Blog do Mario Magalhaes

Arquivo : julho 2013

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Mário Magalhães


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Crux, Crucis, Crucifixus: uma exposição
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Mário Magalhães

 

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Cento e cinquenta cruzes, oratórios, relicários e imagens dos séculos 18 e 19, um tesouro da arte sacra, estão em exposição aqui no Rio, no Centro Cultural do Banco do Brasil. O acervo pertence ao Museu de Arte Sacra de São Paulo. Com entrada franca, a mostra “Crux, Crucis, Crucifixus – O universo simbólico da cruz” celebra a Jornada Mundial da Juventude e a visita do papa Francisco. Fica em cartaz até 23 de setembro.

Mais informações podem ser encontradas no site do CCBB.

 


‘Bote fé’, mote do papa Francisco para os jovens, micou em 1989 com o velhinho Ulysses
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Mário Magalhães

 

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É claro que o dedo não tem a ver com a luva, para curvar-me a uma expressão menos bagaceira.

Mas o mote “bote fé”, pregado pelo papa na atual viagem ao Brasil, lembrou o jingle de Ulysses Guimarães (1916-92), na eleição presidencial de 1989 (assista clicando na imagem acima). O candidato do PMDB tinha 73 anos, três a menos do que Francisco hoje.

O papa fala preferencialmente aos mais novos, na Jornada Mundial da Juventude. Pede que eles não deixem de ouvir os avós.

Ulysses tentava transmitir a ideia de vigor, em confronto com adversários mais jovens como Collor (40 anos) e Lula (44).

Seu jingle é primoroso, obra-prima da marquetagem política. Nunca houve uma eleição com jingles tão bons como os daquele pleito. O UOL agrupou alguns em um vídeo, como se pode assistir aqui.

Com jingle bom e tudo, os eleitores não botaram fé, Ulysses não colheu nem 4,5% dos sufrágios e amargou o sétimo lugar.


Milagres de Francisco e a falta que faz um jingle como o do João de Deus
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Mário Magalhães

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Na calçada defronte ao Copacabana Palace, onde noutro dia o pau comeu no casamento da Dona Baratinha, desfralda-se uma faixa da Pastoral da Aids. Encuco com a surpresa: se a Igreja se opõe ao uso da camisinha, o que proporiam obedientes fiéis? É o que indago a uma jovem, que me encaminha a uma senhora atrás da faixa, pena que ela não apareça na foto acima. E a prevenção com preservativo?, provoco.

A tarde desta quinta-feira da Missa da Acolhida começou mais cedo. Eu havia lido no jornal e ouvido na TV que poderia entrar de carro em Copacabana até as duas da tarde. Pela uma e meia, na garagem, ligo o rádio do automóvel, e o locutor informa que as entradas do bairro já estão interditadas. Logo saberei que o jornal e a TV estavam certos, mas a culpa foi minha, repórter negligente: quem mandou não apurar direito?

O palco da Jornada Mundial da Juventude não fica tão distante de Botafogo, e resolvo ir a pé. Na rua São Clemente, a estação do Metrô está fechada, e muitos peregrinos dão com a cara na porta.

Na Voluntários da Pátria, mais de cem garotas e garotos com camisas verdes do evento se enfileiram para subir num ônibus cujo destino é a rodoviária, e não o Leme e Copacabana, onde Francisco desfilará no papamóvel e falará aos católicos. Não entendi.

Trancado até pouco antes em casa, escrevinhando uma carta ao papa, não havia olhado a primeira página da maioria dos jornais.  Numa banca, deparo-me com as broncas. “Rio passa vergonha”, manchetou o “Extra”. “Peregrinos têm dias de purgatório”, torpedeia “O Dia”.

Na rua Góis Monteiro, um moço abatido pela angústia topa com um conhecido e desabafa: fiquei uma hora na fila! Fila de quê?, matuto, até perceber que ele veste uma camisa do Botafogo. Deve ter comprado ingresso para o clássico de domingo no Maracanã.

