Liquid Paper da memória
Mário Magalhães
Outro dia um senador vociferou na tribuna contra um procurador da República: “Filho da puta”. Anteontem, foi a vez de um deputado homenagear um nobilíssimo colega: “Lambe-botas”.
Se no futuro um curioso visitar os registros do Congresso, não encontrará os vitupérios na boca de suas excelências, pois foram omitidos das notas taquigráficas. Permanecerão na lembrança de quem os assistiu e no noticiário. Nos compêndios do Legislativo, babau.
Eis a transcrição do Departamento de Taquigrafia, Revisão e Redação da Câmara: “É um (expressão retirada) esse deputado que aqui falou. (Expressão retirada.) Puxa-saco!” Fico me coçando para saber por que se incomodam com o “lambe-botas”, mas acolhem o “puxa-saco”.
Um propósito da supressão é evitar pretexto para punições pelos pares. Vai que baixa o espírito pudico de meados do século XX, quando o deputado Barreto Pinto foi cassado por quebra de decoro. Seu pecado foi ter posado de fraque e car… ou melhor, cuecas, para a revista O Cruzeiro.
A boa vizinhança é outro motivo para a adulteração histórica. Um amigo comum apela para quem disse apagar o dito, e o logro dá ares conventuais ao ambiente onde os franciscanos costumam ser mais evocados na interpretação matreira do “é dando que se recebe”.
O Liquid Paper da memória conspira para impedir que se conte a vida como a vida foi. Transcrição infiel ao discurso equivale a fraude. Às vezes, celebra-se final feliz, como em 1946, quando um deputado empregou o adjetivo “reacionário”, que sumiu dos anais. A mesa da Constituinte alegou que a palavra continha “sentido desatencioso”.
O parlamentar que a pronunciara apareceu com mais livros que vendedor de enciclopédia. “Está no vernáculo, bom português”, ensinou, com uma coleção de dicionários nos braços. O bom senso prevaleceu, e o “reacionário” escapou à guilhotina. Porém, sete décadas mais tarde, a lâmina da censura continua afiada.
Não aqui: Fernando Collor foi o senador que xingou o procurador-geral da República, Rodrigo Janot; ao falar de lambe-botas, Paulo Teixeira mirou André Moura; o constituinte íntimo do idioma era Carlos Marighella.