Telegrama comprova que Roberto Carlos já apoiou abertamente a censura
Mário Magalhães
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''Cumprimento Vossa Excelência por impedir a exibição do filme Je Vous Salue Marie, que não é obra de arte ou expressão cultural que mereça a liberdade de atingir a tradição religiosa de nosso povo e o sentimento cristão da humanidade. Deus abençoe Vossa Excelência. Roberto Carlos Braga.''
O remetente deste telegrama, como informa a assinatura, foi o compositor e cantor Roberto Carlos.
O destinatário, o então presidente da República, José Sarney.
A data, o comecinho de 1986 (o Palácio do Planalto divulgou-o em 7 de fevereiro daquele ano).
O motivo, a decisão do governo, implementada por meio da Divisão de Censura do Departamento de Polícia Federal, de proibir a exibição do filme ''Je Vous Salue Marie'', do cineasta franco-suíço Jean-Luc Godard.
O primeiro governo pós-ditadura, ainda impregnado pelos valores autoritários que haviam presidido o país por 21 anos (1964-1985), alegou que o obra de Godard blasfemava contra a Virgem Maria. Formalmente, o Estado era, e ainda é, separado da Igreja.
Contudo, a Maria do filme, personagem contemporânea, engravida mesmo sendo virgem. O dogma não é contestado. Mesmo se fosse, tratava-se de obra de arte que a administração Sarney impediu ser assistida nos cinemas.
Em artigo sobre ''Je Vous Salue Marie'', publicado na ''Folha de S. Paulo'' em 2 de março de 1986, Caetano Veloso mencionou a ''burrice de Roberto'' e escreveu que ''o telegrama de Roberto Carlos a Sarney, congratulando-se com este pelo veto a 'Je Vous Salue Marie', envergonha nossa classe''.
Mais Caetano: ''o veto é uma violência cultural e uma vergonha política''; ''vamos manter uma atitude de repúdio ao veto e de desprezo aos hipócritas e pusilânimes que o apoiam''.
A mensagem de Roberto Carlos 28 anos atrás não constitui fetiche arqueológico. Ela contribuiu para iluminar o presente.
O brilhante artista, o mais popular do Brasil, recorreu com sucesso à Justiça e proibiu a biografia ''Roberto Carlos em detalhes'', de autoria do jornalista, historiador e professor Paulo Cesar de Araújo.
O livro, como sabem aqueles que o leram, é muito simpático ao biografado, de quem o excelente biógrafo é fã confesso.
Desde 2013, com o incremento do debate público acerca da norma legal _artigos 20 e 21 do Código Civil_ que permite impor censura prévia a biografias e outras produções culturais, acadêmicas e jornalísticas, Roberto Carlos oscila nos seus pronunciamentos. Diz que é contra a censura, mas batalha no Supremo Tribunal Federal para manter a legislação como está. O Brasil é a única grande democracia do planeta a autorizar censura prévia a biografias que não sejam chapa-branca.
Paulo Cesar de Araújo acaba de lançar seu relato sobre o imbroglio que resultou na decisão judicial de proibir a circulação da biografia. O novo livro se intitula ''O réu e o rei: Minha história com Roberto Carlos, em detalhes'', é editado pela Companhia das Letras e representa um documento histórico sobre um tempo em que o direito à liberdade de expressão ainda sofre golpes.
Hoje, as manifestações públicas de Roberto Carlos sobre um tema caro à democracia e aos cidadãos variam de acordo com a conjuntura e as marés.
O telegrama a Sarney evidencia, sem eufemismos, que o artista considera legítimo e chancela o controle do Estado sobre o acesso dos brasileiros à arte e à cultura. Trocando em miúdos, Roberto Carlos é amigo da censura.