado da Silva teria sido morto porque apostou na mulher errada.
Não é apenas a crônica policial que deprime a cidade. O secretário municipal Pedro Paulo, candidato do prefeito Eduardo Paes à sucessão, foi denunciado como agressor da ex-mulher. Primeiro, ele enrolou ou negou, a depender da interpretação. Em seguida, reconheceu, mas jurou que acontecera somente um episódio. Nova inverdade: boletim registrara outra agressão. Tudo muito grave e, a rigor, caso de polícia. O que mais tem impressionado, contudo, são as declarações de políticos e personalidades dizendo tudo bem, faz parte, ninguém tem nada com isso.
Comparado ao sofrimento em Paris, Beirute e Mariana, tudo isso pode ser menor. Mas não se sofre por estatística. Ninguém transfere dor, angústia e tristeza.
Um monte de coisa boa segue rolando no Rio.
Só que dessa vez as nuvens carregadas estacionaram e teimam em não partir.