‘Os invisíveis’: uma reportagem sobre a matança na Maré
Mário Magalhães
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A matança no complexo da Maré, que deixou ao menos dez mortos um ano atrás, foi reconstituída pela repórter Consuelo Dieguez na ''piauí'' de agosto de 2013.
O esforço de reportagem está à disposição grátis, na íntegra, no site da revista.
Para quem quiser conhecer tantas dores que não saem nos jornais, a leitura da matéria é uma experiência e tanto, como se pode constatar abaixo (a ilustração acima também saiu na ''piauí'').
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Os invisíveis
A noite de terror, os mortos e os sobreviventes da Maré depois da operação do Bope
Por Consuelo Dieguez
Por volta das onze da noite do dia 24 de junho, Cláudio Duarte Rodrigues e sua mulher, Nilzete, voltavam para casa, no Parque União, uma das favelas do Complexo da Maré, que margeia a avenida Brasil, principal via de acesso ao Centro do Rio de Janeiro. Motorista de uma van que transporta passageiros do NorteShopping para o Complexo, Cláudio tivera um dia atípico. Por causa de uma manifestação marcada para as cinco da tarde, em Bonsucesso, do outro lado da avenida, o movimento havia caído. Preocupado com que a passeata acabasse em confronto, ele ligou para a mulher e avisou que iria buscá-la à saída do trabalho – uma empresa de ônibus da região, na qual ela é faxineira – às dez da noite. Ao passarem em frente à favela Nova Holanda, ao lado do Parque União, avistaram um grande tumulto. Pela movimentação de carros, logo perceberam que se tratava de uma ação policial. “Vamos sair logo daqui que o bicho tá pegando”, Nilzete falou para o marido.
As ruas do Parque União estavam desertas por causa da confusão na Nova Holanda. Cláudio entrou na favela com todas as luzes da van acesas, de modo a evitar que fossem confundidos com a polícia ou com bandidos. Diminuiu a velocidade para passar entre duas barras de ferro colocadas na rua pelos traficantes, que servem para dificultar a circulação de viaturas na área. Foi então que um tiro estilhaçou o vidro de trás do veículo. Nilzete se atirou no chão da caminhonete e gritou para o marido acelerar. Em seguida outro tiro, e mais outro. Nilzete sentiu a van perder velocidade. Nesse momento, uma nova bala atravessou o vidro a seu lado, espalhando estilhaços sobre os dois. Ela voltou a gritar: “Acelera, eles vão nos matar.” Viu então Cláudio levantar a camisa ensanguentada, abrir a porta e avisar, enquanto caía no chão, com um fio de voz: “Eu já fui atingido.”
Nilzete é uma mulher diminuta. Mede 1,50 metro e tem o corpo franzino. Seus cabelos são negros, cacheados e compridos. De longe, pode ser confundida com uma criança. Desesperada ao ver o marido ferido, ela saiu do carro. Olhou para a rua escura e deserta e se deparou com o Caveirão – o blindado, semelhante a um tanque de guerra, do Batalhão de Operações Policiais Especiais, o Bope. Com os braços levantados, correu em direção ao veículo gritando: “Ajudem pelo amor de Deus, somos trabalhadores, vocês atingiram meu marido.” Parou na frente do Caveirão esperando que dali saísse algum policial. Não houve reação. Nilzete permaneceu alguns instantes em frente ao blindado, até ser tomada pelo medo. Então, lentamente, sempre com as mãos para cima, se encostou na parede das casas e voltou, andando de lado, para junto da van. Deu-se conta do risco que estava correndo. Agachou-se ao lado do marido e começou a gritar por socorro. Logo, moradores apareceram nas portas. Fizeram uma roda em volta dela e do marido, num gesto instintivo de proteção. Um vizinho colocou Cláudio em seu carro, um Gol branco, e partiu com o casal para o hospital.