Blog do Mario Magalhaes

Arquivo : dezembro 2013

O esquecimento é amigo da barbárie: ‘Enforquem Mandela’, pediram britânicos
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Mário Magalhães

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Cartaz do começo dos anos 1980

 

Perdão pelo azedume, em meio aos festejos pelo grupo café-com-leite do Brasil na Copa, a preocupação com o possível oponente duro nas oitavas-de-final e o lamento por Nelson Mandela.

Não deveria, mas ainda me assombro com tanta hipocrisia, como agora, com a morte do líder negro sul-africano. Muitas das bocas que hoje tecem loas à memória do velho combatente são herdeiras históricas daquelas que, com a CIA e numerosos governos alegadamente democráticos, no passado nem tão distante, avacalhavam Mandela como subversivo e terrorista.

Margaret Thatcher e seus discípulos ainda são celebrados como a luz que livrou o Reino Unido das trevas. Se dependesse de alguns thatcheristas, Mandela não teria nem saído vivo da cadeia. É o que lembrei meses atrás, no comecinho do blog.

Em homenagem a Nelson Mandela, reproduzo abaixo o post, documentado com o cartaz acima. Nem todas as lágrimas na despedida são sinceras.

*

“Enforquem Nelson Mandela e todos os terroristas do Congresso Nacional Africano [ANC, nas iniciais em inglês]. Eles são açougueiros.”

O cartaz acima foi distribuído no Reino Unido no início da década de 1980, quando o líder negro sul-africano ainda amargava a prisão iniciada em 1962. A imprensa o atribuiu à Federação dos Estudantes Conservadores, vinculada ao Partido Conservador e sobretudo à primeira-ministra da época, Margaret Thatcher (1925-2013).

A senhora Thatcher também chamou Mandela de terrorista. O CNA era a organização política anti-apartheid à qual Mandela pertencia.

Mandela não foi enforcado e conquistou a liberdade em 1990. De 1994 a 99, presidiu a África do Sul, consagrando o fim do regime de segregação racial, a despeito da enorme desigualdade social que ainda persiste. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz.

No momento em que Mandela, velhinho, está internado em estado grave aos 94 anos, não custa lembrar que, se dependesse de alguns estudantes britânicos ditos civilizados, ele estaria morto há muito tempo.

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Biografia ‘Marighella’ recebe Prêmio Direitos Humanos de Jornalismo
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Mário Magalhães

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Compartilho uma ótima notícia com os amigos aqui do blog: a biografia “Marighella – O guerrilheiro que incendiou o mundo”, de autoria deste blogueiro e editada pela Companhia das Letras, recebeu o prêmio hors concours na 30ª edição do Prêmio Direitos Humanos de Jornalismo.

Promovido pelo Movimento de Justiça e Direitos Humanos, sediado em Porto Alegre, o prêmio é um dos mais tradicionais do país. A relação completa dos vencedores pode ser lida aqui, no site boleiro Impedimento.

Graças à generosidade dos leitores e da crítica acadêmica e jornalística, esse é o quarto prêmio que o livro conquista. Antes, como melhor biografia, ganhou o Prêmio Jabuti, o Prêmio APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) e o prêmio do site Botequim Cultural.

A entrega do Prêmio Direitos Humanos de Jornalismo será no auditório da OAB-RS, na próxima terça-feira, 10 de dezembro, aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Lá estarei.

Em tempo: hoje faz 102 anos que o baiano Carlos Marighella nasceu, em 5 de dezembro de 1911.


Coligay, torcida formada por homossexuais, tem história contada em livro
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Mário Magalhães

Coligay: com o Grêmio onde o Grêmio estivesse – Foto reprodução

 

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Vem aí um grande acerto de contas com a história do futebol e da luta contra a intolerância no Brasil: já estão nas mãos da Editora Libretos os originais do livro que reconstitui a trajetória da Coligay, torcida gremista pioneira dos anos 1970, formada por homossexuais.

Ainda não está batido o martelo, conta o jornalista Léo Gerchmann, autor da obra, mas é possível que título e subtítulo sejam “Coligay – O Grêmio, tricolor e de todas as cores”.

A Coligay nasceu em Porto Alegre, durante a ditadura, no governo do ditador gaúcho Ernesto Geisel, cujo antecessor havia sido outro ditador gaúcho, Emílio Garrastazu Médici. Seus integrantes foram de uma audácia épica, que agora será contada pelo gremista Léo Gerchmann, um dos jornalistas mais talentosos com quem eu tive a oportunidade de trabalhar _cobrimos juntos a Copa de 98, na França, e ao menos uma eleição para governador do Rio Grande do Sul.

O livro será lançado em março. Na entrevista ao blog, o Léo fala sobre seu trabalho e a saga da Coligay.

* * *

O que foi a Coligay? Como a torcida foi recebida em seu tempo?

A Coligay foi uma torcida organizada do Grêmio formada por homossexuais. Mais precisamente, por frequentadores da boate gay Coliseu, de Porto Alegre. Foi a primeira torcida desse tipo que realmente vingou. Dois anos depois, Clóvis Bornay, que ironicamente era vascaíno, fundou a Flagay, que não chegou a vingar. A Coligay existiu de 1977 a 1983, em plena ditadura militar.

Até hoje, torcedores rivais do Grêmio usam a figura da Coligay como motivo de flauta, e, na época, a própria torcida organizada gremista Eurico Lara, que era oficial do Grêmio, a rejeitou. A direção do clube, porém, na medida em que percebeu o jeito que a moçada torcida, até espaço físico no Olímpico lhes cedeu para guardar as bandeiras e instrumentos de percussão. E que jeito era esse? Eles torciam o tempo todo, independentemente de o time estar ou não jogando bem, e não se envolviam com violência. Os jogadores da época dizem que eles os incentivavam muito.

Por que a Coligay acabou?

Basicamente, porque seu idealizador e líder, o Volmar Santos, voltou para Passo Fundo, sua cidade, em 1983. O Volmar, gerente e depois proprietário da Coliseu, era a alma da Coligay.

Por que você fez um livro sobre a Coligay?

Em primeiro lugar, porque sou gremista, e acho que o Grêmio tem nessa história uma página muito edificante. Como torcedor, é uma história que me orgulha. Mas ressalvo: não é um livro somente para gremistas, é um livro para todos, mesmo para quem nem gosta de futebol ou torce para outro clube, independentemente, também, de preferências sexuais. Como costumamos dizer nas reuniões de pautas dos jornais, é uma baita história.

