Rio: Polícia Militar reage conforme noticiário
Mário Magalhães
Havia um prefeito do Rio que concorria com o sol para ver quem acordava mais cedo. Ele principiava o dia na internet, consultando a seção de cartas do jornal ''O Globo''. O espaço é tradicional amplificador de queixas sobre mazelas urbanas. Por e-mail ou, um pouco mais tarde, por telefone, o prefeito instava os secretários a solucionarem com urgência os problemas que afligiam os leitores.
Quem tinha conhecimento de tal hábito galhofava: o governante define prioridades conforme as cartas que lê; analfabetos estavam ferrados.
Conhecedor da idiossincrasia, um servidor municipal estava cansado de apelar a determinado órgão da prefeitura para resolver um rolo na Urca. Esperto, escreveu para ''O Globo'' com nome falso, a carta foi veiculada, e na mesma manhã da publicação uma tropa de funcionários deu conta do recado.
É mais ou menos o que acontece hoje com o policiamento na cidade e adjacências. A Polícia Militar sabe onde ocorrem mais assaltos, porém só se mobiliza com determinação visível depois que os crimes ecoam no noticiário. Isto é, após notícias ruins.
Tome-se o exemplo do médico Jaime Gold, o ciclista covardemente assassinado a facadas na terça-feira, às margens da lagoa Rodrigo de Freitas. A lagoa tem tido presença limitada de PMs e guardas municipais, como sabe qualquer um que circule pela sua ciclovia de quase oito quilômetros. Desde ontem, não faltam policiais por lá.
Ou da Cinelândia. Quase abandonado, um dos corações do Rio (nossa cidade tem muitos corações) vinha sendo cenário de mais de um roubo diário. Daqui da minha redação de um jornalista só, eu ouvia a gritaria cotidiana de pega ladrão. Três semanas atrás, escutei berros na rua Álvaro Alvim. Alarme falso, era um ratão gigantesco assustando os pedestres. Dali a meia hora, os berros denunciaram mais um assalto.
Pelas dez da manhã de hoje, deparei-me na Cinelândia com PMs a pé, a cavalo, em carro estacionado diante da Câmara, além de numerosos guardas municipais. A mudança sobreveio depois de a TV Globo exibir cena de ladrões atacando e esfaqueando aqui pertinho.
Há um sem-número de lugares mal policiados. O aterro do Flamengo, onde muita gente corre e pratica outros esportes, é um deles. Para receber a atenção devida, só com mais tragédias.
Se é assim no Centro e na zona sul, imagine onde a população só vira notícia em caso de desgraça grande, tipo, e olhe lá, um botijão de gás explodir e matar uma família inteira. Como é sabido, repetido, e a poucos comove, a média de PMs por habitantes é muitíssimo maior nos bairros de moradores mais ricos do que nos de pobres.
Os índices oficiais de criminalidade costumam ser alardeados pelas autoridades de segurança pública para defender essa ou aquela ideia. Mas os concernentes a furtos e roubos são relativos, porque parcela expressiva das vítimas desistiu de registrar os delitos. Muitas só vão à delegacia ou recorrem aos serviços online quando são obrigadas, por exigências para a emissão de novos documentos.
A crescente impressão de falta de policiamento do Rio vai sendo confirmada pela crônica dos roubos com emprego de facas. O problema se agrava também em virtude dos contingentes ocupados com o programa das ditas unidades de polícia pacificadora. Sem abordar aqui méritos e deméritos das UPPs, elas exigem recursos humanos que são retirados de outras funções. Devido a necessidades políticas e eleitorais, o programa mais importante do governo estadual na segurança foi ampliado sem que houvesse suficiente aumento dos efetivos. Por isso há tanto lugar com parco ou nenhum policiamento.
A PM corre de um lado para o outro de acordo com o noticiário. Não dá conta do que tem que dar, sustentada que é com os impostos dos cidadãos. Cobertor curto, cobre aqui, descobre acolá.
Aparentemente, as autoridades achavam que estava tudo bem encaminhado, considerando seus valores e objetivos. Diante das evidências, o discurso triunfal foi substituído por desabafos e, no debate sobre responsabilidades, jogo de empurra.
O que não muda é a vocação policial de tratar como bandidos os moradores de favelas e comunidades humildes. Às vésperas da Páscoa, assassinaram o menino Eduardo de Jesus, 10, no complexo do Alemão. Agora, um policial civil reconhece ter matado dois jovens no morro do Dendê. Se fosse no Leblon, a casa teria caído.
Para proteger aposentados que vão ao banco retirar seus modestos proventos, falta PM. Para reprimir sem-teto e outros miseráveis, nunca. O Estado envia policiais para os morros, mas não serviços sociais elementares.
Não faltam interpretações sociológicas e até psicanalíticas para a violência de assaltantes que têm esfaqueado mesmo quem não reage. Um elemento para entender a selvageria é a disseminação do crack. Quando mais o crack progride, maior é a desgraça social, incluindo a violência. Não digo que o crack tenha influenciado o que ocorreu na lagoa. Mas em muitos episódios, pesou.