História: Marighella e o ‘outro avô’ de Aécio se enfrentavam na Câmara
Mário Magalhães
Se o mundo configurava uma arena para o choque entre comunistas e capitalistas, a Câmara era um Coliseu onde para cada gladiador vermelho revezavam-se dezenas de leões dispostos a devorá-lo. Com o mandato ainda preservado, Marighella reivindicava medidas contra a nuvem de gafanhotos que causava danos à safra de trigo, e Tristão da Cunha, deputado do Partido Republicano que um dia teria um neto de nome Aécio Neves, galhofou:
''Vossa excelência acha que a praga dos gafanhotos também foi enviada dos Estados Unidos?''
O petebista Abelardo Mata já resmungara:
''É uma verdadeira fobia pelo fascismo.''
Numa discussão com Ataliba Nogueira, Marighella referiu-se ao grupo de nipônicos fanáticos que, por não admitir como fato a rendição do Japão, assassinava compatriotas em São Paulo:
''Vossa excelência […] teve a oportunidade de defender os fascistas japoneses da Shindo Renmei.''
''Vossa excelência não conhece a nossa língua, tão versado que está no idioma russo e, por isso, não nos entende'', reagiu o pessedista, antes da tréplica:
''Não tive o ensejo de aprender a língua russa, e talvez vossa excelência conheça bem o alemão ou o japonês.''
(Trecho da biografia ''Marighella – O guerrilheiro que incendiou o mundo'', Companhia das Letras, págs. 186 e 187)
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A passagem acima é de 1947, quando a Guerra Fria engatinhava, e os partidários dos EUA e da União Soviética terçavam armas e argumentos planeta afora. Os personagens mencionados eram deputados federais, integrantes da Câmara que funcionava no Palácio Tiradentes, atual sede da Assembleia Legislativa do Rio.
Carlos Marighella (PCB-BA) tinha mais expressão política _ou fama, se preferirem_ que Tristão da Cunha (PR-MG). Ambos militavam na Comissão de Finanças da Casa, mas o baiano vinha de ser membro da mesa diretiva, vulgo Comissão de Polícia, da Constituinte de 1946 que institucionalizara a redemocratização do Brasil. Ainda era o coordenador _não o líder formal_ da bancada comunista e um dos seus dois ghost-writers titulares, ao lado do amigo e camarada Jorge Amado.
O candidato presidencial Aécio Neves é mais conhecido como neto de Tancredo Neves, pai de sua mãe. Mas sua veia política se espalha pela árvore genealógica. O avó paterno, Tristão da Cunha, foi parlamentar de projeção nacional e secretário de Estado influente em Minas.
O nome completo do tucano é Aécio Neves da Cunha.
Bem mais à direita que Tancredo, Tristão viria a apoiar o golpe de Estado de 1964, ao qual o antigo ministro de Getulio Vargas resistiu. Enquanto Tancredo se engajou na oposição moderada à ditadura, Tristão se beneficiou de uma sinecura, o Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica). Quem o nomeou para a presidência foi o marechal-ditador Castello Branco. O avô de Aécio só deixaria o cargo ao morrer, uma década mais tarde, em 1974.
Na apuração da biografia ''Marighella'', li os anais da Constituinte inaugurada em fevereiro e encerrada em setembro de 1946 e da Câmara instalada em seguida. O protagonista do livro nela permaneceu até janeiro de 1948, quando teve o mandato cassado, junto com seus correligionários, em decisão da maioria dos deputados. O pretexto dos algozes: como o PCB havia sido banido pela Justiça eleitoral, os representantes eleitos pela agremiação seriam expulsos, a despeito de terem a legitimidade do voto popular.
Foi passeando pela Câmara do passado que acompanhei os embates entre Marighella e Tristão da Cunha. Em novembro de 1947, eles se confrontaram devido a um projeto de lei que diminuía o imposto para importação de arame de alumínio usado pela agricultura e pela pecuária.
Tristão, a favor, era porta-voz dos grandes proprietários de terra. Dizia, o que era correto, que não havia produção nacional suficiente. Marighella contrapunha: o rebaixamento das tarifas prejudicaria os produtores nacionais de arame. Lamentava o que julgava possibilidade de a ''indústria instalada no Brasil ser aniquilada por quaisquer concessões que fizéssemos à estrangeira''.
Naquela quadra histórica, os comunistas perdiam todas as votações para os deputados pró-latifúndio, assim como hoje o agronegócio se impõe aos defensores da reforma agrária.
Marighella e seus companheiros criticavam o que apontavam como concessões exageradas da administração do presidente Eurico Gaspar Dutra ao governo norte-americano: ''Enquanto há falta de carne no mercado interno, os frigoríficos estrangeiros, instalados no Rio Grande, estão exportando''.
Seu discurso ironizado por Tristão da Cunha dizia: ''Quanto à agricultura, a situação não é melhor. A safra atual do trigo está sendo ameaçada, em virtude da praga dos gafanhotos. São 120 mil toneladas de trigo produzidas pelo Estado [RS], fadadas ao desaparecimento. E bem assim o milho. Apesar do sensacionalismo jornalístico, nenhuma medida prática e eficiente está sendo tomada para salvar a atual safra de trigo, e isso num momento em que nos encontramos a braços com a restrição no fornecimento da farinha de trigo, imposta pelos trustes e seus moinhos''.
Marighella respondeu, ao ouvir a pergunta jocosa de Tristão (''Vossa excelência acha que a praga dos gafanhotos também foi enviada dos Estados Unidos?''): ''Não o foi, mas a praga dos gafanhotos tem concorrido para que a nossa produção de trigo no Rio Grande do Sul seja diminuída, se não aniquilada. Enquanto isso, o governo central, o governo do sr. general Eurico Dutra, tem se mostrado incapaz para debelar a praga''.
Tristão da Cunha: ''Mas o governo está fazendo o que pode para impedir o flagelo''.
Marighella discordou, e o debate prosseguiu. Em nível civilizado, até que os conservadores fuzilaram seu mandato, dois meses depois. O ex-deputado só deixaria a clandestinidade em novembro de 1957, dali a quase dez anos. No papel, havia uma democracia, mas o PCB era ilegal, e Marighella, um foragido por ser dirigente de partido proscrito.
Um filho de Tristão, Aécio Cunha, também seria deputado federal. Aécio Cunha teria um filho conhecido como Aécio Neves.
A partir de 1967, Marighella se dedicou à luta armada contra a ditadura, que o declarou ''inimigo público número 1''. Ao lado do jornalista Joaquim Câmara Ferreira, fundou e comandou a organização guerrilheira Ação Libertadora Nacional.
Um dos guerrilheiros mais destacados dos primeiros tempos da ALN foi o jovem Aloysio Nunes Ferreira Filho, hoje candidato a vice na chapa de Aécio Neves (para saber mais sobre Aloysio na luta armada, basta clicar aqui).
Àquela altura, a estudante Dilma Rousseff militava noutro grupo guerrilheiro de combate à ditadura.
Desarmado, Marighella foi morto por ao menos 29 agentes policiais armados até os dentes, na noite de 4 de novembro de 1969.
Seu assassinato completa 45 anos daqui a poucos dias.