Blog do Mario Magalhaes

Major Pricilla: um perfil

Mário Magalhães

Em março de 2011, Pricilla entre Michele Obama e Hillary Clinton – Foto reprodução

 

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Com o desaparecimento do pedreiro Amarildo de Souza, as suspeitas de que o sumiço tenha sido obra de policiais militares e a queda do major Edson Santos do comando da Unidade de Polícia Pacificadora da Rocinha, o governo do Rio de Janeiro escalou para assumir a UPP da favela o oficial PM de maior credibilidade no Estado.

A rigor, uma oficial, a major Pricilla Azevedo.

Eu já havia lido algumas reportagens sobre Pricilla. Mas aprendi muito mais com o perfil inédito, de autoria da jornalista Débora Thomé, publicado agora pela primeira vez.

O perfil inaugura em alto estilo colaborações de amigos generosos para o blog. Débora trabalhou nos jornais “O Globo” e “O Estado de S. Paulo”. Fez mestrado em ciências políticas, no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Hoje se dedica à edição de livros. E está lançando um escrito por ela própria: “O Bolsa Família e a social-democracia” (Editora FGV).

Boa leitura.

*

Por Débora Thomé

Pricilla de Oliveira Azevedo, de 35 anos, é, segundo ela própria, muito medrosa. Enfrentou tiroteios, viu colegas serem baleados à queima-roupa, foi sequestrada, espancada e fugiu duas vezes do cativeiro, comandou 120 policiais na primeira experiência da Polícia Pacificadora do Rio de Janeiro, mas, mesmo assim, diz ter muito medo. “De quê?”, pergunta a repórter: “De cachorro e temporal. Morro de medo!”

Pricilla Azevedo, ou melhor, Major Pricilla, foi escolhida para comandar a Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da Rocinha. Assumiu este mês com a tarefa árdua de tirar a mácula da polícia no local, depois das suspeitas quanto ao sumiço do pedreiro Amarildo, desaparecido há mais de dois meses. Seu nome não foi indicado à toa para o cargo: a UPP da Rocinha é vitrine da mais famosa política do governo do Rio de Janeiro.

A major resolveu bem cedo, aos 17 anos, que faria a prova para oficial da Polícia Militar, acompanhando o irmão e inspirada por um tio. Fez a prova e descobriu, enquanto esperava na fila do banco, que tinha sido aprovada. Abandonou rapidamente a fila e o noivo – quando ele disse para que optasse entre ele e a Polícia – e foi se internar por três anos no quartel. Mais de uma década depois, tornou-se a primeira comandante de uma UPP.

Era dezembro de 2008 quando, pelo rádio da viatura, soube que seria a responsável por uma nova experiência de policiamento comunitário na favela do Morro Santa Marta. Tomou um susto: “Mas por que eu?” Ninguém respondeu, e até hoje ela não sabe muito bem os motivos. Por duas semanas, guardou segredo absoluto e mudou-se para o morro a fim de começar a preparação junto com a centena de policiais que comandaria. A partir dali, foram dois anos indo apenas duas vezes por semana para casa. Dormia no quartel, que fica no sopé da favela, ou na própria unidade da polícia, dentro da comunidade.

(Para quem não conhece bem o Rio: a favela Santa Marta fica incrustada no bairro de Botafogo; nela, moram cerca de 7 mil pessoas. É passagem do Centro para vários bairros da nobre Zona Sul. De carro, em 10 minutos, chega-se ao Pão de Açúcar. Está a menos de três quadras de alguns dos principais colégios do Rio de Janeiro, escolas essas que, por conta dos tiroteios pré-UPP, chegaram a blindar suas janelas.)

Santa Marta

Os primeiros dias de experiência no Santa Marta foram frustrantes: em uma tentativa de se aproximar da população, a Polícia promoveu cursos de orientação de saúde, mas nenhum morador compareceu. Foi aí que Pricilla tomou a decisão que mudaria a forma de a polícia trabalhar: se ninguém ia aos cursos, ela iria até a população. Passou a frequentar festas da comunidade, eventos, encontros e bares. Gastava o coturno subindo e descendo o Santa Marta, das mais íngremes construções da cidade.

