Blog do Mario Magalhaes

Obras completas do escritor Euclides Neto são lançadas hoje em São Paulo

Mário Magalhães

 

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Vai ter debate, exibição de curta-metragem, beiju, abará, encontros e reencontros: a partir das 19h desta quinta-feira, na paulistana Casa das Rosas, será lançada em 13 volumes a obra completa do escritor Euclides Neto (1925-2000).

Não se assuste se você nunca ouviu falar no romancista, novelista, contista, cronista, dicionarista (de expressões das roças do cacau e da criação de gado no Sul da Bahia), observador e intérprete da história, além de tremendo memorialista: pouca gente ouviu, além das terras baianas onde o escritor nasceu e viveu.

Mas saiba também que não sabe o que está perdendo.

Ou estava: a parceria da Edufba com a Littera Criações, sob o comando editorial de Denise Mendonça Teixeira, filha do autor, produziu uma coleção no capricho. Acrescentou aos originais de Euclides Neto informações biográficas, fortuna crítica, mais luz ainda onde já brilhavam literatura e ideias.

O advogado Euclides José Teixeira Neto foi prefeito no interior baiano e secretário de Estado. Criava cabras e se dedicava a promover reforma agrária. Escrevia que só ele.

Devorei o nono volume da reedição dos seus livros, ''O menino traquino: Crônicas políticas e crônicas leves''. Mais abaixo reproduzo uma delas, ''A porta-estandarte''.

Euclides Neto escreve tão bem que transmite aquela sensação dos grandes cronistas, de que a crônica não é efêmera, mas pode ser longeva, talvez eterna. Um gênero grande do jornalismo e da literatura.

Para saber mais, título por título,  sobre a coleção que saiu do forno no segundo semestre do ano passado, basta clicar aqui.

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A porta-estandarte

Quem diria que o antigo major do Caldeirão do Miranda chegasse a tanto. Fora valente, pegara em armas, topara boi no ferrão e onça-pintada na zagaia.

A voz ecoava longe, entre as serras dos seus largos rumos.

Jogava no ombro um esteio de aroeira, com dez palmos de folha e cinco de sapata, como se fosse uma palha de licuri. As fêmeas, ele as derrubava pelos caminhos feito um jumento selvagem e, se fosse pegado no flagrante, só largava a prenda depois da função. Marrueiro brabo.

Agora, o velho Clemente não se lembrava mais de nada. caducava. Sequer acertava voltar para casa, quando saía ali pelo terreiro da fazenda, onde nascera e ainda morava desde a inauguração do século. A vista curta e as pernas trôpegas cobravam uma consulta médica especializada.

Em boa hora, portanto, os filhos resolveram levá-lo a Salvador.

Hospedaram-se em uma pensão na ladeira de São Bento. No dia seguinte, o fazendeirão começou a resmungar da zoada, da caneca de café que não saía na rompensa do amanhecer, na hora de passarinho coçar asa.

Houve um descuido da vigilância filial, e o velho ganhou a rua, que o tragou. Em agitado terceiro dia de carnaval. Quando os meninos _dois barbudos e uma solteirona, sessentões_ deram pelo desastre, ficaram aflitos. Jamais o pai acertaria a porta do hotel de volta.

Felizmente ele estava com o lindo pijama listrado, vermelho e azul, guarnecido com alamares laranja. Seria facilmente localizado na multidão.

Comunicaram à polícia e saíram procurando. Detetives foram contratados, sob a promessa de estimulante prêmio.

Pediu-se ambulância, que ficou aguardando no estacionamento, para qualquer emergência.

Aos encontrões e braçadas sobre o mar encapelado da fuzarca, reviraram a praça Castro Alves, socada de gente e trios elétricos enlouquecidos.

Nem notícia nem mandado.

Voltaram desiludidos, já noite descambada. Exatamente no momento em que apareceu uma foliã, no maior porre de lança-perfume, saracoteando como uma passista, de minissaia, batom vermelho de viúva, peruca loura, rosto estrelado de purpurina. Ainda empunhava um estandarte, com mais firmeza que um lanceiro medieval em carga contra o inimigo.

Era o destemido major Clemente que, sendo encontrado naquele pijama listrado por um bloco de meninas alegres, todas as calcinhas mais curtas que os biquínis, só teve tempo de ouvir: – Olha que velhinho animado! Vai ser nosso porta-estandarte.