Mais alguns passos e vislumbro uma janelinha de andar baixo num prédio, e memórias pagãs me inebriam. Quase duas décadas atrás, namorei uma jornalista que morava ali, bem diante do ponto de ônibus. De madrugada, a barulheira principiava, ela se preocupava com o incômodo, e eu dizia não é nada, meu amor. Era o que a Fátima Guedes chama de pobres mentiras diplomáticas, de puras intenções. O que não faz uma paixão…

Milagres de Francisco

Antes de atravessar o Túnel Novo, aborda-me o primeiro ambulante vendendo capas de chuva por R$ 5 a unidade. Mais tarde, constatarei um milagre de Francisco: em qualquer lugar da praia, todos os camelôs cobram o mesmo preço. No cotidiano do Rio, quanto mais metido a besta o ponto, mais caro o produto. É o que acontece com o coco.

Na avenida Princesa Isabel, dou com a multidão. Até a noite, verei bandeiras de tudo o que é país, incluindo Israel, China e outros que não reconheço. “Será que o Rio já recebeu tanta gente de fora?”, pergunta um rapaz a outro. Como não é comigo, calo, mas acho que não.

Testemunho uma batalha malsucedida de muitos jovens. Como a avenida Atlântica foi dividida cedo pelas grades que isolam a pista no sentido do Leme, via que o papa percorrerá, quem chega agora não consegue passar para o calçadão, no lado da areia.

Não é nenhuma agremiação carioca a que ostenta mais bandeiras, e sim o Clube Atlético Mineiro, que poucas horas atrás conquistou a Libertadores. É um escudo abençoado o do Galo, mas quem está precisando de bênção é o do Flamengo, que quase não vejo. Ainda ignoro que de manhã o Zico presenteou Francisco com o manto sagrado. O papa, torcedor do San Lorenzo, conheceu o Deus rubro-negro.

Mesmo com o frio de 13 graus, a confiar em um termômetro do canteiro central, não flagro ninguém fazendo xixi na rua. Centenas de pessoas aguardam pacientemente nas filas dos banheiros químicos. Novo milagre de Francisco.

No Bar Balcony, embora algumas garotas de programa tenham preferido se ausentar do batente, belas da tarde pelejam em busca de clientes. São as filhas de Deus com quem estive na madrugada da segunda-feira.

Se tencionava promover uma demonstração de força, a Igreja consegue. O rebanho mingua na América Latina, mas permanece numeroso. “Quantas divisões têm o papa?”, zombou Joseph Stálin. Nenhuma, mas aqui perfilam soldados da fé.

Mais de uma vez escuto o verbo “glorificar”, e a confraternização comove.  Observo hábitos, batinas, paramentos. Desconfio de que alguns pertencem a ordens mendicantes, mas a minha ignorância na matéria impede certezas.

No entanto, o clima não parece tão empolgante como a da viagem do papa João Paulo 2º, em 1980. Falta um jingle como “A bênção, João de Deus”. Aquela canção simbolizou a hospitalidade nacional, e a torcida do Fluminense a adotou para sempre. Os organizadores não vacilaram apenas com o trânsito, o metrô e o lamaçal da Cidade da Fé, a que foi sem nunca ter sido. Deveriam ter encomendado um jingle-chiclete como o de outrora.

Passa o papa

Cantarolo na cabeça o velho jingle quando caminhonetes do Batalhão de Choque me ultrapassam. Mais um milagre de Francisco: faz semanas que elas não surgem no Rio sem o afã de sufocar multidões.

Por pouco não tropeço em pedras soltas nas calçadas, mas para banir essa maldição, que derruba da Beatriz Segall a pedestres anônimos, nem o papa.

