Malandro é o gato, que já nasce de bigode
Mário Magalhães
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O novo ministro dos Direitos Humanos, Pepe Vargas – Foto Pedro Ladeira/Folhapress
Vereador, prefeito, deputado estadual, deputado federal, ministro de duas pastas e agora anunciado para a terceira, Pepe Vargas tem demonstrado em décadas de militância ser um homem de bem. Depois de saber pela imprensa que havia sido defenestrado da Secretaria de Relações Institucionais, o gaúcho assumirá a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.
É triste constatar, dada a decência com que o ministro tem se portado em um meio no qual tantas pessoas decentes desandaram, mas sua indicação consagra o rebaixamento político da secretaria com status de ministério.
No governo Dilma Reloaded, cuja guinada antissocial é a marca distintiva, a Secretaria de Direitos Humanos passa a ser reservada não para figuras com trajetória ostensivamente vinculada às causas com que têm de lidar na administração. Mas sim para ministros afastados do coração do poder e que recebem como consolação permanecer na foto oficial das raríssimas reuniões ministeriais.
Por mais boas intenções e opiniões pró-luzes e anti-obscurantistas que Ideli Salvatti e Pepe Vargas ostentem, nenhum dos dois construiu sua história com batalhas concentradas, ao menos diretamente, nos estandartes dos direitos dos cidadãos. São os dois ministros dos Direitos Humanos do segundo mandato de Dilma.
Já foi diferente, como se observou na estreia da petista como presidente. A ministra Maria do Rosário desde sempre foi ativista dedicada aos direitos humanos, postura que manteve e desenvolveu ao chegar ao parlamento. Lula teve na secretaria dois gigantes dessa trincheira, Nilmário Miranda e Paulo Vannuchi. Bem como FHC, com Paulo Sérgio Pinheiro e José Gregori.
Não discorro sobre o balanço da gestão de cada um deles, méritos e deméritos. Mas enfatizo a envergadura política dos titulares: para cuidar da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, com atribuições muito mais relevantes do que se costuma supor, deve-se escalar gente com tradição, peso político, autoridade ao se pronunciar sobre assuntos que domina, sem ter que estudar de última hora ou encomendar a auxiliares discursos sobre temas que ignora.
A breve passagem de Ideli no cargo teve boas iniciativas. É possível que Pepe Vargas desempenhe bem. Mas nenhum dos dois é o nome apropriado para os enfrentamentos de momento, em que a reação em larga escala ameaça direitos humanos conquistados com muito suor.
Para ficar num só exemplo _há muitos_, o combate à aventura da redução da maioridade penal exige da secretaria uma mobilização que pode ser implementada com Pepe Vargas, mas que seria muito mais facilitada por um ministro com lastro de representatividade entre as agremiações que lutam pelos direitos humanos.
Mário Magalhães
Sem-teto no prédio arrendado por empresa de Eike Batista – Foto Silvia Izquierdo/AP
Desde a madrugada de ontem quase uma centena de moradores de rua ocupa a antiga sede do Clube de Regatas do Flamengo, no morro da Viúva, aqui no Rio. Em 2012 o prédio foi arrendado a uma empresa de Eike Batista, em contrato ainda em vigor. A Polícia Militar impede que água e alimentos sejam entregues aos sem-teto, entre os quais duas dezenas de crianças, num edifício que já não conta com instalações elétricas. Moradores e políticos protestam contra a presença que consideram indesejada. Com a ruína de Eike, o projeto de transformar o mafuá num hotel de luxo não saiu do papel. Há muito tempo ninguém mora ali, e o local permanece abandonado, sem uso para qualquer fim.
A reação à chegada dos sem-teto expõe maldade, hipocrisia e preconceito.
A maldade suprema é impedir a chegada de comida. Os agentes do Estado podem provocar danos físicos e psicológicos nos cidadãos que se instalaram na avenida Rui Barbosa. É crime matar alguém de fome. E é isso o que, no limite, estão fazendo as autoridades. Há bebês de colo entre os sem-teto.
