A marcha dos mentecaptos, por Laerte
Mário Magalhães
Mário Magalhães
Mário Magalhães
Fernando Henrique Cardoso combinou tom combativo e serenidade democrática para anunciar os termos da relação com a presidente Dilma Rousseff no segundo mandato. “Diálogo ou novas imposturas?”, titulou o ex-presidente em sua coluna publicada no domingo. “É bom retomar logo a ofensiva na agenda e nos debates políticos”, prescreveu aos seus correligionários. “Quem está na oposição precisa bradar suas razões e persistir na convicção, apontar os defeitos do adversário até que o eleitorado aceite sua visão.”
Ao desembarcar em Brasília na terça-feira, o senador Aécio Neves mostrou que o revés eleitoral não o abateu, como contou a repórter Bruna Borges: “Quando olhar para o Congresso, eu sugiro que o governo não olhe mais para número de cadeiras no Senado e na Câmara. Olhe bem porque vai encontrar mais de 50 milhões de brasileiros vigilantes, cobrando investigações das denúncias de corrupção e cobrando melhoria dos nossos indicadores econômicos”.
Homens de juízo, FHC e Aécio não se confundem com as vivandeiras e mentecaptos que vagam pelas ruas como zumbis falando em impeachment e quartelada.
Combatem o bom combate de qualquer oposição. Qual é? A resposta padece de obviedade acaciana: fazer oposição. Nos termos da democracia e da Constituição, é evidente.
Uma das piores tradições nacionais são os representantes sufragados para se opor que terminam cooptados pelo poder, qualquer poder, quase sempre fisgados pelo bolso, e não convencidos por ideias.
O Brasil e a democracia se fortalecem com a oposição vitaminada, e não anêmica.
O raciocínio se aplica não somente à oposição pela direita, como o PSDB, mas também pela esquerda, feito o PSOL. O partido de Luciana Genro e Marcelo Freixo fustigou a petista Dilma na campanha eleitoral. Sem a promiscuidade da busca por favores, no mata-mata derradeiro apoiou a presidente contra Aécio, identificado como retrocesso. Agora, o PSOL fará bem se for oposição de verdade, sem se deixar seduzir pelos salamaleques palacianos e discursos de dias festivos.
Idem o PV. O noticiário especula que a agremiação poderia ocupar o Ministério do Meio Ambiente. Será? Depois de tudo o que o candidato Eduardo Jorge falou do governo? Sei que o próprio Eduardo foi secretário do tucano José Serra e que a vice da chapa presidencial do PV é a atual vice-prefeita de Salvador, em dobradinha com ACM Neto. Por mais que eu não ignore que ao PV apetece um carguinho, para o país faria bem se mantivesse o acento oposicionista que levou muita gente a simpatizar com Eduardo Jorge.
Mário Magalhães
Logo mais, quando a noite cair, completará 45 anos a tocaia em que o guerrilheiro Carlos Marighella (1911-1969) foi assassinado em São Paulo.
Fuzilado pouco depois das oito horas da noite na alameda Casa Branca, o antigo deputado havia sido declarado pela ditadura, em 1968, “inimigo público número 1”.
Em 4 de novembro de 1969, o revolucionário estava sozinho e desarmado, como narro na biografia “Marighella: O guerrilheiro que incendiou o mundo” (Companhia das Letras).
Ao menos 29 agentes da polícia política, armados até os dentes, participaram da operação. Poderiam ter prendido o homem que caçavam, até porque contavam com cão treinado para isso, mas o executaram.
Duas vezes a União reconheceria que Marighella foi assassinado, e não abatido em confronto. Uma vez no governo FHC, outra na administração Dilma Rousseff, como informa o epílogo da biografia:
“A Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos dissecou o Caso Marighella em 1996. O colegiado instituído pelo presidente Fernando Henrique Cardoso concluiu que o Dops, se quisesse, poderia ter rendido o guerrilheiro, sem liquidá-lo”.
“Na sessão de 5 de dezembro de 2011, a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça apresentou um ‘pedido oficial de desculpas’ à família de Marighella. ‘Em nome do Estado brasileiro’, lamentou pelos ‘erros cometidos no passado’, ao persegui-lo e matá-lo.”
Muitos mistérios que permaneciam sobre as circunstâncias da morte de Marighella foram elucidados no livro de 2012: o líder _ao lado do jornalista Joaquim Câmara Ferreira_ da Ação Libertadora Nacional não portava mesmo nem um canivete.
