Blog do Mario Magalhaes

Arquivo : março 2014

‘O Corpo’, um conto de Sérgio Sant’Anna
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Mário Magalhães

Sérgio Sant’Anna e as letras, em foto conceitual de Luciana Whitaker (Folhapress)

 

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“O Globo” teve uma sacada criativa ao oferecer por esses dias ficção de qualidade para quem vive out-Carnaval ou não tenta bater recordes de frequência em blocos cariocas ou não assiste aos desfiles da primeira à última escola das diversas divisões do samba do Rio.

O jornal está publicando um conto inédito por dia. Quem abriu a série foi o contista e romancista Sérgio Sant’Anna, um dos maiores escritores brasileiros.

É um prazer vê-lo, setentão, em grande forma, como nos tempos em que tive a sorte de ser seu aluno na faculdade, na cadeira comunicação comparada, e ele lançou a novela “Amazona”, obra que não alcançou o reconhecimento de crítica e público à altura da imensidão de talento nela contida.

Eis o conto:

* * *

O Corpo

Por Sérgio Sant’Anna

Eram quinze para as seis da manhã, a claridade apenas despontando e Fernando Antônio levantou-se sem hesitação ao som do despertador do celular, tão baixo que Ana Lívia apenas estremeceu na cama. Fernando Antônio gostava de sentir o corpo de Ana perto do seu, mas não o tocou, para ela não acordar. Ele foi ao banheiro, depois voltou para o quarto e vestiu o short e a camiseta, calçou as meias e o par de tênis, para correr à beira da praia, a tempo de retornar e preparar-se para sair antes de oito horas da manhã e dos engarrafamentos. Sempre chegava cedo à corretora, a fim de conferir as cotações das bolsas da Europa e do fechamento na Ásia, antes de abertura do mercado em São Paulo. Poderia fazer isso no próprio celular, mas não queria misturar as coisas: o seu apartamento, Ana Lívia, o exercício físico, com o trabalho.

Fernando foi à cozinha, bebeu um pouco d’água, descascou e partiu pedaços de mamão, que pôs no liquidificador. Café da manhã completo, ele deixava para tomar na volta, talvez em companhia de Ana Lívia, quando a empregada já tivesse chegado. Com o copo com o suco na mão, caminhou até a janela da sala, no oitavo andar, que passava a noite fechada, por causa do vento que vinha do mar. Abriu-a, sentiu o ar fresco da manhã, o cheiro da maresia, ouviu o barulho das ondas quebrando, mais nítido a essa hora, e também notou que onde uma onda se formava havia algo parecido com um corpo negro boiando, mas, com a luz ainda insuficiente, não podia identificar se era um afogado, ou um surfista madrugador, ou alguém nadando.

Fernando bebeu o último gole do suco e dirigiu-se à porta do apartamento. Tomou o elevador e, ao chegar à rua, notou que algumas das pessoas que vinham cedo para correr ou caminhar no calçadão haviam parado do outro lado da Avenida Vieira Souto e olhavam em direção ao mar. Resolveu então atravessar a avenida e certificou-se de que havia mesmo o cadáver de um negro que era jogado de um lado para outro, e para cima e para baixo nas ondas. E Fernando não pôde deixar de filosofar como todo mundo diante de um cadáver, filosofia que podia ser reduzida à sua expressão mais simples com as palavras: o homem negro está morto, eu estou vivo, mas também vou morrer. Sentiu-se levemente deprimido e iniciou imediatamente sua corrida.

Naquele momento três rapazes carregando pranchas de surfe vinham chegando pelo calçadão e um deles disse: “Vamos chegar lá perto para ver.” Outro respondeu: “Que isso, mermão, defunto a uma hora dessas? Vamos pro Arpoador.” E o terceiro surfista disse para o segundo, em voz bastante alta, de modo a ser ouvido pelo primeiro, o que fizera a proposta e já pulara para a areia: “Olha lá o Juninho, olha lá: vai pegar onda com o defunto.”

Para ler a íntegra, basta clicar aqui.


‘Por que deveríamos nos reconhecer nas cenas de 12 anos de escravidão?’
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Mário Magalhães

O ator Chiwetel Ejiofor, em “12 anos de escravidão” – Foto divulgação

 

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E o Oscar de melhor filme foi para “12 anos de escravidão” ou, na tradução mais fiel ao título original, “12 anos escravo”, “12 anos um escravo” ou “12 anos como escravo”. Escravo, não escravidão.