A hipocrisia é a grita dos bacanas. Eis o que disse a vereadora Leila do Flamengo (seu nome de guerra se refere ao bairro, não ao clube, bem entendido): “Estamos revoltados com a invasão. Um prédio tão belo que já funcionou como sede do Flamengo se deteriorou e estava desprotegido. Alguma medida tem que ser tomada, não podemos permitir que fique assim, queremos que eles tenham para onde ir, mas invadir e querer direitos é injusto”.
Trocando em miúdos, a vereadora não se revolta com o absurdo de um prédio sem nenhuma função social, mas sim com os pobres no sítio decadente. Ela não se revolta com a existência de brasileiros que carecem de moradia. Ainda por cima, audácia do povaréu, “querem direitos”.
Exemplo de preconceito é o prognóstico de uma moradora da vizinhança: “Esse pedaço da Rui Barbosa já é perigoso e agora vai piorar muito”.
Não é necessário recorrer a muitos neurônios para saber que costuma se dar o contrário: quanto menos movimentada a via, no caso aquela ao sopé do morro da Viúva, mais chance há de larápios atacarem. Com mais movimento, fica mais difícil para os gatunos. Existe uma lógica preconceituosa na previsão de que “vai piorar muito”: os novos vizinhos dos prédios de luxo são pobres.
No comecinho de 2012, quando o Flamengo aprovou o arrendamento, a maioria dos apartamentos já não tinha moradores. Logo os últimos partiram. Restou um edifício emporcalhado e com rastros de destruição. Ninguém me contou, eu vi _na última vez, domingo de manhã, quando estacionei o carro diante dele.
A velha sede rubro-negra ostentou dias de glória e pompa nas décadas de 1950 e 1960. Com as janelas debruçadas sobre a baía de Guanabara, o Pão de Açúcar e, mais tarde, o aterro do Flamengo, os salões recebiam gente famosa.
Num dos apartamentos mais badalados, moravam os grandes cantores Nora Ney e Jorge Goulart. Por lá apareciam do poeta Vinicius de Moraes ao ex-deputado Carlos Marighella.
Se o abandono do prédio de imenso valor cultural tivesse gerado horror igual ao que fustiga os sem-teto, o problema talvez já tivesse sido resolvido, quem sabe com a construção de um centro cultural, sem deixar de honrar os direitos do Flamengo.
Os moradores de rua que lá estão ocuparam recentemente um terreno da Cedae. Depois, passaram a dormir na Cinelândia. Uma das mulheres sem-teto contou: “Começou a chover e a fazer frio, não tinha como ficarmos na rua. Viemos para cá porque não temos nada. Dentro do prédio tudo também está caindo aos pedaços, não há portas, as janelas estão quebradas e tudo está precário. Porém, ainda assim, é melhor do que ficar na rua”.
É preciso odiar muito pobres e miseráveis para preferir um prédio abandonado a um teto, mesmo caindo aos pedaços, para quem não tem lugar melhor para sobreviver.
Mário Magalhães
Billie Holiday (7 de abril de 1915-17 de julho de 1959), 100 anos hoje.
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Mário Magalhães
Mário Magalhães
A mãe, Maria, o pai, José, e o menino Jesus – Foto Fábio Gonçalves/Agência O Dia/Estadão Conteúdo/UOL
Os policiais militares que estavam nas proximidades do lugar onde Eduardo de Jesus Ferreira foi assassinado na quinta-feira disseram que, nos instantes que antecederam a morte do menino, envolviam-se em tiroteio com traficantes de drogas no complexo do Alemão.
Mas os peritos que estiveram no local onde o garoto de 10 anos foi baleado encontraram poucas _ou nenhuma_ balas e cápsulas. Disparadas por armas de fogo, deveriam ser achadas em profusão de cardume de sardinha, em caso de disparos numerosos.
Também não foi encontrado o projétil que atravessou a cabeça de Dudu. Há indícios, mas não confirmação, de que seja munição de fuzil.
Se encontrada, a bala seria comparada a outros projéteis a serem disparados em teste pelas armas que estavam de posse dos PMs, incluindo fuzis.
Cada arma tem características próprias que deixam marcas nas balas. As oriundas da mesma arma terão sempre ranhuras muito similares, como se fossem impressão digital.
O sumiço do projétil impede a comparação balística direta.