Há flautas homofóbicas? Claro, mas não são essas as reações que me interessam. Elas, aliás, até justificam a importância de uma obra assim. Também porque sou um entusiasta da diversidade e da evolução dos costumes. Para mim, esse é um tema muito caro, provavelmente por ser judeu, neto de sobreviventes do horror nazista e por trazer esse sentimento muito enraizado. Meu pai era conselheiro gremista, e cresci frequentando o Estádio Olímpico. Acho que a Coligay foi um grupo transgressor que contribuiu muito para essa evolução. Levou aos estádios um jeito diferente de torcer, mais comprometido com o time e mais vibrante.

Quais as passagens mais marcantes da torcida?

Foram muitas. Eles surgiram em abril de 1977, quando o Grêmio formava um grande time (Corbo; Eurico, Ancheta, Oberdan e Ladinho; Vitor Hugo, Tadeu e Iúra; Tarciso, André e Éder), que terminou com a hegemonia do Internacional, à época octacampeão gaúcho (na época, os títulos regionais tinham bem mais importância), contando com jogadores como Falcão e Valdomiro.

Sempre tive a opinião de que esse time do Internacional e o do Flamengo do início dos anos 80 foram os melhores que vi jogar, talvez rivalizando com a academia palmeirense de 1972, que mal peguei, porque era ainda muito guri. Hoje, relativizo um pouco essa visão, o próprio Grêmio formou grandes times, que idealizei menos porque a idade já era outra. A Coligay ficou, então, com a fama de pé quente. Mas há muitos episódios interessantes dessa época difícil, em que pessoas eram torturadas nos porões da ditadura, e um grupo de gays se aventurou nas arquibancadas.

Hoje há mais tolerância para a existência de torcidas como a Coligay ou o futebol continua sendo um meio muito preconceituoso?

Apesar da truculência das atuais organizadas, hoje as pessoas ficam mais à vontade para assumir suas preferências sexuais. As próprias mulheres, quando iam ao estádio, 40 anos atrás, eram xingadas. Sim, isso acontecia! Eram chamadas de putas, vadias etc. São coisas, hoje, inconcebíveis, inimagináveis. Espero que quando nossos filhos crescerem eles olhem para trás e pensem, “Pô, por que os caras não podiam se casar, levar a vida como querem, se não prejudicam os outros?” Me parece meio básico.

Tenho dois filhos (um menino de 11 anos e uma menina de seis) e percebo neles que sentimentos como a homofobia e outros preconceitos ficarão como uma triste e incompreensível história, a exemplo da escravidão, o Holocausto e de outras barbáries. A homofobia ainda é aceita socialmente, o que faz dela um grande tema a ser abordado e, evidentemente, repudiado por todos nós que respeitamos as diferenças, quaisquer que sejam elas.

O que fazem hoje os principais integrantes da Coligay? Ainda acompanham o Grêmio onde o Grêmio estiver?

É triste, mas em meio a tudo isso houve a aids. A maioria deles morreu. Os integrantes com quem falei continuam acompanhando o Grêmio de perto. O Volmar Santos é colunista social e agitador cultural em Passo Fundo, outro é cabeleireiro. Todos frequentam a Arena quando possível. O Volmar chega a viajar de Passo Fundo a Porto Alegre no seu carro, mais de 300 quilômetros, e passar a noite num hotel só para ir a jogos do Grêmio.

Para um gremista, como você, qual a principal lembrança da Coligay?

Quando eles surgiram, eu tinha entre 12 e 13 anos. No Olímpico, eu assistia ao jogo das cadeiras, e eles ficavam longe. Mas em Gre-Nais que ocorriam no Beira-Rio, o espaço reservado aos torcedores do Grêmio, os visitantes, era o mesmo. Tchê, era divertidíssimo. Eu e meus colegas dávamos risada com o humor dos caras, que realmente não paravam de incentivar o time e de dançar, com uma charanga muito barulhenta e ritmada.


Líder no Datafolha, Garotinho é só um espantalho nas tratativas para 2014
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Mário Magalhães

O deputado federal Anthony Garotinho – Foto André Borges/Folhapress

 

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Político talentoso que é, o deputado federal Anthony Garotinho (PR) provavelmente tem consciência de que são reduzidíssimas suas chances de se eleger novamente governador do Rio de Janeiro. Ao contrário do que sugere sua expressiva e incontestável liderança na pesquisa Datafolha do finzinho de novembro (leia aqui o levantamento completo do instituto).

No cenário com quatro concorrentes mais parrudos, ele ostenta 21% de intenção de votos, contra 15% do senador Lindbergh Farias (PT) e do ministro Marcelo Crivella (PRB), 11% do vereador Cesar Maia (DEM) e 5% do vice-governador Luiz Fernando Pezão (PMDB). A margem de erro é de três pontos para mais e para menos.

Para quem não mora no Estado ou pensa que ele se resume à zona sul carioca, o que dá no mesmo, exponho dois motivos para o sucesso do ex-governador no Datafolha.

Garotinho e sua mulher, Rosinha, por dois mandatos estiveram no Palácio Guanabara (1999-2007, com breve interregno, a administração Benedita da Silva). Desenvolveram ações sociais que ajudaram cidadãos mais pobres, como o projeto dos restaurantes populares, em funcionamento ainda hoje. Por R$ 1, se come (ou se comia) comida honesta. Para quem tem mesa farta todo dia, talvez a iniciativa mereça o rótulo de “populista”. Quem depende de programas dessa natureza para comer ou comer melhor não esquece a autoria.

É por isso que na pesquisa recém-divulgada Garotinho alcança 30% entre os eleitores que ganham até dois salários-mínimos, e apenas 7% entre os que recebem mais de dez.

Outra característica dos governos da família Garotinho foi, ratificando a fidelidade à sua origem, no Norte fluminense, a atenção ao interior muito além da habitual.

Datafolha: no interior, Garotinho bate em 29%. Na capital, despenca para 13%.

Com esse desempenho, por que Garotinho só se elegeria em um cenário muito pouco provável, como um confronto de segundo turno com Pezão, apadrinhado pelo desgastado governador Sérgio Cabral?