Sobrevive, contudo, uma aberração: nenhum dos agentes que mataram o militante que poderiam ter prendido foi processado pelo crime. Com o absoluto controle da Casa Branca pelos funcionários públicos, Marighella estava virtualmente sob custódia do Estado, em dependência assemelhada a delegacia ou quartel, como concluiu a comissão em 1996.
Goste-se ou não de Marighella, de suas ações e de suas ideias, inexistia lastro legal para os beleguins o matarem. Nem a legislação de exceção da ditadura autorizava tortura e homicídio.
Vergonhosamente, o governo paulista promoveu por “bravura” 43 agentes que atuaram no cerco covarde ao guerrilheiro, incluindo 28 dos 29 presentes ao fuzilamento.
Muitos já morreram, como o delegado Sérgio Paranhos Fleury e o policial João Carlos Tralli, provável autor do tiro fatal, no peito, que matou Marighella.
Mas há muitos vivos.
Quem são?
O relatório da operação está à disposição em instituições como os Arquivos Públicos Estaduais de Rio e São Paulo; o Arquivo Edgard Leuenroth, na Unicamp (também com acesso livre pela internet); o Arquivo Nacional; e o Superior Tribunal Militar.
Quem não quiser procurar, basta ler a lista completa na biografia “Marighella”.
Os verdugos continuam soltos e impunes.
Julgar e punir na democracia quem violou crimes imprescritíveis contra os direitos humanos não constitui vingança. E, sim, justiça.
Serve como vacina para que as novas gerações não confiem na impunidade como incentivo à reedição da barbárie.
Ainda é tempo de julgar e condenar os assassinos de Carlos Marighella e de todas as centenas de opositores que foram mortos e torturados na quadra sombria inaugurada em 1964.
Em nome do passado, e muito mais pelo futuro do Brasil.
Mário Magalhães
Cena matinal nesta segunda-feira, aqui na “Cidade”, como chamamos o Centro do Rio: o ascensorista gente boa descreve sumariamente o sufoco de 20 dias sem água em casa.
Ele mora no bairro da Posse, em Nova Iguaçu, Baixada Fluminense, região metropolitana do Rio de Janeiro.
A Cedae promete resolver o problema dele e dos vizinhos, contou o meu chapa, e nada.
O ascensorista pedirá dinheiro emprestado a um parente para, com um poço doméstico, tentar amenizar o perrengue.
Amigos paulistas, se vocês achavam que ficariam sós se queixando das mazelas da vida com água escassa, deram-se mal.
Aqui estamos nós, e não é surpresa, na terra que décadas atrás consagrou os versos da marchinha: “Rio de Janeiro/ Cidade que me seduz/ De dia falta água/ De noite falta luz”.
Como em São Paulo, a falta d’água castiga primeiro os bairros mais pobres. Talvez existam outros atingidos no Grande Rio, como a Posse, e há mais tempo.
O UOL indaga numa enquete: “Você acha que vai faltar água no Rio de Janeiro?”
Já está faltando.
Mário Magalhães
Na véspera dos 45 anos do assassinato de Carlos Marighella (1911-1969), o congresso internacional “Memória: Alicerce da Justiça de Transição e dos Direitos Humanos” presta nesta segunda-feira (3 de novembro) uma homenagem ao guerrilheiro baiano.
O ato público em memória de Marighella começa às 18h no Tuca, teatro da PUC de São Paulo. Entre os numerosos participantes estarão Clara Charf, companheira do revolucionário morto em 4 de novembro de 1969; o advogado Carlos Augusto Marighella, ex-preso político e filho do guerrilheiro; e Iara Xavier Pereira, militante da Ação Libertadora Nacional, organização armada liderada por Marighella e Joaquim Câmara Ferreira. Será exibido o clipe “Mil faces de um homem leal”, com os Racionais, dirigido por Daniel Grinspum.
O congresso e a homenagem a Marighella são promovidos pelo Ministério da Justiça e a Coalização Internacional de Sítios de Consciência.
A programação pode ser conferida clicando aqui.
Em 1968, a ditadura instaurada quatro anos antes declarou Marighella “inimigo público número 1”.
Ele seria fuzilado numa tocaia da qual participaram ao menos 29 agentes da ditadura armados até os dentes.
Marighella estava sozinho e desarmado, como conto na biografia “Marighella: O guerrilheiro que incendiou o mundo” (Companhia das Letras).