O mistério sobre o desaparecimento de balas e cápsulas em torno do corpo de Jesus já não é, a rigor, um mistério. Moradores do Alemão contaram que, em seguida à morte do menino, PMs apressaram-se a recolher esse material.
Noutras palavras, de acordo com o que os moradores testemunharam na Divisão de Homicídios da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, os policiais ocultaram provas e manipularam a cena do crime.
É o que informam hoje os repórteres Sérgio Ramalho e Vera Araújo.
Todos os depoimentos até agora indicam que Jesus foi assassinado por um PM quando inexistia tiroteio.
A mãe do garoto, Terezinha Maria de Jesus, afirma ser capaz de identificar o policial que tirou a vida do seu filho.
O menino que sonhava ser motorista ou bombeiro estava na porta de casa, onde não ficava quando ocorriam as frequentes trocas de tiro no morro.
O governo do Estado do Rio anuncia para hoje o começo da “reocupação” do complexo do Alemão.
“Ocupação” é expressão de guerra relativa a território hostil.
Enquanto as autoridades considerarem favela como trincheira inimiga, tratando os moradores como bandidos, novos meninos Jesus serão mortos.
Mário Magalhães
São Paulo, fevereiro de 1968: protesto contra a censura – Foto Acervo UH/Folhapress
Desculpem os rubro-negros, mas não tratarei dos 3 a 0 que o Flamengo sapecou no Fluminense.
Perdão, tricolores, porque vou ignorar a injusta expulsão do Fred, determinante para a assimetria entre os times em boa parte do clássico dominical.
Nada há mais encantador no futebol do que o futebol-futebol, mas quando trambiques alheios aos gramados influenciam o que acontece dentro deles, não tem jeito: calar equivale a aceitar que o extra-campo prevaleça sobre o jogo jogado.
A partida do Maracanã começou com uma vergonha constrangedora e uma cena para a história da decência no futebol brasileiro.
A vergonha foi a exclusão do técnico Vanderlei Luxemburgo, suspenso pela dita justiça desportiva por ter criticado a Federação de Futebol do Rio de Janeiro, a famigerada Ferj.
A cena para orgulhar as torcidas mostrou os jogadores das duas equipes perfilados e tapando as bocas, em protesto contra a censura à livre expressão _Luxa foi castigado por manifestar opinião.
Neste Fla-Flu, a democracia uniu os rivais.
É secundário o mérito ou demérito do pronunciamento do treinador do Flamengo _para mim, ele trava o bom combate.
Mas preferia que o antigo lateral-esquerdo tivesse tido a coragem de peitar a cartolagem mais retrógrada já nos tempos da CBF do Ricardo Teixeira, maioral que o técnico bajulava com apetite de famélico.
Agora, é o centroavante Fred quem passa a ser ameaçado de tomar um gancho, e maior que o do Luxemburgo.
É do jogo concordar ou divergir das estocadas do atacante contra a Ferj (fecho com ele) e da proposta de extinguir o campeonato do Rio (discordo).
Adoraria ter visto o Fred batalhando no passado para que no futebol valha resultado obtido com a bola rolando, e não em tapetões.
Embora Luxemburgo e Fred abordem temas relevantes, há uma questão preliminar à discussão sobre suas ideias: a Constituição assegura aos cidadãos a expressão de pensamento.
Não há fundamento moral ou legal para legislação específica, como a do futebol, sobrepujar a Carta suprema.
Imagine se um condomínio resolve estabelecer em regimento a permissão aos moradores para assassinar vizinhos que cantam alto demais. Não pode, porque vigoram leis superiores que se impõem a todos e criminalizam o homicídio.
A cartolagem da Ferj, no século XXI, comporta-se como se estivesse na Idade Média.
Ao menos, julga ter prerrogativas de ditador dos tempos da ditadura mais recente, quando a censura impedia os brasileiros de dizerem o que ia por suas cabeças e corações.
A punição ao Luxemburgo e a ameaça ao Fred são um vexame, o 7 a 1 liberticida.
Impor censura a essa altura do campeonato só é possível porque muita gente prefere silenciar, em vez de enfrentar o obscurantismo.