Porque a rejeição ao atual deputado é imensa, como demonstrarão futuras sondagens que incluam esse item em seus questionários. Ela decorre sobretudo da reta final do governo Rosinha, em que o caos tomou o Estado. É verdade que o casal elegeu seu candidato em 2006, mas Sérgio Cabral só vingou ao descolar sua imagem da dos aliados em baixa.

Quando Geraldo Alckmin abriu a campanha para o segundo turno presidencial, em 2006, anunciando a parceria com Garotinho, liquidou com suas pretensões, inclusive no Rio de Janeiro. Quatro anos antes, Garotinho amealhara fabulosos 18% dos votos para o Planalto. Foi perdendo eleitores, a despeito do prestígio entre brasileiros evangélicos como ele.

Todo analista minimamente familiarizado com a política do Rio conhece essa realidade. Por isso, nas infindas tratativas de PMDB, PT e PRB sobre a sucessão no Estado, Garotinho virou um espantalho. Ninguém acredita que ele tenha vigor para triunfar, mas seu nome é evocado como espectro: “Olha aí, se a gente não se acertar, o Garotinho vai voltar…”.

Nos últimos tempos, graças à atuação na Câmara e à presença no rádio, Garotinho recuperou alguma influência. Mas nada que pareça capaz de reverter a convicção da maioria dos eleitores de que, com ele e Rosinha, o Estado regressaria à balbúrdia de 2006.

É possível que Garotinho abra mão de novo mandato de deputado, a fim de formar uma bancada mais numerosa, em torno de uma campanha sua a governador (pode dar errado, pois não haveria um puxador de votos à Câmara tão forte quanto ele). Também poderia tentar o Senado, em acordo com Crivella, Lindbergh ou Cesar _para ele, Pezão é o inimigo a ser batido. O resultado no Datafolha vitamina suas condições para negociar.

Mas é só. Eventual retorno de Garotinho ao governo estadual seria a maior surpresa da política do Rio de Janeiro em muito tempo.

 


Palavras malditas (2): instigante
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Mário Magalhães

Na “Tribuna da Imprensa”, em 1986, eu escrevia em máquinas – Foto multtclique.com.br

 

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O dicionário parece não oferecer opções, mas a impressão, como sabem até crianças em classe de alfabetização, é falsa: nas editorias culturais do jornalismo brasileiro, alguém plantou há mais de uma década a semente da palavra “instigante”, que se metamorfoseou em erva daninha.

Peça de teatro, filme, romance, poema, quadro _tudo é “instigante”. Se o máximo que uma obra arranca de assombro é o adjetivo “instigante”, fracassa a arte.

Mas a culpa não é do artista, e sim de quem eterniza a maldição. Qualquer dia ainda vão se confundir e publicar aquela letra do Aldir, mencionando um “instigante” bandeide no calcanhar.

Tomara que a repetição amalucada instigue as boas almas a reagir contra o “instigante”.


Novos livros de Marcelo Paixão radiografam desigualdade racial no Brasil
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Mário Magalhães

O economista Marcelo Paixão – Foto Sofia Menegat

 

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No Índice de Desenvolvimento Humano, calculado por um programa da ONU, o Brasil ostenta modesta 88ª posição entre as nações. Se fossem considerados apenas os brasileiros brancos, o país ascenderia para o 66º lugar. Levando em conta exclusivamente os classificados como “pretos” e “pardos”, despencaríamos, não perfilando nem entre a primeira centena, e sim no 103º posto mundial.

No Brasil, as mulheres “pretas” e “pardas” detêm mais de dois terços das ocupações domésticas, mal remuneradas e de escasso prestígio social.

Nem 8% dos jovens “pretos” e “pardos” estão inscritos em estabelecimentos de nível superior, muito aquém da média nacional, que já não é grande coisa.

Esse é o cenário de carne e osso, e não a ficção da democracia racial. São números esgrimidos pelo economista Marcelo Paixão, 47, coordenador do Laboratório de Análises Econômicas, Históricas, Sociais e Estatísticas das Relações Raciais. O Laeser é vinculado ao Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, do qual Paixão é professor.

Pesquisador profícuo e pioneiro sobre desigualdades raciais e um dos intelectuais brasileiros mais brilhantes de sua geração, Marcelo Paixão lança dois livros nesta quarta-feira: “A lenda da modernidade encantada: Por uma crítica ao pensamento social brasileiro sobre relações raciais e projeto de Estado-Nação” (Editora CRV); e “500 anos de solidão: Ensaio sobre as desigualdades raciais no Brasil” (Editora Appris).

No primeiro, revisita pensadores da categoria de Gilberto Freyre e Sergio Buarque, confrontando-os. “Apesar de reconhecerem a existência de fortes disparidades nas condições de vidas de brancos, negros e mestiços de diferentes matizes, não questionaram os padrões racialmente hierárquicos nos quais se assenta a sociedade brasileira”, diz Paixão em entrevista ao blog. A segunda obra é uma coletânea de artigos.

Paixão acaba de regressar de uma temporada de um ano na Universidade Princeton, nos Estados Unidos, onde desenvolveu a pesquisa de pós-doutorado de que fala mais abaixo. A pedido do blog, o professor descreveu suas percepções sobre os contrastes entre a vida dos afrodescendentes, como ele, no Brasil e no país de Obama.

Com a palavra, Marcelo Paixão.

* * *

Qual é a conclusão principal de A lenda da modernidade encantada?

A lenda da modernidade encantada é produto de minha tese de doutorado defendida no ano de 2005, no Iuperj, sob orientação do Prof. Adalberto M Cardoso. No ano de 2012-2013, com o apoio da Capes, passei um período de estágio Pós-doutoral na Universidade de Princeton, com a supervisão do Prof. Edward Telles. Então, neste período, pude rever passagens do estudo anterior visando o esclarecimento de pontos.

Neste livro faço um debate com alguns dos mais relevantes autores do chamado pensamento social brasileiro, especialmente os que desenvolveram sua produção sob influência do modernismo, sobre o tema das relações raciais. Mas por que este tema?

Na verdade este assunto, ou seja, o caráter e formação do povo, sempre foi essencial em qualquer Estado forjado a partir do século XIX, seja este da Europa, seja da América Latina. Isto porque tal ideologia se mesclou aos projetos de modernização destas nações, as diferenciando entre as civilizáveis e não civilizáveis (ou dos domináveis e não domináveis desde a lógica da razão imperialista). Portanto, o tema da formação da nacionalidade brasileira vai além de uma mera curiosidade etnográfica associando-se com as estratégias das nossas elites no sentido da constituição de uma nação industrializada e portadora de instituições políticas tipicamente ocidentais.

