Em revés dos censores da história, Marighella enfim é tema de vestibular
Mário Magalhães
Em episódio raríssimo no país, o vestibular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) apresentou neste domingo 14 de setembro uma questão em que o revolucionário baiano Carlos Marighella (1911-1969) foi personagem. A pergunta de múltipla escolha caiu no capítulo de ciências humanas. Está reproduzida acima.
A despeito de sua imensa projeção no exterior e relevância no Brasil do século XX, Marighella até hoje não é admitido nos livros escolares nacionais. Continua a ser um brasileiro maldito.
O estrago à memória provocado por certa historiografia que o baniu se expressa nas acaloradas controvérsias contemporâneas sobre Marighella. Muitos de seus partidários e muitos de seus opositores conhecem pouco sua trajetória.
Sabem pouco tanto para se identificar mais com ele quanto para rejeitá-lo com mais fervor.
A ausência de Marighella nos ensinos médio e superior constitui desonestidade intelectual e crime de lesa-história.
Seria um despropósito os manuais de colégio promoverem ou condenarem o deputado, militante comunista e guerrilheiro. Deveriam é contar escrupulosamente o que ele fez e deixou de fazer.
A sobrevivência desse manto de silêncio ofende a democracia. Ensina-se, como se deve ensinar, quem foi o brilhante anticomunista Carlos Lacerda (1914-1977). Se, no Brasil, Lacerda teve muito mais fama e influência que Marighella, mundo afora ocorreu o contrário.
Marighella foi espionado por serviços secretos como a Central Intelligence Agency norte-americana e o KGB soviético. O jornal francês ''Le Monde'' chamava-o de ''mulato hercúleo''. O semanário ''Time'', dos Estados Unidos, de ''mulato de olhos verdes'' (eram castanhos). Seus escritos ainda hoje inspiram movimentos rebeldes em todo o planeta. O ''Minimanual do guerrilheiro urbano'' é estudado das academias militares da China às salas de aula de Langley, onde fica a sede da CIA. O filósofo francês Jean-Paul Sartre publicou em sua célebre revista, ''Les Temps Modernes'', artigos de Marighella e sua organização guerrilheira, a Ação Libertadora Nacional (ALN). Seu compatriota Jean-Luc Godard, cineasta, ajudou com dinheiro, entregando-o a um colaborador da ALN, o diretor brasileiro Glauber Rocha. O cineasta italiano Luchino Visconti também contribuiu com os guerrilheiros dando um troco. O pintor catalão Joan Miró doou esboços para a ALN leiloar.
No Brasil, Marighella frequentou as primeiras páginas dos jornais, rendendo um sem-número de manchetes, da década de 1930 à de 1960. Enfrentou duas ditaduras, a do Estado Novo (1937-1945) e a instaurada em 1964. Em 1936, preso pelos beleguins da polícia de Getulio Vargas, foi torturado por três semanas. Passou ao todo sete anos e meio em cana. Na Constituinte de 1946, que redemocratizou a nação, foi membro da mesa diretiva e, com seu amigo Jorge Amado, ghost-writer da bancada comunista. Batalhou pelo divórcio, pela separação Igreja-Estado, pela introdução do 13º salário, pelo direito de greve, pela liberdade religiosa e de opinião. Orientou a legendária Greve dos 300 Mil, em 1953. Contra a ditadura nascente, resistiu à prisão e foi baleado e detido em maio de 1964. Em 1968, já na luta armada, o governo ditatorial declarou-o ''inimigo público número 1''. Foi capa da ''Veja'' em novembro de 1968, vivo, e novamente em novembro de 1969, morto. Aos menos 29 agentes da ditadura, armados até os dentes, fuzilaram-no em 4 de novembro de 1969. Ele não portava nem um canivete.
É este brasileiro, que fez fama na Bahia ao responder em versos rimados a uma prova de física, que certos historiadores proibiram ter o nome pronunciado nos colégios. Para eles, não faltam personagens na nossa história, porém Marighella não pode ser um deles.
Sou suspeito, na condição de biógrafo de Marighella. Mas o livro que escrevi não o aclama como herói nem o avacalha como vilão. Narrei o que ele fez, disse e, na medida do possível, pensou. A opinião de cada leitor depende das ideias que tem. A um biógrafo, cabe informar, com a estética mais sedutora possível, para que o leitor chegue ao ponto final apto a formar juízo.
Quando Marighella aparece num vestibular como o da Uerj, o obscurantismo sofre um revés.
A resposta correta da questão 47 é a letra A.