Blog do Mario Magalhaes

A cidade da paixão

Mário Magalhães

Foto de José Medeiros, acervo do Instituto Moreira Salles

 

Cavucando histórias sobre o Rio dos anos 1950, dei com uma contada por mim mesmo: como era a cidade em meados de 1958, quando João Gilberto aqui gravou ''Chega de Saudade'' e estabeleceu um marco fundador da bossa nova.

O blog reproduz abaixo a íntegra da reportagem, publicada no cinquentenário da bossa nova.

A fotografia no alto é de autoria de um dos maiores fotojornalistas brasileiros, José Medeiros (1921-1990). A imagem integra o acervo do Instituto Moreira Salles. Para saber mais sobre a obra do grande fotógrafo, basta clicar aqui.

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A cidade da paixão

Uma mulher indagou à amiga acerca do peixeiro, a amiga cascateou que ele baixara ao hospital, a mulher afligiu-se, o dito-cujo irrompeu corado e pimpão, e a mulher rasgou com gilete a face da já então ex-amiga.

Estavam diante da boate Pigalle, na avenida Atlântica, borda da praia de Copacabana. O motivo da refrega? ''Gostavam do mesmo peixeiro'', titulou o jornal.

Imprimiam-se as notícias com tintas passionais: ''Matou a esposa e em seguida suicidou-se''; ''Tentou matar Ilazir e suicidou-se depois''; ''Tentou matar esposa e agrediu policiais''; ''Baleado nos pés por gracejar com madame'' (o marido da madame atirou).

São histórias de junho de 1958, passadas no Rio de Janeiro, berço da bossa nova, e contadas pelo ''Diário Carioca''.

Tinha mais: ''Agredida a facadas pelo marido bêbedo'' (ela rejeitara a reconciliação); ''2º Tribunal julga o vendedor da mulher'' (o marido arrependeu-se e quis assassinar o comprador); ''Tentou matar dois rivais em três dias'' (um crooner de cabaré atentou contra o colega porque uma dançarina bendissera o gogó do outro).

Ainda: ''José mata Maria para suicidar-se''; ''Dois tiros contra funcionária na Câmara'' (o deputado disparou, dizia-se, porque a ''outra'' voltara para o marido); ''Guarda-Civil matou amante com seis tiros''.

Elas também atacavam: ''Esclarecida a morte do motorista'' (a mulher o liquidou porque ''não era feliz no casamento'').

809 desquites

Padecia-se mesmo de amor e desamor no Rio, não apenas em dois hits daquele ano, a bossa nova nascente ''Chega de Saudade'' (''Porque eu não posso mais sofrer'') e o samba-canção dor-de-cotovelo ''Castigo'' (''A gente briga/ Diz tanta coisa que não quer dizer/ Briga pensando que não vai sofrer'').

Se as mulheres que sofriam no matrimônio cortassem o mal pela raiz -ou pelo tronco-, a população do ainda Distrito Federal não alcançaria os 3.030.619 corações estimados em 1º de julho de 1958, quase 600 mil senhoras casadas.

Ignora-se quantos dos 466 suicídios do Rio no ano -285 por veneno- decorreram de desencontros amorosos. A Justiça homologou 809 desquites, catalogados na estatística oficial como ''aspectos negativos ou patológicos''.

Em julho de 1958, o caso Aída Curi hipnotizou a nação -a ex-aluna de colégio de freiras foi empurrada, ou caiu sozinha, das alturas de um prédio da avenida Atlântica. Dois espécimes da ''juventude transviada'' foram acusados. Jamais se chegou a um consenso.

Como Juscelino Kubitschek, o presidente bossa nova, estava longe de ser consensual. Eleito em 1955 com pouco mais de um terço dos votos, não emplacaria o sucessor.

Talvez só um nostálgico irrecuperável diga que os brasileiros sem fortuna vivem pior hoje que sob JK. Meio século atrás morriam, antes do primeiro aniversário, 124 bebês a cada mil nascidos vivos. Agora, o número roça os 20.

O Brasil, porém, conheceria desigualdade maior, atestam Ipea e IBGE: em 1960, a renda dos 10% mais ricos equivalia a 34 vezes a dos 10% mais pobres; em 1990, a razão seria 78. Em 2006, 46.

A dívida externa crescia e a inflação se acelerava, contudo a economia progredia fabulosos 10,8% em 1958. Os primeiros Fuscas eram anunciados, Brasília vinha aí e a tolerância democrática se impunha.

22 jornais diários

No Rio, o barquinho deslizava em um mar mais azul. A esperança contaminava as classes médias, dominantes nos bairros onde a bossa nova foi germinada, Copacabana (165.986 indivíduos no censo de 1960) e Ipanema (47.996).

Os cariocas abarrotavam os cine-teatros (54 milhões de ingressos em 1958; 7 milhões a mais que na capital paulista), freqüentavam exposições de arte (143 no ano) e devoravam jornais (dois anos antes havia 22 diários) -dados do IBGE.

Em outubro, senhoras patuscas -e não só elas- se ofenderam com os ardores pecaminosos de ''Os Sete Gatinhos'', nova peça de Nelson Rodrigues.

Antes, no junho de noticiário quente, a torcida ensandecida apupou o triunfo de Adalgisa Colombo, um broto legal, no concurso Miss DF, no Maracanãzinho. E ovacionou sua consagração no Miss Brasil. O título mundial de futebol alvejou o complexo de vira-latas. A Copa era nossa, o rádio a transmitiu.

Tão bom era 1958 que o seu biógrafo, o jornalista Joaquim Ferreira dos Santos, viria a denominá-lo ''O ano que não devia terminar''.

Muito antes de dezembro, em 13 de junho, o ''Diário Carioca'' publicou, às vésperas do jogo contra a URSS: ''Garrincha é uma hipótese''. Mané virou titular e deu no que deu. Em 1958, o Brasil também era uma hipótese. No que deu o país? Ainda não se sabe bem.

(Folha de S. Paulo, 10 de julho de 2008)