A partir dos anos 1930 o Brasil incorporou um novo ideário para pensar o seu próprio povo e suas chances para o desenvolvimento. Estas, grosso modo, foram desenhadas pelas noções de democracia racial, de Gilberto Freyre (apesar de o autor raramente usar exatamente este termo), bem como pelo homem cordial, de Sergio Buarque. Não se deve deixar de reconhecer que estes autores tiveram um papel muito importante na modernização do Brasil ao longo do século XX. Contudo, o livro destaca que pensadores deste quilate, assim como uma longa tradição de estudos que chega aos nossos dias, apesar de reconhecerem a existência de fortes disparidades nas condições de vidas de brancos, negros e mestiços de diferentes matizes, não questionaram os padrões racialmente hierárquicos nos quais se assenta a sociedade brasileira, antes preferindo valorizar o consenso social que se forma no entorno destes padrões desiguais.

Portanto, A lenda da modernidade encantada mostra que o pensamento social brasileiro em suas correntes hegemônicas tem como ponto de partida a convergências das linhas de cor e classe social, valorizando o fato de que estas são consideradas normais em nossa sociedade, como se fossem parte da paisagem social. Considerando que tal percepção teve um papel chave no nosso processo de modernização, na verdade sendo elevada quase à condição de uma utopia, não deve surpreender que após ter vivenciado um intensivo processo de transformações estruturais ao longo dos últimos 70 anos que tenhamos tão colhido ao final o que estava sendo desejado desde o começo: ou seja, fortes diferenças separando as condições socioeconômicas de brancos, negros e mestiços das diferentes matizes.

Como mensagem do livro, podemos dizer que o processo de repensar um novo ciclo de desenvolvimento socioeconômico em nosso país exige refletir criticamente sobre esta construção ideológica herdada do período anterior. Benedict Anderson classifica a nação como uma comunidade imaginada. E como tal se quisermos um novo país fundado em parâmetros menos desiguais (ou profundamente mais fraternos e igualitários), teremos de “reimaginar” o Brasil inclusive em termos nos quais se assetam suas relações inter étnicas e raciais.

Do que trata 500 anos de solidão?

O livro 500 anos de solidão porta este nome não por ser um trabalho no campo da historiografia. Na verdade o título decorre de um convite para a publicação do mesmo livro na Colômbia, sob o patrocínio da Universidade Nacional daquele país, através da Profa. Claudia Mosquera. Ora, aquela simpática nação é a mesma de Gabriel García Márquez. Para além da óbvia referencia ao clássico livro deste autor, os cinco séculos de solidão da América Latina, e, por conseguinte, do Brasil, dialogam fortemente com os marcos assumidos pelas relações entre brancos, negros e indígenas em nosso Continente. Por um lado, em seus aspectos de violência, injustiça e exclusão. Mas, por outro, pelo tipo de realismo fantástico que muitas vezes marca nossa realidade e que faz com que este tema, tão importante, permaneça muitas vezes oculto do debate público, da mídia e da agenda de partidos, organizações e do próprio Estado.

500 anos de solidão é formado por sete artigos de minha autoria, escritos nos últimos dez anos. Estes estudos estavam dispersos e dificultavam que o leitor os encontrasse sem muitas horas de pesquisa na Internet. O livro contém artigos versando sobre os indicadores sociais brasileiros desagregados pelos grupos de cor ou raça e sexo, a história da produção das estatísticas sociais no Brasil e na América Latina decomposta segundo este critério, bem como por dois ensaios sobre o tema das relações raciais e desenvolvimento. Por um deles, tenho especial carinho. Chama-se Antropofagia e racismo, onde abordo o modo brasileiro de gestão de seu padrão supostamente assimilacionista entre os diferentes grupos de cor ou raça.

Assim, mais uma vez resgatando elementos do realismo mágico que forma nossa sociedade, neste capítulo reflito sobre o fascínio que o canibalismo exerceu no pensamento das elites brasileiras, que vai de Oswald de Andrade ao velho magnata da mídia Assis Chateubriand. Desta forma, o antigo ritual dos Tupinambás de devorar o inimigo como um modo de roubar a sua força e coragem, é recriado permanentemente no nosso país em relação aos ameríndios, mas, especialmente, os afrodescendentes. Contudo, em tempos de excesso funcional de carne negra (e os coeficientes de mortalidade por homicídio junto aos homens deste grupo estão aí para comprovar), nem sempre a solução antropofágica para este problema costuma ser tão, digamos, poética, quanto a alegoria dos povos ancestrais de nosso país. Ao leitor fica o convite para que decifre este enigma quando passar os olhos por este capítulo.

Qual é a dimensão da desigualdade racial hoje no Brasil?

Na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), coordeno um laboratório de pesquisas chamado Laeser (www.laeser.ie.ufrj.br). Nele, junto com cerca de uma dezena de jovens pesquisadores, produzimos diversos estudos sobre o tema das desigualdades de cor ou raça no Brasil usando sempre como ferramentas as estatísticas sociais geradas por órgãos de governo.

Conforme mencionado acima, o modelo de desenvolvimento capitalista no Brasil a partir dos anos 1930 se deu abrigando diferentes papéis e posições sociais entre os grupos de cor ou raça e sexo em nosso país. É isto o que chamamos de convergência entre as linhas de cor e de classe social. Tal realidade pode ser exemplificada quando analisamos o peso relativo de pretos e pardos e brancos em diferentes tipos de ocupação, tal como o emprego doméstico e a de empregadores. Assim, na primeira forma, as mulheres pretas e pardas formam mais de 2/3 das ocupações domésticas, ao passo que os homens brancos apresentam praticamente a mesma proporção, só que para os empregadores.

