Devoção por Guardiola é questão ideológica
Mário Magalhães
Ideologia da bola, bem entendido.
A que une no futebol Johan Cruijff, o mestre, e seu discípulo e ex-jogador Pep Guardiola.
E não a que separa na política o catalão de berço Guardiola, favorável à independência de sua terra, e o catalão de coração Cruijff, contrário.
O encanto de Guardiola como técnico consiste mais na profissão de fé no jogo ofensivo do que na capacidade notável de identificar potenciais e oportunidades _foi ele quem descobriu a posição, no meio do ataque, ciscando para cá e para lá, em que Lionel Messi mais rendeu.
Estando por cima ou por baixo, Pep eterniza uma cantilena sincera, a de que monta suas equipes para buscarem o gol.
Com equilíbrio, azeitando táticas para defender e fustigar, mas com o plano estratégico de gerar chances que resultem em mudança de placar.
O Barcelona que ele idealizou, um dos times mais espetaculares de todas as épocas, só tinha um volante-volante, Busquets.
O treinador-ideólogo chegou a escalar dez jogadores de linha sem que nenhum deles fosse originalmente zagueiro ou lateral.
Ele já disse que sua ambição é que o público se deleite ao assistir a seus times como tem prazer ao ver uma ópera.
Atormenta-se tanto que parece ter uma década mais que os seus 44 anos.
Sua obsessão é obstáculo à permanência longeva nos clubes, pois os elencos se desgastam com a pressão: virtuosa nos primeiros anos, ela tensiona demais os ambientes a partir de certo tempo. Foi assim no Barça, parece ser no Bayern.
A despeito das faíscas, os atletas o respeitam.
Primeiro, porque com Guardiola os desempenhos tangenciam o paroxismo.
Segundo, porque o ex-meia proclama o caráter sagrado do vestiário dos atletas _ele nem passa pela área reservada aos boleiros.
Terceiro, porque é fiel, e não traíra. Um dos motivos que o levaram a se despedir do seu clube querido foi a convicção de que, para um novo ciclo de triunfos, seria aconselhável afastar veteranos a quem ele era muito grato _Puyol e Xavi, sobretudo. Recusou-se a fazer o que era necessário.
Não é íntimo de jogador, mas celebra a condição deles de autênticos protagonistas (há treineiros mequetrefes que fantasiam serem os donos de vitórias conquistadas por quem calça chuteira).
O que não o impede de vibrar com descobertas e epifanias, como a posição de Messi, ou a execução perfeita, consequência de treinamento insano, da saída de bola com passe do goleiro, e não chutão _Valdés tinha a opção ao menos de dois zagueiros bem abertos, do volante e de um meia, para escolher a saída mais segura.
Josep Guardiola não entra para especular no erro do adversário. Tenta não conceder-lhe a bola. Não por fetiche, mas por considerar que enquanto ela está sob o domínio dos seus eles podem chegar ao gol oponente. Ao menos, impedem golpes dos adversários.
Pep não inventou nada disso, mas aperfeiçoou o que pioneiros tinham ensaiado com sucessos e insucessos.
Quando o Barça humilhou o Santos no Mundial, não pela goleada, mas pela postura, Guardiola disse que moldara o time no estilo que seu pai descrevia como o dos brasileiros de outrora.
Pois a fixação na posse de bola vem tanto do holandês Cruijff quanto dos brasileiros Telê Santana, Cláudio Coutinho e Carlos Alberto Parreira.
Condutor do Flamengo do Zico no ápice, Coutinho pregava que um escrete de futebol deve manter a pelota consigo como faz um quinteto de basquete.
Como testemunhei um sem-número de vezes, Telê, encolerizado, interrompia os treinos do São Paulo quando alguém errava um passe fácil.
No dia em que Guardiola lançou dez não-defensores em campo, lembrei-me do antigo vaticínio de Zagallo, que sabe muito de futebol: no futuro, o sistema dominante será o 1-10.
O Bayern de Munique pode vencer nesta terça-feira ou levar outro chocolate do Barcelona (torço pelos blaugranas).
Não mudará minha devoção por Guardiola.
Ela é ideológica.
Pelo mesmo motivo, um retranqueiro dependente de contra-ataques pode ganhar dez Champions ou Copas do Mundo, mas não terá minha reverência.