O Ministério Público vai deixar por isso mesmo?
Mário Magalhães
Por Benett:
(O título é ironia, contra a estupidez da proposta de redução da maioridade penal.)
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Mário Magalhães
A mãe, Maria, e o filho Jesus – Foto Renato Moura/Voz das Comunidades
Imagine a escalada, a abertura de telejornal, com as chamadas das notícias mais quentes do dia, os apresentadores tabelando em jogral:
“Uma tragédia no coração do Rio!
Em Ipanema, um menino de dez anos é assassinado com um tiro de fuzil!
À luz do dia!
Durante uma operação da Polícia Militar!
O menino estava na porta de casa!
E se chamava Jesus, Eduardo de Jesus Ferreira!
E sua mãe se chama Maria, Terezinha Maria de Jesus!
Às vésperas da Páscoa, o crime num cartão-postal do Brasil abala o país!
A cerimônia da Sexta-Feira da Paixão foi cancelada no bairro!
E no domingo, para o menino Jesus, que sonhava ser médico ou engenheiro, não haverá ressurreição!”
Essa escalada não existiu nos telejornais da noite da quinta-feira, dia em que Eduardo de Jesus foi morto.
Houve um que ignorou a notícia.
Na sexta-feira teve jornal carioca que não deu a morte nem num cantinho escondido da primeira página.
Na internet, como em outras plataformas do jornalismo, o noticiário foi ganhando envergadura ontem alimentado por duas fontes: as manifestações legítimas dos vizinhos de Jesus e a indignação cidadã que varreu as redes sociais.
Só assim a morte covarde conquistou as escaladas da TV.
Eduardo de Jesus não provocou uma comoção entre os brasileiros, e também no jornalismo, porque não vivia em Ipanema.
Era morador do complexo do Alemão, onde ontem houve protesto, no lugar da Paixão de Cristo.
Ele não sonhava ser médico ou engenheiro, mas sim motorista ou bombeiro _era este o digno horizonte do menino da favela para seu futuro de trabalhador.
Já pensaram o impacto de ouvir uma mãe da zona sul, e a dor suprema de mãe e pai independe de classe social, dizendo ter ouvido de um policial militar “saia daqui, senão vou matar você também!”?
Foi o que Maria, a empregada doméstica mãe de Jesus, contou ter falado um PM. Mas a Maria não vive na zona sul.
Inexistiu o tiroteio descrito pelos policiais, ela disse. Só escutou o tiro de fuzil que matou seu filho, o caçula da prole de cinco.
Ela pensa em voltar para o Piauí, de onde veio no ocaso da década de 1990 para tentar a sorte no Rio.
Além do drama de toda mãe e todo pai que perdem um filho, o episódio do Alemão tem outro componente relevante ao jornalismo, ao menos o jornalismo que se pretende fiscal, e não porta-voz, do poder: é possível ou provável que um servidor público tenha assassinado Jesus. O que incentiva a discussão sobre o tratamento oficial de populações humildes como inimigas. E sobre a Justiça necessária para desestimular a impunidade.
Nem assim a morte comoveu muita gente, afora os que pensam “podia ser meu filho”.
A explicação é óbvia, e vale para muitas almas e para o jornalismo: Jesus era pobre, sua família é pobre.
Não é novidade, na última nação a abolir a escravidão e que figura entre as dez com desigualdade mais obscena.
Anteontem, em 2013, milhões de brasileiros se revoltaram e choraram com duas dezenas de lojas quebradas no Leblon e deram de ombros para uma chacina ocorrida na Maré, numa invasão do Bope, poucos dias antes.
Incrível país o nosso: vozes ditas esclarecidas esperneiam ao ouvir falar em luta de classes (até o Delfim Netto sabe que ela existe), mas só têm o coração machucado, machucado mesmo, não da boca para fora, quando a covardia ocorre no asfalto, e não no morro.
Para cristãos, praticantes de outras religiões ou gente sem fé além da teimosa fé no ser humano (está difícil, viu), esta Páscoa é para pensar em Jesus.
Em Eduardo de Jesus Ferreira, o menino que nunca será bombeiro ou motorista.
Mário Magalhães