Ora, o que explica isto? Esta desproporção corresponde aos fatores socioeconômicos e culturais vigentes em nossa sociedade, que conferem a homens e mulheres dos diferentes grupos de cor ou raça papéis diferentes no interior de nossa sociedade. Neste caso, o problema não reside apenas no fato estatístico de que é muito raro encontrar uma mulher negra no comando de uma empresa, o mesmo valendo para um homem branco trabalhando como faxineiro ou como diarista. Antes, o que chama a atenção é que diante de casos como estes, com elevadíssima probabilidade, as pessoas em geral achariam extremamente estranha tal situação. Não seria improvável que viessem a apoiar que o tal homem branco do nosso exemplo saísse imediatamente daquela situação ao passo que criaria muitos constrangimentos para a tal mulher negra empregadora, muitas vezes inviabilizando o seu empreendimento.

Mas, para além daqueles dados específicos sobre as posições na ocupação, é preciso ver que as desigualdades de cor ou raça no Brasil assumem uma dimensão estrutural. Assim, qualquer que seja o indicador social analisado, lá serão encontradas profundas disparidades nas condições de vida de brancos e pretos e pardos. Isto vale para o acesso ao sistema educacional e de saúde, à exposição à morte violenta e evitável, à sujeição às condições de pobreza e dificuldade de acesso ao alimento adequado e suficiente, às probabilidades de obtenção de uma ocupação bem remunerada, estável, prestigiada e com acesso à proteção social, o acesso à terra. Enfim, quando falamos que no Brasil o racismo à brasileira assume um caráter estrutural estamos dizendo que forças objetivas e subjetivas se irmanam não apenas para prorrogar as diferenças nas condições de vida entre os portadores de cor da pele e traços físicos distintos, mas para tornar tais dessemelhanças como naturais, tal como comentado acima ao abordar A lenda da modernidade encantada.

Qual é a informação mais recente expondo o cenário de desigualdade social e racial?

O trabalho mais recente que nós realizamos através do Laeser falando das desigualdades sociais e raciais no Brasil foi a decomposição do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) pelos grupos de cor ou raça em nosso país. Este exercício foi uma atualização de um antigo estudo que realizei no começo da década passada e que teve razoável repercussão na sociedade brasileira. Só que, desta vez, além da atualização temporal dos indicadores, igualmente adotamos a nova metodologia de cálculo daquele órgão das Nações Unidas. Conforme sabido, o Brasil, no ranking do IDH (valor igual a 0,730) entre as nações, fica colocado na 88a posição (IDH alto, mas não muito alto, que requereria um valor superior a 0,800), certamente uma classificação tímida para um país que é uma das dez maiores economias do mundo. Mas tal resultado fica ainda mais desconcertante quando analisado de modo diferenciado entre brancos e pretos e pardos.

Segundo nosso exercício, se o Brasil fosse formado apenas por pessoas brancas o Brasil seguiria apresentando um IDH alto, porém subindo 22 posições em relação ao país como um todo (ficaria em 66o lugar). Porém se o Brasil fosse um país formado apenas por pretos e pardos nosso IDH seria apenas médio, na posição de número 103 (37 posições atrás). No caso o IDH é um excelente indicador para medir as assimetrias de cor ou raça pois ele incorpora quatro indicadores diferenciados (rendimento médio per capita, anos de escolaridade da população adulta, esperança de prosseguimento nos estudos da população em idade escolar e expectativa de vida ao nascer), assim gerando um resultado sintético que permite revelar a multidimensionalidade das assimetrias.

Por outro lado, apesar das metodologias anterior e atual não permitirem uma comparação mais rigorosa, há cerca de dez anos atrás as diferenças no ranking do Pnud entre brancos e pretos e pardos alcançava cerca de 60 posições. Isto reflete que ocorreram alguns avanços no período, especialmente em termos da esperança de vida ao nascer e no rendimento médio das famílias. Não obstante, as distâncias ainda observadas não permitem abordagens mais otimistas sobre o assunto.

Outro indicador muito interessante que publicamos recentemente diz respeito à distribuição dos grupos de cor ou raça no conjunto da população residente em nosso país. Assim, o exercício consistiu em contabilizar o número de brasileiros entre zero e 69 anos de idade em 2002, e entre 10 e 79 anos de idade, em 2012 (dados da Pnad-IBGE). Reconhecemos que este exercício apresenta um problema reportado à não contabilização dos falecimentos e do saldo das migrações internacionais. Mas de qualquer forma, ele revelou algo deveras sugestivo.

Assim, naquele intervalo de tempo, os que se declaravam brancos encolheram em cerca de 10 milhões de pessoas, ao passo que os que se declaravam pardos cresceu em cerca de 5,5 milhões e os que se declararam pretos em outros 4,5 milhões. Isto indica que muitas pessoas que se declaravam brancas passaram a se ver como pardas e que outros tantos que se declaravam pardos passaram a ser declarar pretos. Considerando que as pesquisas do IBGE não implicam em nenhuma consequência em termos práticos para as pessoas (até por estarem sujeitas às regras legais de sigilo), tal mudança no padrão de declaração se deu motivado por razões ou político-sociais ou culturais. E isto não deixa de ser interessante, pois a partir destas alterações os sistemas estatísticos passaram a revelar um país mais diversificado do que originalmente se imaginava.

O fato de os pretos, pardos e indígenas formarem a maioria do povo brasileiro tem implicações ideológicas muito mais relevantes que uma mera contabilização de cabeças ou cor da pele. Diz respeito ao fato de que estes novos percentuais agora revelados precisarão definitivamente estar expressos na vida nacional no seu conjunto, inclusive nas universidades, mundo empresarial, mídia entre outros espaços sociais relevantes.

Qual é a sua opinião sobre as políticas de cotas no ensino e no trabalho?

Considerando o tipo de pesquisa que realizo seria completamente incoerente que eu não me posicionasse a favor deste tipo de ferramenta para a superação das desigualdades sociais e raciais. O objetivo das ações afirmativas através das cotas vem a ser o de produzir uma diversificação do corpo discente ou de profissionais de uma determinada posição ou ocupação. Como os vestibulares e concursos são realizados no Brasil através do critério exclusivo da pontuação obtida no exame, e como as diferenças socioeconômicas dos distintos candidatos inevitavelmente influem no resultado final, a única forma de lograrmos um quadro de maior diversidade é justamente criando este critério de reserva de vagas. Sem isto estaremos eternamente condenados a legar as desigualdades herdadas do passado para as próximas gerações. Assim, assumindo que a superação dos extremos sociais deve ser elevada a uma das máximas prioridades de nosso século, tais mecanismos devem ser utilizados até o momento em que pudermos ter plena certeza de já estarmos vivendo um novo quadro social.

