Dilma venceu com discurso à esquerda; virada à direita seria estelionato
Mário Magalhães
Três milhões, quatrocentos e cinquenta e oito mil, oitocentos e noventa e um.
Repetindo: 3.458.891.
Essa foi a diferença entre os sufrágios conferidos no domingo à candidata Dilma Rousseff, reeleita para a Presidência da República, e ao seu contendor, Aécio Neves.
Não se trata de mero registro protocolar e atrasado, mas de contraste necessário ao noticiário do dia. O tom empregado por numerosos observadores sugere que a concorrente petista foi derrotada pelo senador tucano.
Não apenas não foi, como sua conquista possui abissal envergadura histórica.
É incrível que Dilma tenha vencido, tamanha a adversidade do cenário que enfrentou: economia capengando, roubalheira na Petrobras, bombardeamento midiático de última hora.
Ela só ganhou devido ao progresso que os anos Lula-Dilma significaram para dezenas de milhões de brasileiros, que agora têm muito pouco, mas antes nada tinham.
Seu triunfo oconteceu numa das eleições mais politizadas da história do Brasil. Desde 1989 não havia tanta clareza entre os eleitores sobre o caráter político dos postulantes ao Planalto, independentemente da autenticidade ou hipocrisia da pregação de cada um.
Na noite do sábado, jantei na churrascaria-botequim que constitui o epicentro do Baixo Gávea, tradicional reduto boêmio da zona sul do Rio, região carioca mais abonada, onde Dilma só bateria Aécio na zona eleitoral das favelas da Rocinha e do Vidigal.
As mesas do estabelecimento estavam tomadas por comensais que identificavam suas inclinações com adesivos de Aécio. Não todas as mesas, mas quase.
Já os garçons, eu vim a saber, estavam com Dilma.
Quem era servido e quem servia, todo mundo com voto consciente, puxando a brasa para o seu lado.
Dilma só deslanchou na campanha, ainda no primeiro turno, ao pincelar sua campanha com tons vermelhos. Primeiro, confrontando Marina Silva. Mais tarde, Aécio.
Sem a inflexão da campanha a bombordo, a timoneira teria naufragado.
Mal anunciado o resultado do pleito épico, pipocaram indicações para o futuro Ministério.
O presidente do Bradesco seria nome cotado para suceder Guido Mantega.
Um banqueiro, ou executivo de confiança dos banqueiros, na Fazenda? Depois da demonização de Marina por ter uma herdeira do Itaú entre os conselheiros mais influentes?
Outro ministeriável, palavra esteticamente medonha como presidenciável, é Sérgio Cabral.
O ex-governador foi o vilão supremo das Jornadas de Junho de 2013, que mobilizaram mais gente no Rio do que em qualquer outro Estado. A única palavra de ordem que unificava os manifestantes era ''Ei, Cabral, vai tomar…''. Que não venham dizer que o vascaíno fez o sucessor, com a vitória do botafoguense Luiz Fernando Pezão, por isso sua impopularidade ficou no passado. O sapato 48 só sobrepujou Marcello Crivella porque escondeu o antecessor.
Sérgio Cabral ministro equivaleria a cuspir na cara da geração de junho de 2013.
Governo novo, ideias novas, o inspirado slogan de Dilma, não resulta em Cabral ministro, certo? Pelo menos não foi o que deram a entender.
Há quem considere que o recado das urnas, mais precisamente a menor diferença numa eleição presidencial no país, seria a prioridade de diálogo com o mercado, sobretudo o financeiro.
Pois me parece que a mensagem é outra: os movimentos sociais, maltratados por Dilma, é que deveriam receber preferencialmente novo tratamento (sem prejuízo do diálogo com o empresariado). Sem eles, a antiga brizolista agora estaria preparando a mudança para Porto Alegre.
Ontem, no ''Jornal Nacional'', assisti a Dilma falar muito em conversa com os empresários, mas calar sobre os movimentos sociais.
Não sei o que a presidente planeja, mas entendi o pronunciamento dos brasileiros. O PT só levou a eleição ao se comprometer com um governo voltado para quem mais precisa.
Aproximar-se de segmentos que rejeitaram Dilma não implica tripudiar sobre aqueles que a sufragaram.
Se a marquetagem mais à esquerda da campanha se transformar num segundo mandato mais à direita, haverá estelionato eleitoral.
Como nos ensinaram os sábios portugueses, o prometido é devido.