“Passava dia e noite em função disso, porque tem gente que a gente só encontra e conhece quem é à noite. Então, dormia e acordava duas horas da manhã, com insônia, e ia fazer ronda.”

Ela entendeu que, para conseguir fazer algum trabalho ali, tinha que conhecer bem a comunidade. Depois de anos sob o poder dos traficantes, os moradores da favela não queriam conversa com a polícia ou o Estado. Estavam desconfiados e mudos. A maioria dos traficantes fugiu, mas ninguém ajudava ou dava pistas sobre tema algum.

Os dois anos com a rotina de sobe e desce acabaram com o noivado, mas fizeram com que Pricilla se tornasse querida no morro. Foi madrinha de criança e quase virou mãe.

“Um dia, estava na sede quando chegou uma mulher cheia de roupinhas e com um bebê debaixo do braço. ‘Trouxe para a senhora cuidar’, ela me disse. E continuou, dizendo que sabia que eu estava muito mais preparada para fazer isso que ela. Fiquei pensando no que ia fazer com aquela criança, que acabou mesmo passando o dia todo comigo, mas depois ficou com a mãe.”

Faltou-lhe coragem.

Pistola contra a bochecha

Mas dois anos antes, em 2007, aos 29 anos, ela a teve de sobra. Pricilla saía rumo ao culto evangélico, com a avó e a mãe, quando foi abordada por bandidos que pretendiam roubar seu carro e acabaram a levando junto. Excepcionalmente, ela não trazia a bolsa com arma e munição que sempre carregava. Teria sido sua sentença de morte. Por outro golpe de sorte, os bandidos não repararam de início que, na mala do carro, estavam todas as suas medalhas do trabalho na Polícia.

No cativeiro para onde foi levada, sete homens a ameaçaram, espancaram, enquanto se revezavam espremendo a pistola contra a sua bochecha. O pensamento de Pricilla era um só: precisava sair dali, fosse como fosse, pois sua mãe não poderia passar por isso. Tentou fugir a primeira vez; foi parar na casa de um casal de idosos que a recebeu com vassouras em riste, o que chamou a atenção dos bandidos. De volta ao cativeiro, Pricilla teve que inventar uma longa história para justificar sua mala, que fora encontrada, lotada de artefatos de polícia. Caso soubessem que ela integrava a corporação, adeus! Disse, então, que era amante de um policial, cuja mulher era a “piranha da Pricilla”. O nome verdadeiro havia sido omitido desde o começo do sequestro.

Depois de horas de torturas físicas e psicológicas, Pricilla foi colocada na mala do carro e conseguiu fugir pela segunda vez, entrando finalmente em uma casa onde um garoto a ajudou a escapar. Em todo esse tempo, sua visão parcial foi garantida por uma brecha discreta que conseguiu abrir na venda que tapava seu olho.

Para os ladrões, o saldo não poderia ser pior: 5 reais, um par de tênis usado, uma bateria ruim de carro, pneus velhos e um celular, além de décadas, somadas, de prisão. Pricilla nunca mais conseguiu localizar o menino que a salvou, mas, dois dias depois do sequestro, cinco dos bandidos estavam presos. Os outros dois também foram presos; o último deles, apenas no ano passado.

No dia seguinte ao crime: enquanto o comandante do batalhão tentava enrolá-la e dissuadi-la, Pricilla, que tinha ido trabalhar, deu mais um jeito de escapar: fazia questão de prender os homens que a tinham torturado. E assim foi.

Esse ato de bravura – somado ao reconhecimento pelo trabalho na comunidade – a fez apertar a mão de duas das mulheres mais poderosas do mundo: Hillary Clinton e Michele Obama, em março de 2011, no prêmio Mulheres de Coragem, nos Estados Unidos. Desta vez, novamente, pensou na mãe, na emoção que devia estar sentindo ao ver sua filha.

Apesar de ser de uma família de classe média baixa, com o pai funcionário público e a mãe professora, divorciados, Pricilla contou com o apoio da avó e muito trabalho materno para garantir o pagamento da mensalidade do colégio particular. Conheceu as drogas cedo, ainda na escola, mas nunca as consumiu. E o tema tampouco faz parte de seu discurso. Adora ir à praia, acampar e fazer caminhadas. Chegou a ter dúvidas entre estudar direito e ir para a polícia. Acabou voltando à universidade muitos anos depois. “Este ano me formo, se Deus quiser”, diz. Já são 12 anos tentando terminar a faculdade, interrompida inúmeras vezes por conta do trabalho.