Mas para além de seu objetivo mais direto, ou seja, gerar maior diversidade nos diferentes espaços profissionais e acadêmicos, cabe abordar o tema das ações afirmativas em sua dimensão mais ampla. Em primeiro lugar, não necessariamente estas políticas se resumem às cotas, podendo ser adotadas voluntariamente. O governo poderia estimular a diversidade nas empresas através da imposição de tal critério para os estabelecimentos privados que obtêm créditos públicos ou que lhe seja fornecedor. Isto não passa necessariamente por cotas. O mesmo vale para o setor privado que pode adotar as ações afirmativas enquanto uma ação voluntária, perseguindo o princípio ético da diversidade, mas de consequências muitas vezes bem práticas em termos de resultados econômicos.

Finalmente, dentro deste debate, há de se mais uma vez refletir sobre o tema dos modelos de desenvolvimento socioeconômico para nossa sociedade. O fato é que o Brasil ao longo das últimas décadas priorizou o crescimento da riqueza material deixando em um segundo plano o problema de sua distribuição. Tal opção (que muitas vezes foi imposta pela força através dos regimes ditatoriais) nos legou uma sociedade com fortes abismos e hoje todos nós brasileiros sofremos com o fruto desta escolha. E quando menciono esta questão não me refiro somente aos indicadores de criminalidade. As grandes disparidades sociais vigentes em nossa sociedade dialogam com os impasses de nosso sistema educacional e com a mediocrização de nosso parque produtivo.

Falo que esta opção de modelo de desenvolvimento impediu e impede o Brasil de ajustar seu relógio aos novos tempos, marcados pela produção baseada no conhecimento e na criatividade. Com isto não quero dizer que haja uma relação unívoca de causa e efeito entre as cotas e estas questões. Mas é impossível não relacionar ambos os assuntos quando constatamos que nem 8% dos jovens pretos e pardos atualmente frequentam algum estabelecimento de ensino superior (no Brasil como um todo, a média gira no entorno de 15%, o que é sob qualquer aspecto simplesmente lamentável). São inteligências e capacidades que o Brasil simplesmente se dá ao luxo de descartar, aos milhões, a cada ano. E o maior prejudicado com este quadro é o próprio povo do país. Por conseguinte, a própria nação, no seu conjunto.

Marcelo Paixão na Universidade Princeton – Foto arquivo pessoal

 

As cotas raciais e sociais têm tido impacto na diminuição da desigualdade no Brasil?

Conforme eu pude mencionar acima, as recentes mudanças sociais, políticas e culturais ocorridas na sociedade brasileira levaram a uma mudança na composição relativa dos grupos de cor ou raça no país. Todavia, este fato abriga um elemento mais propriamente simbólico do que prático. Na verdade, o tempo transcorrido entre o início destas medidas e o período atual ainda não são suficientemente grandes temporalmente, para que se possa estimar estes efeitos utilizando-se indicadores sociais. Assim, as recentes quedas nas assimetrias de cor ou raça no que tange ao rendimento das famílias podem ser antes creditadas à valorização do piso salarial ou a políticas de combate à pobreza, como o Programa Bolsa-Família, do que propriamente às ações afirmativas.

De qualquer forma, os dados mais recentes indicam um aumento no percentual de pretos e pardos entre os estudantes de nível superior (forma atualmente cerca de 1/3), o que em parte é inequivocamente produto das políticas de ingresso diferenciado, tanto através das cotas nas universidades públicas, tanto através do Prouni, onde também existe o mesmo critério para seleção das bolsas de estudos. De todo modo, é importante salientar que este crescimento é foi também provocado pelo aumento do número de alunos de peles escuras nas universidades independentemente das cotas.

Outro dado relevante diz respeito ao peso relativo dos cotistas (seguindo qualquer critério) no total de vagas ofertadas. Estudo realizado pelo nosso Laboratório, o Laeser, mostra que no Censo da Educação Superior de 2011, somente 10% das vagas nas instituições públicas de ensino superior (ou seja, engloba as universidades federais, estaduais, municipais etc.) o eram deste modo. Isto perfazia cerca de 44 mil estudantes beneficiários. Destes, cerca de 75% das vagas via cotas se deram para alunos de escolas públicas. O critério racial grosso modo respondia por cerca de ¼ das vagas por meio de cotas. Portanto, a demanda do movimento negro por reservas de vagas seguindo este critério, de um modo ou de outro, acabou legando um resultado que foi muito além deste estrito grupo.

A Lei aprovada em 2012 no Congresso Nacional ampliou para 50% o número de vagas nas universidades públicas pertencentes ao governo federal. Isto deverá aumentar o atual número de cotistas no total das vagas em instituições de ensino superior pública em cerca de três vezes. Isto, somado ao atual estoque de cotistas beneficiados, gerará um efeito futuro sobre o mercado de trabalho e outros espaços da vida social que serão inevitavelmente sentidos daqui a mais uma década. E esperamos que tal realidade contribua para acelerar o processo atualmente existente de desconcentração da renda, bem como ampliar o acesso às oportunidades, direitos sociais e ao poder político, inclusive levando em conta o critério da cor ou raça.

O que você pesquisou no pós-doutorado na Universidade Princeton?

O meu estudo na Universidade de Princeton dizia respeito aos sistemas de classificação estatísticas dos diferentes grupos étnico-raciais na América Latina, com especial destaque aos afrodescendentes. Esta pesquisa analisava os padrões de classificação existentes segundo a Rodada de 2010 e de 2000 nestes países. Por outro lado, este estudo foi realizado coetaneamente a uma pesquisa que foi coordenada pelo Prof. Telles, e da qual fiz parte, chamada Perla (Projeto Etnicidade e Raça na América Latina). O livro resultante desta pesquisa deve sair em inglês no ano que vem pela Editora da Universidade da Carolina do Norte.

A questão dos padrões de classificação estatística de grupos historicamente discriminados, minoritários ou não, aparenta ser em um primeiro olhar bastante trivial no ponto de vista acadêmico. Mas analisando mais a fundo o significado de um sistema de produção de dados estatísticos para um país, vê-se que isto é um algo que vai muito além de um problema reportado a contagem numérica de pessoas e de formas de defini-las.

