‘Afinal, presidente Dilma: quem está mentindo?’, indaga Luiz Cláudio Cunha
Mário Magalhães
A frase que dá título ao post encerra a reportagem ensaística de 123 mil caracteres de autoria de Luiz Cláudio Cunha, recém publicada no site do ''Jornal Já''.
Em um trabalho hercúleo e rigoroso, o jornalista cotejou dois documentos contraditórios como a mentira e a verdade. Ele contou: ''Li e reli as 155 páginas do denso relatório da Comissão Nacional da Verdade, comprovando mortes e torturas em sete instalações militares da ditadura, e confrontei com a resposta em 455 páginas da burocrática sindicância das Forças Armadas, negando tudo''.
O autor fez muito mais: cavucou fontes históricas afiançadas pelo tempo para esquadrinhar o relatório em que Marinha, Exército e FAB juram não ter existido, nos tempos da ditadura pós-1964, tortura e morte nos quartéis.
Criou-se um cenário inusitado: desde a década de 1990, ainda no governo Fernando Henrique Cardoso, a União reconhece que agentes públicos torturaram e assassinaram em dependências das três Forças. Por isso, e em respeito a determinação legal, o Estado, com recursos dos contribuintes, paga indenizações aos cidadãos vitimados pela ditadura.
Outra aberração é que a presidente Dilma Rousseff é constitucionalmente a comandante das Forças Armadas. O almirante, o general e o brigadeiro que chefiam Marinha, Exército e Aeronáutica integram uma cadeia de comando em que a Presidência da República ocupa o degrau mais alto.
Pois a presidente já teve a oportunidade de reconstituir, amparada em um sem-número de inquestionáveis provas testemunhais e documentais, que padeceu na tortura por 22 dias. Era começo de 1970, e a jovem oposicionista Dilma Rousseff estava presa na sede do Destacamento de Operações de Informações do II Exército, em São Paulo. Comandava a unidade o então major Carlos Alberto Brilhante Ustra. A foto mais acima mostra a presa política Dilma depondo na Justiça militar.
Agora, os comandados da presidente sustentam que jamais houve tortura. A obscenidade é tamanha que ousam afirmar não ter encontrado registro da criação dos Doi-Codi, o que comprovadamente ocorreu em 1970. A seu modo, os generais do presente se associam aos da ditadura. E desafiam institucionalmente sua comandante.
O monumental mergulho de Luiz Cláudio Cunha no passado, aula de jornalismo e história, joga luz no presente e vice-versa.
A resposta sobre quem está mentindo está clara em suas investigações e análises.
A pergunta que permanece dessa visita brilhante à história é outra: as novas mentiras vão, como acontecia antes, ficar por isso mesmo?
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Generais omitiram até os 22 dias que Dilma Rousseff amargou no Doi-Codi
Por Luiz Cláudio Cunha, especial para o ''Jornal Já''
O Exército, a Marinha e a Aeronáutica mobilizaram durante quatro meses seus oficiais-generais mais qualificados para desfechar o mais canhestro ataque militar dos últimos tempos no Brasil — fuzilando o bom-senso, torpedeando a inteligência, bombardeando a memória nacional e condenando ao extermínio a verdade segregada nos campos de concentração erigidos pela mentira.
Para atender a um minucioso requerimento de 115 páginas enviado em 18 de fevereiro passado pela Comissão Nacional da Verdade (CNV), as Forças Armadas (FFAA) reuniram suas tropas para produzir um monumento à insensatez e ao deboche: um palavroso, maçante, insolente, imprestável conjunto de 455 páginas de relatórios militares que não relatam, de sindicâncias que não investigam, de perguntas não respondidas, de respostas não perguntadas e de conclusões nada conclusivas, camufladas em um cipoal de decretos, leis, portarias, ofícios e velhos recortes de jornais falecidos.
Um histórico fiasco que passou em branco pela indolente imprensa brasileira, confinada a um registro burocrático, preguiçoso, sobre o sonso documento de resposta das FFAA.
