O sexo dos políticos e os conflitos do jornalismo
Mário Magalhães
Com as eleições de 2016 no horizonte e o clima de campanha eleitoral permanente herdado dos confrontos de 2014, o jornalismo brasileiro terá de novo que calibrar seu comportamento acerca de controvérsia encarada de maneiras distintas mundo afora: quais os limites toleráveis na cobertura da vida privada de postulantes a funções públicas ou no exercício delas, mais propriamente a respeito de seus amores e sexualidades?
A abordagem consagrada pela imprensa no país costuma proteger os políticos da difusão de informações sobre seus relacionamentos não públicos.
Essa é a cultura nacional, e da minha parte está bem assim. Num exemplo, se determinada figura pública mantém outros namorados ou namoradas além do titular dos retratos palacianos, isso constitui assunto íntimo.
Reconheço, contudo, que são vigorosos os argumentos contrários, adotados em larga escala pelos meios de comunicação norte-americanos: se alguém se dispõe a participar da administração pública e por isso interfere no cotidiano dos cidadãos, precisa aceitar que seu dia-a-dia seja escrutinado publicamente. Teme-se também que relações afetivas secretas possam se tornar instrumento de chantagem contra o político e, portanto, ameaçar o interesse público.
A atitude jornalística mais nefasta, como confirmam os últimos meses de certo noticiário, é a insinuação, no estilo ordinário da imprensa amarela ou marrom. A fórmula da baixaria se condensa hoje na expressão maliciosa ''homem de confiança''.
Se o jornalismo considera importante e legítimo expor vínculos amorosos de políticos, que os exponha. Mas cultivar a maledicência equivale à desqualificação mais vulgar do ofício informativo.
Nos Estados Unidos, com suas irrefreáveis carolice, hipocrisia e patrulhas da libido, quando um político é surpreendido com a regra três, mesmo em relações consensuais entre maiores de idade, a informação é veiculada, e a carreira, liquidada. Que o diga Bill Clinton.
Na França, ao contrário, a existência de duas famílias de François Mitterrand, uma de domínio social e outra na moita, era manjada nas redações. Mas o “secret de Polichinelle” só foi compartilhado com o povaréu quando o presidente morreu.
Como se descobriu em janeiro do ano passado, os franceses mudaram: a partir do furo de valor duvidável de uma revista, mostrando que Hollande, xará de Mitterrand, saía de moto para costurar para fora, o jornalismo em conjunto debruçou-se sobre a tempestade conjugal no Élysée. Entre as alegações buscando prestigiar a informação que originara a crise, estava a de que os filhos da pátria tinham o direito de saber que o namorador, rumo aos seus pulinhos de cerca, cometia o desatino de circular com débil proteção da segurança.
Brasil
Com governantes no poder, o jornalismo brasileiro costuma ignorar escapadelas ou convivências não oficiais.
Quando um presidente da República supunha ter um filho fora do casamento _assumido legalmente por ele, mas escondido dos refletores_, o opção quase unânime foi não noticiar. Inexistia relevância pública na informação, e prevaleceu o silêncio. Corretamente, como, no meu tempo de ombudsman, eu respondia aos leitores que me procuravam reivindicando reportagens sobre o tema. Tratava-se de matéria essencialmente particular.
Alguns anos atrás, a Agência Brasileira de Inteligência expediu informe reservado dando conta de um affaire entre um ministro e uma ministra de Estado. Mesmo na queda do ministro, suspeito de promiscuidade com empreiteiras, os muitos repórteres que tiveram acesso ao documento nada publicaram. Fizeram bem, porque não havia interesse público _talvez “do” público futriqueiro_ no suposto xodó ministerial.
(É diferente quando os protagonistas de um romance clandestino o tornam público, como Zélia Cardoso de Mello e Bernardo Cabral, na atmosfera burlesca da era Collor.)
Noutra quadra, eu preparava o perfil de uma expoente da República quando comprovei que ela mantinha um namorado na surdina. Escrevi sobre a influência do dito cujo na militância da senhora, pois era fato político significativo. Mas não ensaiei insinuação sobre outras conexões, pois elas não diziam respeito a ninguém além do casal enamorado e do marido desatento.
Às vezes, contudo, a descompostura alheia obriga a veiculação de estocadas indignas.
Na década de 1990, num mata-mata eleitoral para prefeitura, a campanha de uma candidata espalhou que a adversária manifestava “conduta sexual atípica”, ou, no raciocínio desmiolado de quem proferiu as palavras, era homossexual.
Já nos anos 2000, propaganda de uma candidata a prefeita indagava na TV sobre o contendor: “É casado? Tem filhos?”.
Nos dois episódios, o jornalismo tinha obrigação de noticiar. Mas não escarafunchou a intimidade dos candidatos. Acertou.
Para os anais: os eleitores rejeitaram a intolerância oportunista e derrotaram os concorrentes que apelaram à insensatez.
História
Não ultrapassar os limites civilizados da privacidade não implica calar na hipótese de testemunhar ou ouvir testemunho de ações de um político que os eleitores merecem conhecer, para avaliá-lo, julgá-lo e eventualmente sufragá-lo. Desde envolvimento com pedofilia a agressão a companheiro ou companheira.
A tradicional recusa brasileira em abordar o sexo dos políticos não se sustenta, contudo, ao reconstituir o passado.
No balanço sincero da história, seria aberrante não contar em obra jornalística ou historiográfica de fôlego o que o presidente Juscelino Kubitschek pretendia fazer no Rio quando ocorreu o desastre automobilístico que o matou. Ele não viajava para cá a fim de comer um sanduíche de rosbife no saudoso Gordon.
Bem como seria incompreensível narrar a vida de Tancredo Neves ignorando uma longeva relação fora do matrimônio.
Idem uma biografia do argentino Ernesto Che Guevara que não tentasse esclarecer, confirmando ou negando (as que eu li divergem), se ele e a alemã Tamara Bunke eram amantes. Ambos combateram na guerrilha deflagrada na Bolívia e foram mortos em 1967.
Seria desclassificante evocar a trajetória de Marilyn Monroe e John Kennedy apagando o bundalelê entre os dois. Não seria contar vidas, mas omitir e descaracterizar.
Sem falar do rabicho entre D. Pedro I e Domitila de Castro Canto e Melo, como entender a proeminência da Marquesa de Santos nas intrigas imperiais?
Exemplos não faltam.
Porém, cavucar honestamente o passado difere da informação invasiva contemporânea com possível impacto em embates eleitorais. Salvo eventual cenário extraordinário, notícias sobre quem-come-quem ou se-gosta-de-menino-ou-menina carecem de importância pública, portanto jornalística.
O jornalismo não deveria ser bedel dos desejos, e sua contribuição indispensável à democracia prescinde de mexericos.