No conjunto de países da América Latina o processo de construção dos Estados nacionais se deu premido por uma inconsistência básica. Como nações de maioria não europeia (ameríndia, afrodescendente e mestiça resultante destes dois grupos) poderiam se conformar enquanto nações modernas, dada a origem de seus povos? Esta questão foi decisiva em diferentes momentos de nossa história recente, moderna e mesmo contemporânea. Basta para tal relembrarmos que a dominação de povos asiáticos e africanos no século XIX e XX se mesclava a justificativas de ordem racial. Ou seja, segundo os portadores das visões racistas, territórios habitados por povos incivilizáveis eram passíveis da conquista e espoliação imperial.

Por este motivo, o Brasil ao longo da primeira metade do século XX, tal como a esmagadora maioria dos países latino-americanos, deixou de contar a sua população levando em conta o critério da cor da pele. Ao fazê-lo o que estava em jogo era evitar que se expressasse ao mundo o fato óbvio de que nosso país possuía uma forte presença não europeia. Ao mesmo tempo, com isto, se conseguia invisibilizar estes segmentos da população e suas demandas sociais. Do mesmo modo, em 1970, os militares apoiaram a exclusão desta variável do censo, talvez igualmente preocupados com a visibilização que os grupos afrodescendentes poderiam obter a partir do momento que os resultados daquele levantamento fossem tornados públicos.

Por outro lado, vale lembrar que nos recenseamentos realizados em 1872 (em pleno período imperial e escravocrata) e 1890 o Estado brasileiro realizou a contagem da população levando em conta o critério da cor da pele. Neste caso o que levou a contagem populacional dos negros e seus descendentes foram estratégias de tipo controlista sobre os grupos considerados indesejáveis e perigosos. Na verdade, o nosso país, ao contrário dos demais da América Latina, reincluiu a variável cor da pele nos censos de 1940, 1950 e 1960, sendo bem razoável colocar os motivos de tal decisão justamente por conta deste tipo de preocupação com o controle social por parte do Estado brasileiro.

Seja como for, o ato de o governo contar ou deixar de contar sua população levando em conta o critério étnico-racial vai muito além de um problema puramente técnico ou estatístico. Ao longo da história dos sistemas estatísticos em todo o mundo, contar a diversidade do povo dialogou com as próprias estratégias do Estado nacional em termos demográficos, socioeconômicos e políticos. Seja quando os contava, com finalidades de controle, seja quando não os contava, visando ocultar sua existência e demandas sociais.

De qualquer sorte, ao longo das duas últimas décadas do século passado os movimentos sociais vinculados aos grupos historicamente discriminados na nossa região passaram a reivindicar direitos sociais, em grande parte igualmente favorecido pelo contexto de redemocratização da América Latina. Com isto cresceram as demandas destes segmentos não somente por acesso a direitos e oportunidades, mas, igualmente, por plena visibilidade no espaço público de suas condições mais precárias de vida.

Assim, estes movimentos passaram a legar grande importância ao direito do que classifico de visibilidade estatística, assim buscando usar os sistemas de produção de dados demográficos como ferramenta para a ampliação de suas lutas. Este tipo de movimento está presente hoje em praticamente todos os países da América Latina e engloba tanto os povos ameríndios, como os afrodescendentes. Faz parte, portanto, de um movimento histórico de profundo significado para toda nossa região, talvez sendo uma ponte que nos permitirá finalmente superar os nossos cinco séculos de solidão, tal como menciono no título de um de meus livros.

Enfim, minha pesquisa em Princeton procurou refletir sobre estas questões.

De acordo com sua experiência pessoal, de afrodescendente brasileiro, o racismo mudou no país nas últimas décadas?

O racismo à brasileira, não mudou muito em relação a tal como o conheci ainda quando criança. Nosso modelo de relações raciais assume um padrão de naturalização de papeis sociais. Assim, tudo vai muito bem na medida em que cada um se encontre no seu lugar. Na verdade, um dos fundamentos da Lenda da modernidade encantada é justamente este. Ou seja, mostrar que no modelo brasileiro de relações raciais as desigualdades não formam um subproduto indesejável de relações sociais virtuosas. Mas, antes, que tais relações sociais supostamente virtuosas estão elas mesmas a serviço de um modelo de sociedade profundamente injusto. Portanto, no que tange a esta questão o modelo segue fundamentalmente o mesmo.

É um fato curioso na minha vida quando estou “andando por aí” e me perguntam a minha profissão. Não tendo motivos para mentir, digo que sou professor universitário da UFRJ no que costumo receber olhares e expressões entre o surpreso e o incrédulo. Ora, mais uma vez relembrando do tal realismo mágico que forma nossas sociedades, não deixa de ser curioso: qual o problema de você ser um professor universitário, profissão como outra qualquer, mas com a pele escura e o cabelo carapinha?

Enfim, este processo que pode se dar na ingenuidade da conversa informal se torna mais grave quando migra para os departamentos de pessoal das empresas, para as atitudes de professores em sala de aula e médicos e enfermeiros nos consultórios, dos políticos tomando suas decisões sobre os locais a serem direcionados os investimentos públicos, de policiais manejando seus cassetetes, algemas e revólveres… E tal padrão acaba por afetar os afrodescendentes de todas as classes sociais, conquanto de forma diferenciada entre si, dadas suas respectivas condições socioeconômicas.

Em suma, em nosso país o olhar é educado para informar a consciência coletiva de que a cor da pele confere aos diferentes tipos de brasileiros locais igualmente assimétricos em nossa pirâmide social. Não é nada simples lutar contra este tipo de ideologia. Tal realidade, dito de modo mais direto, expressa o modo operante do racismo em nosso país, ainda segue forte.

Por outro lado, no contexto de redemocratização do Brasil, para os movimentos sociais, senão tanto espaços de representação política (estes ainda fundamentalmente fechados aos grupos historicamente discriminados), foram ampliados os canais de expressão do descontentamento, do protesto. Para pesquisadores, como é meu caso, se abriram novas possibilidades em termos da realização de estudos e pesquisas que tratam dos abismos sociais e raciais do país. Com isto ao menos foi possível superar parcialmente a regra de etiqueta vigente em nossa sociedade de que este tema não deveria ser tratado em público. Na medida em que este tema deixou de ser tratado privadamente, isto abriu espaço para que outras pessoas negras viessem a público denotando estarem orgulhosas por esta condição (em que pese toda carga de discriminação), falando abertamente sobre a importância das lutas sociais, da valorização da ancestralidade e dos valores culturais ou religiosos afrodescendentes.