No mesmo dia da consagração do filme de Steve McQueen estrelado por Chiwetel Ejiofor, a “Folha” publicou um interessantíssimo artigo da antropóloga Lilia Moritz Schwarcz e da historiadora Maria Helena P. T. Machado. As professoras titulares da USP comparam aspectos do regime escravocrata e da vida de negros livres e escravos libertos nos Estados Unidos e no Brasil.

Eis o artigo:

* * *

Lilia Moritz Schwarcz

Maria Helena P. T. Machado

Por que deveríamos nos reconhecer nas cenas de ’12 anos de escravidão’

Há situações que parecem estar além de qualquer racionalização: diante delas quem sabe a única resposta seja a profunda indignação. Esse é o caso do sistema escravista recriado em bases mercantis a partir do século 16, que instituiu um modelo de trabalho pautado na naturalização da violência, na compra e no tráfico de viventes. Difícil descrever por meio de interpretações objetivas um cotidiano que invadia a todos e se esmerava na aplicação de uma cartografia de castigos, vexações e punições.

“12 Anos de Escravidão” procura traduzir em imagens o que é praticamente indizível em palavras. O filme, que chegou há pouco às nossas telas, foi precedido por debates e críticas, aqui como no contexto norte-americano. Não foram poucos os que acusaram o diretor Steve McQueen de fazer um filme vocacionado para o Oscar – o longa concorre hoje a nove prêmios. Outros destacaram o exagero sentimental, cenas apelativas e o recurso a um fundo musical que tem por objetivo deixar ainda mais tenso um assunto já por si nervoso.

Não por acaso a escravidão permaneceu por muito tempo no silêncio, nos EUA e no Brasil, ou foi tratada como um não tema. Talvez este seja um bom momento para fazer do passado uma indagação. Por que tantos e por tanto tempo sustentaram tal sistema?

O filme se baseia na narrativa de vida de Solomon Northup – negro livre de Nova York, sequestrado e vendido na década de 1840 como escravo para trabalhar nas fazendas nas fronteiras do sul do país. A publicação de sua história, em 1853, serviu como veículo para a difusão das novas ideias abolicionistas. Esquecido desde então, o relato de Northup voltou às livrarias propelido pelo lançamento do filme – no Brasil, saíram duas edições (pela Penguin/Companhia das Letras e pela Seoman).

A reconstituição feita no cinema, minuciosa, realista e muito colada ao livro, se detém nos aspectos sombrios do funcionamento da escravidão no sul dos EUA, trazendo para a tela as engrenagens do tráfico interno e ilegal, a organização do trabalho compulsório nas “plantations”, as políticas senhoriais de controle, punição e compensação de escravizados, as regras de submissão, as relações inter-raciais e, sobretudo, a violência de um sistema que supõe a posse de um homem por outro.

Para ler a íntegra, basta clicar aqui.


O Raul e o Rei, por Ruy Castro
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Mário Magalhães

O trombonista Raul de Souza – Foto divulgação

 

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Grande história de Carnaval, por Ruy Castro, hoje na “Folha”.

Ei-la:

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Em pessoa

Por Ruy Castro

Em 1964 ou 65, o trombonista Raul de Souza –hoje, às vésperas dos 80 anos e ainda em grande forma– era a estrela de uma geração que estava fazendo do samba-jazz brasileiro a melhor música instrumental do mundo. Entre seus colegas havia saxofonistas como Paulo Moura, Aurino e Meirelles, pianistas como Luiz Eça, Sergio Mendes e Tenório Jr., bateristas como Milton Banana, Edison Machado e Dom Um, todos trabalhando na mesma cidade, na mesma noite, quase nos mesmos lugares.

Com esse cacife, Raul podia tirar o Carnaval para descansar. Não que não gostasse de Carnaval –sua formação era a da gafieira, onde os trombonistas também tinham de tocar a todo pano, no maior volume e sem parar, durante horas, ou enquanto o beiço aguentasse. E, certamente, não que não precisasse do dinheiro –no Carnaval, os bailes e festas eram diários e pagavam bem. Mas ele preferia parar por uns dias e relaxar a embocadura exigida por coisas difíceis como “Estamos Aí”, “Você e Eu” e “Jor-Du”, que tocava no resto do ano.

Para ler na íntegra, basta clicar aqui.