Isto é, não houve “morte” simplesmente, e sim assassinato, como a União já reconheceu em duas oportunidades.
(P.S.: a conjugação do verbo no título exige “homenagea”, sem “i”, segundo o “Houaiss”, minha bíblia. Como fica horrível, mudei a grafia, acrescentando o “i”, respaldado por outros dicionários.)
Mário Magalhães
Há protestos que, em vez de desfavorecer as pessoas e instituições que são seus alvos, prestam-se sem querer a ajudá-las.
Foi assim com determinadas manifestações no Rio que acabaram contribuindo para esvaziar as ruas e impedir a extrema-unção do governador Sérgio Cabral, que acabaria por eleger no voto o seu sucessor.
Os atos públicos ocorridos sábado em algumas cidades engrossam os exemplos de iniciativas que favorecem quem pretendem prejudicar.
Pediram o impeachment de Dilma Rousseff, recém-reeleita com 3.458.891 sufrágios a mais que o contendor. E intervenção militar para afastar a governante constitucional.
Na maior concentração, 2.500 pessoas em São Paulo, um líder cumprimentou os confrades: “Boa tarde, reaças“.
Foi o evento retratado acima. Alguém viu um negro na foto?
Convescotes como esse são tão caricaturais e inofensivos que facilitam a vida de Dilma.
Não está claro se ela vai cumprir o discurso à esquerda da campanha ou se, no segundo governo, embicará pelos caminhos à direita que condenou em palanque.
Com a extrema direita indo à luta, a presidente ficará mais à vontade para agir como quiser, pois o espantalho sombrio dará mais ares de legitimidade às suas decisões.
Entre quem foi consagrada nas urnas e quem reedita a ladainha golpista de meio século atrás, até muitos dos que votaram no senador Aécio Neves preferem empunhar o estandarte da democracia.
Sem os arremedos de Carlos Lacerda protestando, o contraste às próximas ações da petista seriam as propostas esgrimidas por Aécio Neves até o domingo retrasado.
Agora, ela tem como contraste quem rejeita a soberania do voto popular.
Ou seja, qualquer coisa é melhor do que rasgar a decisão do povo.
Cresce a margem de manobra da presidente.
Mário Magalhães
O texto abaixo foi publicado originalmente no Blog da Companhia.
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Por Mário Magalhães
No começo da noite da próxima terça-feira, 4 de novembro, a tocaia em que agentes da ditadura fuzilaram o revolucionário baiano Carlos Marighella completará 45 anos. Numa rua escura paulistana, ao menos 29 beleguins do Departamento de Ordem Política e Social, armados até os dentes, assassinaram o guerrilheiro de 57 anos que não portava nem um canivete.
O tempo esclareceu as circunstâncias da morte de Marighella, narrada em pormenores na biografia que a Companhia das Letras lançou no finzinho de 2012. Com o ressurgimento da democracia no Brasil, a União reconheceu duas vezes que em 1969 ocorrera assassinato — e não confronto — e pediu desculpas à família do veterano militante. Seus matadores, embora identificados, nunca foram punidos.
Dois obstáculos conspiraram para tornar ainda maior o desafio de reconstituir a trajetória do antigo líder estudantil, constituinte, deputado, dirigente comunista e guerrilheiro declarado, em 1968, “inimigo público número 1”: determinada historiografia intolerante buscou eliminá-lo da memória nacional, e ele próprio, para sobreviver aos perseguidores, empenhou-se em apagar as pegadas.
Nos últimos anos, Carlos Marighella (1911-1969) inspirou a arte. Isa Grinspum Ferraz dirigiu o documentário Marighella, e Daniel Grinspum, o clipe “Mil faces de um homem leal”, com os Racionais. A música do vídeo havia sido composta por Mano Brown para o filme de Isa. Caetano Veloso reverenciou o conterrâneo com a canção “Um comunista”. O ator Wagner Moura se prepara para estrear na direção de longa-metragem adaptando para o cinema a biografia que eu escrevi. A produtora O2, de Fernando Meirelles, é parceira de Wagner na empreitada.
A vida fascinante de Marighella — goste-se ou não dele, de suas ações e de suas ideias — não se limitou às pelejas da revolução. Desde criança, o filho de italiano e de filha de escravos se dedicou à poesia. Ganhou fama em Salvador aos dezessete anos, não em virtude das querelas da política, mas ao responder em versos rimados uma prova de física no ensino médio.
