‘O Corpo’, um conto de Sérgio Sant’Anna
Mário Magalhães

Sérgio Sant’Anna e as letras, em foto conceitual de Luciana Whitaker (Folhapress)
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“O Globo” teve uma sacada criativa ao oferecer por esses dias ficção de qualidade para quem vive out-Carnaval ou não tenta bater recordes de frequência em blocos cariocas ou não assiste aos desfiles da primeira à última escola das diversas divisões do samba do Rio.
O jornal está publicando um conto inédito por dia. Quem abriu a série foi o contista e romancista Sérgio Sant’Anna, um dos maiores escritores brasileiros.
É um prazer vê-lo, setentão, em grande forma, como nos tempos em que tive a sorte de ser seu aluno na faculdade, na cadeira comunicação comparada, e ele lançou a novela “Amazona”, obra que não alcançou o reconhecimento de crítica e público à altura da imensidão de talento nela contida.
Eis o conto:
* * *
O Corpo
Por Sérgio Sant’Anna
Eram quinze para as seis da manhã, a claridade apenas despontando e Fernando Antônio levantou-se sem hesitação ao som do despertador do celular, tão baixo que Ana Lívia apenas estremeceu na cama. Fernando Antônio gostava de sentir o corpo de Ana perto do seu, mas não o tocou, para ela não acordar. Ele foi ao banheiro, depois voltou para o quarto e vestiu o short e a camiseta, calçou as meias e o par de tênis, para correr à beira da praia, a tempo de retornar e preparar-se para sair antes de oito horas da manhã e dos engarrafamentos. Sempre chegava cedo à corretora, a fim de conferir as cotações das bolsas da Europa e do fechamento na Ásia, antes de abertura do mercado em São Paulo. Poderia fazer isso no próprio celular, mas não queria misturar as coisas: o seu apartamento, Ana Lívia, o exercício físico, com o trabalho.
Fernando foi à cozinha, bebeu um pouco d’água, descascou e partiu pedaços de mamão, que pôs no liquidificador. Café da manhã completo, ele deixava para tomar na volta, talvez em companhia de Ana Lívia, quando a empregada já tivesse chegado. Com o copo com o suco na mão, caminhou até a janela da sala, no oitavo andar, que passava a noite fechada, por causa do vento que vinha do mar. Abriu-a, sentiu o ar fresco da manhã, o cheiro da maresia, ouviu o barulho das ondas quebrando, mais nítido a essa hora, e também notou que onde uma onda se formava havia algo parecido com um corpo negro boiando, mas, com a luz ainda insuficiente, não podia identificar se era um afogado, ou um surfista madrugador, ou alguém nadando.
Fernando bebeu o último gole do suco e dirigiu-se à porta do apartamento. Tomou o elevador e, ao chegar à rua, notou que algumas das pessoas que vinham cedo para correr ou caminhar no calçadão haviam parado do outro lado da Avenida Vieira Souto e olhavam em direção ao mar. Resolveu então atravessar a avenida e certificou-se de que havia mesmo o cadáver de um negro que era jogado de um lado para outro, e para cima e para baixo nas ondas. E Fernando não pôde deixar de filosofar como todo mundo diante de um cadáver, filosofia que podia ser reduzida à sua expressão mais simples com as palavras: o homem negro está morto, eu estou vivo, mas também vou morrer. Sentiu-se levemente deprimido e iniciou imediatamente sua corrida.
Naquele momento três rapazes carregando pranchas de surfe vinham chegando pelo calçadão e um deles disse: “Vamos chegar lá perto para ver.” Outro respondeu: “Que isso, mermão, defunto a uma hora dessas? Vamos pro Arpoador.” E o terceiro surfista disse para o segundo, em voz bastante alta, de modo a ser ouvido pelo primeiro, o que fizera a proposta e já pulara para a areia: “Olha lá o Juninho, olha lá: vai pegar onda com o defunto.”