O protesto só viria à noite, quando manifestantes deixariam os arredores do apartamento do governador, no Leblon, e dariam seu recado em Copacabana. No momento, não há sinal de mensagem política. Será que João Paulo II, Bento 16 e Francisco triunfaram? Findaram os tempos das Comunidades Eclesiais de Base? Onde estão elas?

A bem da verdade, esbarrei, sim, em um grupo ostensivamente politizado. Chilenos, cantavam contra a “opressão”. Junto com um estandarte de sua paróquia e uma bandeira da nação de Allende e Neruda, balançavam outra, de Ernesto Che Guevara, compatriota do cardeal Bergoglio, agora sumo pontífice.

Tento me aquietar em um canto para ver o papa, que se aproxima. Com espírito nada cristão, um brucutu brasileiro empurra vizinhos. Francisco passa rapidinho, e há tanta gente que boa parte nem o vê. Isso mesmo: não é que eu não tenha encontrado o papa, nem mesmo o vi. Quer dizer, só o vi no telão. “Ele passou como um flash”, conta uma mulher ao telefone. “Não importa, foi demais.”

No caminho de volta, quando o papa já deve estar jantando, ocorre-me outro milagre de Francisco: sumiram os mendigos da beira-mar. Ou seja, devem ter sido retirados de lá, para maquiar as nossas misérias. Mas já estão deitados nas calçadas da rua Tonelero e dentro do Túnel Velho. Não se trata de retórica o que o papa fala sobre a pobreza.

É literalmente quilométrica a fila na estação do metrô Siqueira Campos. Gaiatos peregrinos não resistem e entoam: “Meu irmão/ Não desiste/ Não parece/ Mas o fim da fila existe”.

Pouco além da saída do túnel, colados ao muro do cemitério São João Batista, centenas de pessoas fotografam o Cristo Redentor. Enfim, parou de garoar, as nuvens decolaram, e o Corcovado se descortinou no horizonte.

Lembro-me da senhora da Pastoral da Aids, de quem eu esperava uma peroração dogmática submissa aos preceitos do Vaticano, cuja política sobre o HIV resulta em mortes mundo afora.

“E a prevenção com preservativo?”

Ela respondeu de bate-pronto:

“Isso é questão de saúde pública!”  Em outras palavras, tem que usar.

Espantado, sapequei-lhe um beijo na bochecha e parti.


Papa Francisco, por favor, pergunte pelo Amarildo
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Mário Magalhães

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Estimado papa Francisco,

perdoe o tamanho da carta, pois bem sei que o seu tempo é curto e sagrado, e a agenda de hoje está carregada. Mas o assunto é cabeludo como era Cristo.

Como o senhor tem conhecimento, 33 invernos atrás, o piscar de olhos da vida de Jesus de Nazaré, o papa João Paulo 2º também passou por este país de sol e neve. Este vídeo contou um pouco da visita. Releve, com generosidade, o tom chapa-branca da narrativa, excessivo até para os padrões do Vaticano.

Karol Wojtyla estava longe de constituir um revolucionário, fato sabido por qualquer coroinha. Batia de direita, como o Pelé, e não de esquerda feito o Maradona. Apesar de algumas dessemelhanças, agia como o senhor _é complicado comparar personagens de épocas distintas, tipo Maradona e Pelé, ou Karol e Jorge Mario. Como diria o Nelson Rodrigues, um gênio reacionário que se consagrou aqui no Rio, nem o polaco que vai virar santo nem o senhor jogam no time dos “padres de passeata”.

Melhor assim, que eu fico mais à vontade para humildemente lhe fazer um pedido, pois ninguém tomará uma palavra sua como coisa de baderneiro. No dia 14 de julho, não caiu nenhuma Bastilha cá na cidade, mas desde então vêm caindo muitas lágrimas em um barraco da Rocinha. Era lá que o pedreiro batizado como Amarildo de Souza, pobre como São Francisco, morava em um só cômodo com toda a família, que não é pequena. Aos 42 anos, ele é casado e tem seis filhos.

