Blog do Mario Magalhaes

Coligay, torcida formada por homossexuais, tem história contada em livro

Mário Magalhães

Coligay: com o Grêmio onde o Grêmio estivesse – Foto reprodução

 

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Vem aí um grande acerto de contas com a história do futebol e da luta contra a intolerância no Brasil: já estão nas mãos da Editora Libretos os originais do livro que reconstitui a trajetória da Coligay, torcida gremista pioneira dos anos 1970, formada por homossexuais.

Ainda não está batido o martelo, conta o jornalista Léo Gerchmann, autor da obra, mas é possível que título e subtítulo sejam “Coligay – O Grêmio, tricolor e de todas as cores”.

A Coligay nasceu em Porto Alegre, durante a ditadura, no governo do ditador gaúcho Ernesto Geisel, cujo antecessor havia sido outro ditador gaúcho, Emílio Garrastazu Médici. Seus integrantes foram de uma audácia épica, que agora será contada pelo gremista Léo Gerchmann, um dos jornalistas mais talentosos com quem eu tive a oportunidade de trabalhar _cobrimos juntos a Copa de 98, na França, e ao menos uma eleição para governador do Rio Grande do Sul.

O livro será lançado em março. Na entrevista ao blog, o Léo fala sobre seu trabalho e a saga da Coligay.

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O que foi a Coligay? Como a torcida foi recebida em seu tempo?

A Coligay foi uma torcida organizada do Grêmio formada por homossexuais. Mais precisamente, por frequentadores da boate gay Coliseu, de Porto Alegre. Foi a primeira torcida desse tipo que realmente vingou. Dois anos depois, Clóvis Bornay, que ironicamente era vascaíno, fundou a Flagay, que não chegou a vingar. A Coligay existiu de 1977 a 1983, em plena ditadura militar.

Até hoje, torcedores rivais do Grêmio usam a figura da Coligay como motivo de flauta, e, na época, a própria torcida organizada gremista Eurico Lara, que era oficial do Grêmio, a rejeitou. A direção do clube, porém, na medida em que percebeu o jeito que a moçada torcida, até espaço físico no Olímpico lhes cedeu para guardar as bandeiras e instrumentos de percussão. E que jeito era esse? Eles torciam o tempo todo, independentemente de o time estar ou não jogando bem, e não se envolviam com violência. Os jogadores da época dizem que eles os incentivavam muito.

Por que a Coligay acabou?

Basicamente, porque seu idealizador e líder, o Volmar Santos, voltou para Passo Fundo, sua cidade, em 1983. O Volmar, gerente e depois proprietário da Coliseu, era a alma da Coligay.

Por que você fez um livro sobre a Coligay?

Em primeiro lugar, porque sou gremista, e acho que o Grêmio tem nessa história uma página muito edificante. Como torcedor, é uma história que me orgulha. Mas ressalvo: não é um livro somente para gremistas, é um livro para todos, mesmo para quem nem gosta de futebol ou torce para outro clube, independentemente, também, de preferências sexuais. Como costumamos dizer nas reuniões de pautas dos jornais, é uma baita história.

Há flautas homofóbicas? Claro, mas não são essas as reações que me interessam. Elas, aliás, até justificam a importância de uma obra assim. Também porque sou um entusiasta da diversidade e da evolução dos costumes. Para mim, esse é um tema muito caro, provavelmente por ser judeu, neto de sobreviventes do horror nazista e por trazer esse sentimento muito enraizado. Meu pai era conselheiro gremista, e cresci frequentando o Estádio Olímpico. Acho que a Coligay foi um grupo transgressor que contribuiu muito para essa evolução. Levou aos estádios um jeito diferente de torcer, mais comprometido com o time e mais vibrante.

Quais as passagens mais marcantes da torcida?

Foram muitas. Eles surgiram em abril de 1977, quando o Grêmio formava um grande time (Corbo; Eurico, Ancheta, Oberdan e Ladinho; Vitor Hugo, Tadeu e Iúra; Tarciso, André e Éder), que terminou com a hegemonia do Internacional, à época octacampeão gaúcho (na época, os títulos regionais tinham bem mais importância), contando com jogadores como Falcão e Valdomiro.

Sempre tive a opinião de que esse time do Internacional e o do Flamengo do início dos anos 80 foram os melhores que vi jogar, talvez rivalizando com a academia palmeirense de 1972, que mal peguei, porque era ainda muito guri. Hoje, relativizo um pouco essa visão, o próprio Grêmio formou grandes times, que idealizei menos porque a idade já era outra. A Coligay ficou, então, com a fama de pé quente. Mas há muitos episódios interessantes dessa época difícil, em que pessoas eram torturadas nos porões da ditadura, e um grupo de gays se aventurou nas arquibancadas.

Hoje há mais tolerância para a existência de torcidas como a Coligay ou o futebol continua sendo um meio muito preconceituoso?

Apesar da truculência das atuais organizadas, hoje as pessoas ficam mais à vontade para assumir suas preferências sexuais. As próprias mulheres, quando iam ao estádio, 40 anos atrás, eram xingadas. Sim, isso acontecia! Eram chamadas de putas, vadias etc. São coisas, hoje, inconcebíveis, inimagináveis. Espero que quando nossos filhos crescerem eles olhem para trás e pensem, ''Pô, por que os caras não podiam se casar, levar a vida como querem, se não prejudicam os outros?'' Me parece meio básico.

Tenho dois filhos (um menino de 11 anos e uma menina de seis) e percebo neles que sentimentos como a homofobia e outros preconceitos ficarão como uma triste e incompreensível história, a exemplo da escravidão, o Holocausto e de outras barbáries. A homofobia ainda é aceita socialmente, o que faz dela um grande tema a ser abordado e, evidentemente, repudiado por todos nós que respeitamos as diferenças, quaisquer que sejam elas.

O que fazem hoje os principais integrantes da Coligay? Ainda acompanham o Grêmio onde o Grêmio estiver?

É triste, mas em meio a tudo isso houve a aids. A maioria deles morreu. Os integrantes com quem falei continuam acompanhando o Grêmio de perto. O Volmar Santos é colunista social e agitador cultural em Passo Fundo, outro é cabeleireiro. Todos frequentam a Arena quando possível. O Volmar chega a viajar de Passo Fundo a Porto Alegre no seu carro, mais de 300 quilômetros, e passar a noite num hotel só para ir a jogos do Grêmio.

Para um gremista, como você, qual a principal lembrança da Coligay?

Quando eles surgiram, eu tinha entre 12 e 13 anos. No Olímpico, eu assistia ao jogo das cadeiras, e eles ficavam longe. Mas em Gre-Nais que ocorriam no Beira-Rio, o espaço reservado aos torcedores do Grêmio, os visitantes, era o mesmo. Tchê, era divertidíssimo. Eu e meus colegas dávamos risada com o humor dos caras, que realmente não paravam de incentivar o time e de dançar, com uma charanga muito barulhenta e ritmada.