Fogo cruzado

Ela é persistente, e essa dureza Pricilla fortaleceu nos três anos de internato no quartel. A rotina de exercícios começava às 5 da manhã, sendo que, quando um dos colegas cometia alguma falha, cinco minutos de sono eram tirados de todos. Os lençóis tinham que ser milimetricamente colocados, com a marca da Polícia no meio do colchão. “Eu adorava dormir, então a saída foi passar a dormir no chão, assim deixava a cama intacta e perfeita.”

Junto com ela estavam outras 23 mulheres. Vinte e uma se formaram, apesar de terem que executar, diariamente, a mesma tarefa dos homens, correndo com o armamento pendurado ao corpo. Desde então, aprendeu a atirar até mesmo de armas de grosso calibre, mas nunca foi habilidosa. O mais difícil para ela, lembra, não era nada disso, mas, sim, aprender a ficar sempre séria. Este era seu grande desafio: disfarçar a graça que via em tudo aquilo.

É com a leveza de quem conta que tomou café com leite pela manhã que a major relata histórias dos diversos confrontos de que participou ao longo da vida, nos quais carregava e atirava com um fuzil Para-FAL 556, uma das armas mais potentes da polícia do Rio. Seu maior problema era o pesado colete à prova de bala: era comum sair carregando 30 quilos entre armas, colete e munição. Pricilla não revela, de forma alguma, se chegou a matar alguém em confronto, mas se lembra bem da primeira vez em que viu um tiro à queima-roupa, desde o momento em que a bala saiu da arma do traficante até atingir um policial.

A cena ocorreu em meio ao pior fogo cruzado de que já participou. Ela estava de plantão justamente nos dias de Carnaval. “Nestas situações, a gente fica torcendo para dar problema, para o serviço passar mais rápido.” Quando os policiais saíam da ronda da favela, por uma distração, estavam dentro dos carros – o que Pricilla explica nunca deve ser feito, por segurança. Na hora em que determinou que os policiais deixassem as viaturas, começou a chuva de tiros. Pricilla manteve a calma, abrigada atrás de um poste. Foram 40 minutos, pelo menos, sob o barulho de fuzis. Era dia de desfile, e as pessoas corriam levando as enormes fantasias embaixo do braço, desesperadas.

A adrenalina dessa e de outras ocasiões segue no corpo, pelo menos, até dormir. No dia seguinte, tudo volta ao normal. “Na hora, a gente só fica na vontade de resolver aquilo. E não adianta ir para casa, pois não passa.”

Mulata jambo, Pricilla versão à paisana usa tons pastéis e anel e cordão de ouro trabalhados sem ostentação: é uma militar de patente reconhecida. E mesmo vivendo num país como o Brasil, machista e racista, diz que não sofreu preconceito por ser mulher ou por ser negra. “O que eles fazem, em uma operação, é me proteger. Meu namorado foi o único homem de quem ouvi que uma mulher não ia mandar nele.” Pricilla jura que a hierarquia do militarismo faz com que todos a respeitem.

Entretanto, nem todo dia é assim. Certa vez, um superior deu um soco na mesa ao ouvir dizer que uma mulher comandaria a Polícia Militar no Rio de Janeiro. “Isso não vai acontecer nunca!”, bradou. Hoje, uma mulher já é a chefe da Polícia Civil e a major Pricilla é conhecida como dos nomes preferidos do Secretário de Segurança José Mariano Beltrame. No meio, dizem que ela só não tem mais poder justamente porque ainda não está no alto da hierarquia. Com sua idade, ainda tem muito tempo.

Quando saiu do Santa Marta, Pricilla se tornou coordenadora geral de Programas Estratégicos para as UPPs, trabalhando internamente na Secretaria de Segurança. Sentia muita falta dos dias emocionantes na rua. Se ela queria mais trabalho e emoção, a Rocinha parece ser o local certo.