O Amarildo sumiu depois de ser levado por policiais até a sede da chamada Unidade de Polícia Pacificadora, ali mesmo na favela. Para a família do Amarildo, não há paz desde então. Se ninguém lhe avisou, o senhor pode se informar aqui.

Desculpe o abuso, mas seria possível hoje à noite no palco do Leme o senhor perguntar pelo Amarildo? Faz dias que cada vez mais cariocas cobram: cadê o Amarildo? O governador Sérgio Cabral recebeu a família do pedreiro, mas nada de descobrirem o paradeiro dele. Com um apelo seu, além de constranger a polícia para ser mais eficaz, como ela sabe ser tantas vezes, talvez até o Homem lá de cima mande um socorro.

Naquela memorável viagem de João Paulo 2º, ele foi muito diplomático, e até um “viva” concedeu ao Figueiredo. Muitos jovens, católicos ou não, ignoram que o general que preferia a companhia de cavalos à de gente foi o último presidente da ditadura.

Mas não foi com essa atitude que o velho papa contribuiu para apressar a marcha para o fim daquela tirania na qual mataram o padre Henrique, assessor do D. Hélder Câmara, e torturaram até a insanidade o frei Tito, mártir brasileiro. O que marcou a passagem de João Paulo 2º foi a missa no Morumbi, no dia 3 de julho de 1980.

O papa deu seu recado, contra a tal da luta de classes, e só se surpreenderam os ingênuos. Mas o polonês sabia o que iria ouvir e ouviu 140 mil operários gritando “liberdade!, liberdade!, liberdade!”. Eu vi pela televisão, e até hoje me arrepio com a lembrança do agora beato João Paulo 2º sorrindo com a manifestação popular no estádio.

Ele concordara com o roteiro, e previra ou aprovara o discurso do metalúrgico Waldemar Rossi com diatribes anticapitalistas (se tiver um respiro, eis a íntegra dos pronunciamentos). Não se importou. Depois daquele protesto, em que a peãozada clamou por liberdade sem levar um só golpe de cassetete, todo mundo viu que não tardaria a extrema-unção da ditadura.

O Brasil mudou, mas uma família chora na Rocinha. Não ensinarei padre a rezar missa, falando do drama dos desaparecidos. Em seu país contaram 30 mil na última ditadura. Aqui foram pelo menos 160. O que são números, para quem espera um amigo ou parente que nunca regressa? Não o importunarei com conversa sobre o seu desempenho de sacerdote nos tempos do falecido Videla, almirantes e generais, porque não vem ao caso na urgência do momento.

E se, ao contrário do que supõe a mulher do Amarildo, os policiais militares não o tiverem matado? O passado também ensina que, para salvar uma vida, nada mais útil do que denunciar um sumiço.

Não duvido que não lhe importa ser comparado ao papa que o senhor tanto prezava. Contudo, mais do que deixar um gesto para a história, como João Paulo 2º, o senhor ajudaria uma família de filhos de Deus que ainda aguarda o Amarildo.

Aceite os cumprimentos deste seu meio-xará, e boa sorte aqui nesta terra abençoada pelo Cristo Redentor.


Espectro do Cabo Anselmo ronda os protestos do Rio
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Mário Magalhães

Anselmo, que parecia uma coisa, mas era outra

 

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O fantasma que ronda as manifestações em curso no Rio ganhou carne e osso em vídeos mostrando a ação de prováveis infiltrados da Polícia Militar no protesto de segunda-feira nos arredores do Palácio Guanabara.

Algumas imagens podem ser vistas mais abaixo. Participantes do ato público sustentam que agentes do serviço reservado da corporação, afamado como P2, teriam jogado coquetéis molotov contra a tropa. O propósito, acusam, seria justificar repressão truculenta. Os artefatos feriram dois soldados, de acordo com a PM.