Tal cenário por sua vez criou um enorme constrangimento moral para todo o país, para as empresas do setor privado e para o Estado exigindo a tomada de posições, em termos éticos e da urgência da adoção de medidas que levassem a uma reversão deste cenário.

É neste momento que não somente o Prof. Marcelo, mas toda a nação, se encontram. E como tal não posso deixar de reconhecer que ocorreram avanços.

Você sentiu diferença na condição dos negros e mestiços no Brasil e nos Estados Unidos?

As sociedades brasileira e estadunidense apresentam óbvias diferenças em termos históricos e culturais. E isto vale para ao modo pelo qual as relações raciais foram sendo experimentadas em um e em outro país. Assim, o Brasil seria a terra da democracia racial, ao passo que os EUA seriam a terra da Jim Crow (grosso modo, sistema de segregação legal que ocorreu naquele país entre o final da Guerra de Secessão e os anos 1960). Mas desde então outros fenômenos históricos vieram sendo produzidos.

Os EUA hoje já não mais abrigam um quadro de segregação legal dos negros. As ações afirmativas permitiram a formação de uma classe média negra. O grau de visibilidade de pessoas de peles escuras naquele país na mídia é incomparável ao que existe no Brasil. E não deixou de ter sido uma experiência pessoal singular ter vivido naquele país justamente durante o mandado de Obama. Enfim, em um ano andando pelo Campus de uma universidade muito prestigiada e pelas ruas de uma cidade com elevado padrão de vida, posso afirmar que em momento algum sofri algum assédio ostensivo por conta da cor de minha pele, o que se compararmos aos espaços sociais assemelhados existentes no Brasil, talvez não ocorresse.

Mas, por outro lado, convém ser bastante econômico quanto ao otimismo no que tange às efetivas condições socioeconômicas dos negros daquele país atualmente. Ainda estava por lá quando Obama fez pronunciamento histórico após a absolvição do assassino confesso de Trayvon Martin, jovem negro de 17 anos. Neste pronunciamento, o presidente falou abertamente que este rapaz poderia ser seu filho e que ele mesmo tinha sido vítima de discriminação várias vezes em sua vida antes de ser uma pessoa conhecida publicamente. Os negros respondem por cerca de 12% da população dos EUA, mas por 60% da população carcerária daquele país. Diferentes estudos mostram que as escolas localizadas nos bairros tipicamente negros nas grandes cidades (Inner City) são de baixa qualidade, perpetuando um ciclo de pobreza e desigualdades. Os efeitos da crise de 2008, especialmente o desemprego e as taxas de pobreza, foram mais que proporcionalmente sentidos pelos negros e latinos. E o fato mais curioso: uma parte da elite intelectual norte-americana passou a abraçar uma ideia de que aquela nação, com o fim da segregação legal, já estaria vivendo dentro dos marcos da sociedade pós-racial (pos racial society), lembrando muito o que ouvíamos falar aqui no Brasil 25 anos atrás. De qualquer forma, a partir deste discurso houve um crescimento do número de ações contestando as ações afirmativas.

Ter vivido a experiência de ser um negro brasileiro nos EUA foi interessante por diferentes motivos. Sendo bem franco gostei muito do conjunto de experiências que tive em Princeton (e outros locais que pude visitar). Mas na condição de cientista social jamais desligaria meu senso crítico deixando de perceber as tantas contradições que aquela sociedade vive, inclusive no plano das relações raciais.

De qualquer sorte, passada a experiência de um ano fora, uma vez de volta ao Brasil, pude sim mais uma vez constatar o quanto nossa sociedade é profundamente estruturada em parâmetros raciais. O quanto isto a torna igual ou diferente da dos EUA dos dias de hoje, enfim, confesso que tal questão vem fazendo parte de minha agenda de estudos e reflexões do presente momento.


Palavras malditas (1): emblemático
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Mário Magalhães

Máquina de escrever de meados dos anos 1960 – Reprodução “The New York Times”

 

O problema não é necessariamente a palavra, solitária e entre aspas.

E sim o seu emprego abusivo e despropositado, um cacoete que provoca náuseas.

O jornalismo tem esses modismos. Fica pior quando o modismo se transforma em praga perpétua.

Quando dá para encaixar um “emblemático”, o pessoal não perde a viagem.

O cachorro fez cocô na rua?

O gesto é emblemático do funcionamento intestinal do bicho.

O dono limpou a sujeira? Típico comportamento emblemático dos cidadãos que respeitam o próximo.

Não limpou, como tantos aqui em Botafogo? Cretinice emblemática de egoísmo.

Haja emblemas e emblemáticos.

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No Galeão, taxista tripudia de passageiros da fila dos táxis especiais
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Mário Magalhães

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No começo da noite da quinta-feira (28/11), uma bela potiguar recém-chegada à casa dos 50 anos desembarcou no Galeão com o filho adolescente. Ainda na área de entrega da bagagem, desembolsou os R$ 105 cobrados pelos táxis especiais pela corrida até o hotel, em Copacabana.

É caro, mas muita gente paga por ser uma espécie de seguro contra eventuais incomodações com motoristas de táxis comuns ou piratas do aeroporto.

A atendente do guichê advertiu: a fila está demorando até 15 minutos.

Na verdade, demorava mais, como mãe e filho vieram a constatar.

Quando a longa fila para os táxis especiais tirava a paciência de quem já tinha contratado o serviço “especial”, um motorista de táxi comum se aproximou  e tripudiou, batendo palmas freneticamente:

“Parabéns! Parabéns! Tão pagando mais, tão na fila, e não tem táxi!”

Ao saber que a passageira e o filho carregavam duas malas, apostou na garfada:

“Dá para levar por R$ 79”.

Ela não topou. Já havia morrido nos R$ 105, e o cidadão não lhe inspirou confiança.

Acho que preço fechado é ilegal. E, com certeza, no taxímetro, daria menos de R$ 79.

É assim, no maior aeroporto da segunda cidade do Brasil, que os passageiros são tratados.

Desnecessário mencionar que não havia fiscalização, pelo menos à vista, para proteger os passageiros do serviço ruim dos táxis especiais e das garfadas e zombarias do motorista do táxi comum.