A maçaroca militar ignorada pelos jornalistas tem de tudo. Tudo para defender o indefensável, para sustentar o insustentável, para dizer o indizível na novilíngua dos generais: nunca houve tortura, nunca aconteceu nenhuma grave violação aos direitos humanos nos quartéis nos 21 anos do regime militar imposto em 1964 pelas Forças Armadas que derrubaram o presidente João Goulart.
A sindicância das FFAA lembra, mais pela tragédia do que pela piada, a histórica charge do humorista e jornalista Millôr Fernandes (1923-2012) na edição de maio de 1974 da revista Veja, que mostra um preso esquálido pendurado na parede de uma masmorra.
Da fresta na porta da cela surge o comentário consolador do carcereiro: “Nada consta”. Por causa da piada, a ditadura sem graça dos generais endureceu ainda mais a censura sobre a revista então dirigida por Mino Carta.
Em resumo, é a pilhéria que repetem exatos 40 anos depois os militares brasileiros, diante das indagações da CNV sobre tortura e morte em seus quartéis: “Nada consta”.
Para expor esta cômica contradição em termos, que põe em dúvida até a existência da ditadura, os generais brasileiros recorreram a um arsenal de papel concentrado em 268 páginas do relatório da Marinha, 145 da Aeronáutica e 42 do Exército, um conjunto sem serventia que a Comissão Nacional da Verdade fuzilou sem dó nem piedade:
“Deplorável, lamentável”, definiu com firmeza a CNV, em uma desalentada nota oficial assinada pelos seis comissários. Aturdida pela ‘completa incorreção’ da conclusão das FFAA, a CNV lembrou aos generais distraídos que o Estado brasileiro reconhece desde 1995, por lei aprovada pelo Congresso, as condutas criminosas de militares e policiais durante a ditadura, “incorrendo inclusive no pagamento de indenizações por conta justamente de fatos agora surpreendentemente negados”.
Durante meses, os pesquisadores da CNV, auxiliados por especialistas da Universidade de São Paulo (USP), juntaram documentos, testemunhos e perícias para montar um consistente relatório que prova a ocorrência de graves violações aos direitos humanos nos sete endereços mais notórios da repressão coordenada pelos militares, situados no Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Pernambuco.
São cinco quartéis do Exército, uma base da Marinha e outra da Aeronáutica, com os nomes, sobrenomes, datas, depoimentos e horrores sobre nove casos de mortes sob tortura e outros 17 presos políticos torturados.
Por recato, talvez, a CNV não incluiu entre eles o nome de uma guerrilheira que sobreviveu às torturas em um dos sete endereços que marcam a face mais terrível da repressão brasileira: a rua Tutoia, na capital paulista, sede da pioneira ‘Operação Bandeirante’ (OBAN), sucedida ali pelo sangrento DOI-CODI do II Exército, sob o comando do então major Carlos Alberto Brilhante Ustra.
No início de 1970, naquele lugar listado pela CNV, padeceu durante 22 dias de suplício uma estudante mineira de 22 anos, integrante dos quadros de comando do grupo guerrilheiro Vanguarda Armada Revolucionária-Palmares (VAR-Palmares), onde era conhecida pelos codinomes de ‘Estela’ ou ‘Vanda’. Na ficha da polícia, ela era identificada como Dilma Vana Rousseff, ou Linhares, seu nome de casada.
Passadas quatro décadas, a guerrilheira, presa e martirizada ‘Estela’ tornou-se a presidente da República Dilma Rousseff. Foi investida assim, pela força da democracia, na condição de Comandante-Suprema das Forças Armadas. A torturada Dilma é, desde 2011, a chefe incontestável dos comandantes militares que hoje negam a tortura. Cria-se, assim, uma insuperável contradição ética e institucional entre a autoridade máxima do País e seus comandados de farda:
Quem está dizendo a verdade? A presidente da República ou os comandantes das FFAA?
Ou, dito de outra forma, quem está mentindo? Dilma ou os generais?