Os registros são eloquentes. Nota da polícia confirma o emprego de agentes se passando por manifestantes, mas nega com contundência que PM tivesse ferido PM, a fim de incriminar os ditos “baderneiros”.

A olho nu, a análise sobre a identidade de ao menos um atirador de bomba incendiária é inconclusiva para este repórter míope que aqui escreve. O primeiro vídeo ao pé do post aponta para coincidências. Um blogueiro do “New York Times” anotou diferenças.

Um vídeo que a PM divulgara ontem no Youtube saiu do ar depois de observadores encontrarem semelhanças entre o arremessador de explosivo e um aparente infiltrado que outra gravação flagrou.

Serviços secretos de informações não são instrumentos exclusivos de ditaduras. Eles têm serventia legítima ao Estado democrático de direito. Quase todas as grandes apreensões de drogas ilícitas no país resultam da coleta eficaz de dados por agentes de inteligência da Polícia Federal. Supõe-se e espera-se que a Agência Brasileira de Inteligência tenha investigado com rigor a possibilidade de conspirações terroristas contra o papa em sua visita ao Brasil, nem que seja para se certificar de que elas de fato constituem paranoia. E por aí vai.

Ao contrário do consagrado por tiranias, contudo, na democracia os serviços de espionagem militares e policiais precisam se submeter aos limites constitucionais. Não devem mirar antagonistas políticos, combatendo-os como os “inimigos internos” preconizados pela Doutrina de Segurança Nacional da ditadura instaurada em 1964.

A pancadaria nas cercanias do Palácio Guanabara lustrou a argumentação do governo Sérgio Cabral, que horas antes baixara decreto prevendo a quebra sem autorização judicial do sigilo de comunicações de alegados suspeitos de vandalismo. Juristas consideraram a iniciativa ilegal, e o governador recuou.

Ignoro o caráter da atuação dos policiais infiltrados. Mas sei que provocadores têm servido, de caso pensado ou não, à notória campanha em curso para demonizar as mobilizações. Ressurgiu o tom opositor da cobertura jornalística que vigorou nos primeiros atos do Movimento Passe Livre, em São Paulo. A despeito das ressalvas, equipara-se a massa combativa e pacífica à minoria de manifestantes ou “manifestantes” violentos.

Eu enfatizara na sexta-feira: “Como [os autores de quebra-quebra no Leblon] queimam o filme dos protestos e beneficiam o governo estadual com o verniz de vítima, talvez haja infiltrados de origem nebulosa. Cometeram crimes, têm de ser punidos escrupulosamente, nos termos da lei”.

O que isso tudo tem a ver com o tal Cabo Anselmo? Para quem chegou agora ao tobogã da história: o personagem é o marinheiro de segunda classe José Anselmo dos Santos. Os jornais do passado o celebrizaram como cabo, posto que ele jamais alcançou na Força. Nos meses que antecederam o golpe de Estado de 1964, o dito cujo presidia a Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil, agremiação que batalhava por uma plataforma democrática e reformista.

Há indícios fartos de que já então o falso cabo fosse informante da polícia política (Dops carioca), do Centro de Informações da Marinha (Cenimar) e da Central Intelligence Agency (a CIA norte-americana).

Só na década de 1970, quando o ex-marinheiro se travestia de guerrilheiro de esquerda, seus companheiros tiveram certeza de sua condição de infiltrado. No derradeiro serviço, Anselmo entregou seis correligionários para a repressão matar. Um deles era sua própria mulher, ao que tudo indica grávida.

Anselmo está vivo até hoje, quando se transforma em espectro nas manifestações: quem serão os Cabos Anselmo nas ruas do Rio?

Minha estupidez não é tamanha a ponto de supor que o desempenho dos infiltrados da PM seja igual ao de Anselmo. Muito menos que a conjuntura pré-abril de 1964 tenha parentesco com a atual. Mas há uma conformidade inegável: antes, supunha-se que Anselmo fosse um bravo militante político, quando não era. Até poucos dias atrás, mesmo os mais desvairados ativistas dos protestos passavam por legítimos manifestantes. Com os vídeos agora conhecidos, descobre-se _ou se confirma_ que alguns trabalham para a Polícia Militar.

