Havelange, mestre de Blatter: ‘O senhor vai morrer, não vou deixá-lo sair’
Mário Magalhães
Comove, sobretudo pelos ares quixotescos, a batalha do Zico para presidir a Fifa. Com sua candidatura de estadista, o craque supremo oferece a chance de dedetizar o trono impregnado por traseiros mafiosos. Continuo achando que a Fifa não merece o Zico. E que, na hipótese improvável de ele chegar lá, darão um jeito de derrubá-lo ou impedi-lo de governar.
Um aspecto central da sucessão de Joseph Blatter que às vezes parece negligenciado nas análises é o poder do suíço de influenciar a escolha do novo presidente. Mesmo enfraquecido, com um gancho que o afastou temporariamente, o cartola mantém a condição de grande eleitor.
E joga duro. Seu mestre e antecessor foi João Havelange. A história dirá se o discípulo superou o mestre nas características sinistras que os notabilizaram.
Em 1998, escrevi em 15.649 palavras uma breve biografia de Havelange. A publicação, na ''Folha'', coincidiu com a troca de guarda na Fifa, depois de 24 anos. Saía Havelange, entrava Blatter.
Na apuração, conversei com Havelange em seu escritório carioca, na avenida Rio Branco. Nenhum episódio sintetiza com tanta nitidez o seu caráter como o que abriu a narrativa. Quem o contou foi ele mesmo. Esse trecho, reproduzido abaixo, ajuda a entender o estilo truculento Havelange-Blatter.
P.S.: João Havelange tem 99 anos e mora no Rio.
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Corria a Copa de 1982, mas um brasileiro terminou o dia irritado, alheio à exuberante seleção de Telê Santana que encantava o planeta. O carioca João Havelange recebera dos organizadores do Mundial centenas de ingressos para os dirigentes da Fifa e seus convidados sentarem atrás de um gol, e não na tribuna, no centro do estádio, como estipulava um protocolo assinado pela entidade e o Comitê Organizador.
Na manhã seguinte, Havelange, então com 66 anos de idade, foi ao escritório onde despachava o principal executivo da Copa da Espanha, Raimundo Saporta. O relato é do presidente da Fifa: “Cheguei lá eram oito e meia, e ele não estava. Chegou às nove, eu botei os ingressos na mesa dele e disse: ‘Esses ingressos você guarda, não são para a Fifa. Eu quero quatrocentos ingressos aqui’”. E apontou em um desenho as tribunas do estádio.
“Ele disse: ‘Não os tenho’. Eu disse: ‘Um momento’. Fui à porta, fechei-a a chave. Fechei todas as janelas e disse: ‘Eu fico sem mijar, sem cagar, sem comer, sem dormir setenta e duas horas. O senhor vai morrer, porque eu não vou deixá-lo sair daqui enquanto não vierem os ingressos’. Ele era gordo e ficou ofegante. Eu disse: ‘O problema agora é seu’. Fui e sentei. ‘Ah, o senhor telefona…’, disse ele. ‘Não, não sou seu empregado', respondi. Saporta começou a suar, telefonar, telefonar, e vinte minutos depois eu tinha os quatrocentos ingressos. Não adianta. O sujeito pode dizer que eu sou isso, aquilo. Eu nasci assim, vou morrer assim.”