Aos dezenove, calouro do curso de engenharia civil, fantasiou uma odisseia por Lavras Diamantinas, Jeremoabo e Canudos, terras baianas, e o Saara africano. Concluiu:
Andei como o diabo! Enfim… eis-me de novo aqui:
Quero ver se descubro se já me descobri.
O mais renitente adversário de Marighella na Bahia foi Juracy Magalhães, interventor (governador nomeado) do Estado quando o estudante Marighella foi preso pela primeira vez. Corria o mês de agosto de 1932, e o universitário acabou encarcerado com cinco centenas de colegas ao participar de um protesto. Na cadeia, bolou uma versão de “Vozes D’África”, o clássico de Castro Alves.
“Vozes da mocidade acadêmica” principia assim:
Juracy! Onde estás que não respondes!?
Em que escusa latrina tu te escondes,
Quando zombam de ti?
Há duas noites te mandei meu brado,
Que embalde desde então corre alarmado…
Onde estás Juracy?
Fecha:
Basta, senhor tenente! De teu bucho
Jorre através das tripas
Um repuxo de Judas e sandeus!
Há duas noites… eu soluço um grito…
Escuta-o, conclamando do infinito
‘À morte os crimes teus!’.
Reproduzi na biografia numerosas poesias de Marighella, das líricas às eróticas. Para assinalar os 45 anos de sua morte, compartilho aqui no Blog da Companhia dois poemas inéditos do revolucionário poeta.
Em maio de 1939, Marighella foi preso pela polícia política do Estado Novo, iniciando um período de quase seis anos de cana. No quarto onde o militante clandestino vivia em São Paulo, os tiras encontraram dois sonetos de autoria de certo “Dr. Carijó”, como Marighella os assinara.
Os poemas tripudiavam sobre os ativistas da AIB (Ação Integralista Brasileira), fascistoides que haviam sido colocados fora da lei pelo governo do ditador Getúlio Vargas, chamado de “Gegê” por Marighella. Os integralistas eram espinafrados como “galinhas verdes” pelos contendores ideológicos. Seu líder era o jornalista e escritor Plínio Salgado.
Um dos sonetos se intitulava “Verde ilusão”. Garimpei-o no processo judicial preservado pelo Arquivo Nacional:
Olá! Meu caro Plínio, estás salgado
Com a baiana mestraça do Gegê!
Parecias o Príncipe Esperado
E agora, de AIB, és ABC!
Eu te supunha cabra quilotado
E és mais arisco que um zabelê!
Hoje, que o teu balão está furado,
Que fazes? Ninguém te ouve, ninguém te lê?
Quem dantes via a crista que sustinhas
Juravas que eras trunfo e bambambão,
Peso pesado, braço, trinca-espinhas!
Calcula que tremenda decepção
Quando o femeaço verde dos galinhas
Viu que tu não és galo e sim… capão!”
O jornalista Claudio Leal me enviou em dezembro de 2013 um e-mail com o assunto “Marighelliana” e contou: “Topei com algo que pode lhe interessar. É um poemeto de circunstância de Marighella, dos tempos do veranico legal dos comunistas, em 1947, pouco antes da cassação do registro do PCB. Encontrei-o num caderno de mensagens de uma ex-auxiliar da Câmara Federal chamada Helena Prado”.
O generoso Claudio, um dos maiores talentos da sua (jovem) geração, fotografou os versos manuscritos de Marighella — a letra inconfundível era mesmo dele. Observou: “Pelas mensagens [de deputados como Nelson Carneiro, Jorge Amado e Marighella], depreende-se que Helena era loira e superlativamente bonita”.
O deputado federal Marighella versejou, em 28 de janeiro de 1947:
Cantar o que é belo, sim,
mas numa quadra pequena,
que tem somente por fim
falar do seu nome, Helena.
Mesmo assim…
Muita gente com certeza
afirmará que os “comunas”
não rendem culto à beleza.
Mário Magalhães é jornalista, blogueiro do UOL e ex-ombudsman da Folha de S. Paulo. Recebeu 25 prêmios jornalísticos e literários no Brasil e no exterior. É autor da biografia Marighella: O guerrilheiro que incendiou o mundo (Companhia das Letras, 2012). A obra foi agraciada com o Prêmio Jabuti, o Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte, o Prêmio Brasília de Literatura, o Prêmio Botequim Cultural, o Prêmio Direitos Humanos e o Prêmio Casa de las Américas. Seu próximo livro, cujo tema ainda é segredo, sairá pela Companhia das Letras em 2016.