Uma coisa é colher informações sobre vândalos.

Outra é atacar a tropa, fabricando pretextos para a repressão mais dura.

O que a PM pretende prendendo um repórter da Mídia Ninja? E surrando um fotógrafo?

Talvez as respostas apareçam na próxima passeata.


Vinte anos nesta meia-noite (ou uma crônica contra o esquecimento)
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Mário Magalhães

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Um sino da Candelária badala, mas não dobra por ninguém. O som anuncia a meia-noite de 22 de julho de 2013, ou zero hora do dia 23. Vinte anos atrás, diante das marquises de prédios ao redor da igreja, assassinos desceram de dois Chevettes e abriram fogo contra uns 70 sem-teto que tentavam descansar no inverno carioca. Mataram oito meninos de rua e mendigos. O mais velho tinha 19 anos. O mais novo, 11.

É meia-noite aqui na praça Pio X, e eu não vejo viva alma, nem flores, nem vela. Uma cruz de madeira que já perdeu lascas de tinta, monumento simples como eram aqueles mortos, testemunha a passagem do tempo. Nela estão inscritos os nomes dos desgraçados que ficaram para trás.

Ando um pouco e vislumbro três seres humanos que parecem dormir. Sob a marquise de um edifício, como os moleques no passado, uma mulher se cobre com um lençol estampado claro, que oferece a vantagem de contrastar com sacos pretos que os lixeiros carregarão. Ninguém a arremessará no caminhão por engano.

Na porta da extrema esquerda da fachada da igreja de estilo colonial e neoclássico, construída de 1775 a 1811, um homem deita coberto por papelão. Ao seu lado, abaixo de uma janela, outro miserável se agasalha com um cobertor cinza escuro.

Resisto à tentação cretina de despertá-los para conversar e parto em busca da memória. Uma placa para turistas divulga “fatos históricos” do templo portentoso: “Nas pinturas e fotografias do início do século [XX], destacou-se em relação às outras construções, pelo seu talento e estilo”.

Nada sobre o episódio eternizado como Chacina da Candelária. Nem a respeito da jornada de 1968 em que os cavalarianos, com talento repressor e estilo furioso, atacaram os cidadãos na saída da missa em homenagem a um estudante morto pela ditadura.

Dou a volta na igreja e no ponto de táxi próximo à avenida Rio Branco abordo um motorista com 18 anos de profissão. Para não inibi-lo, descarto perguntar por seu nome. Falo do massacre dos garotos, e ele de fato não se inibe.

“Garotos?”, ironiza.

“Sim, 11, 13 anos, eram garotos.”

“Sabe por que morreram?”, ele indaga, como quem cultiva um segredo.

“Não morreram, foram mortos”, corrijo. E o questiono sobre o motivo.

“Pesquisa”, tripudia o taxista.

Insisto, e ele especula:

“Derrubaram a mãe de alguém.”

“Justifica?”, retruco.

“A toda ação corresponde uma reação”, ele pontifica.

Nunca se soube ao certo o que despertou a ira da turma de matadores vinculada à Polícia Militar. Falaram que os pivetes teriam roubado e agredido a mãe ou mulher de um PM. E apedrejado um carro da corporação, bronqueados com a detenção de um amigo que cheirava cola.

O certo é que sobreveio a vingança, da qual o Brasil tomou conhecimento no amanhecer de 23 de julho de 1993. “Estou horrorizado”, declarou o presidente Itamar Franco. “É uma provocação sem precedentes à sociedade”, interpretou o sociólogo Betinho. O governador Leonel de Moura Brizola não afinou: investigar a PM “é o ponto de partida”.

De regresso à praça Pio X, lembro-me da visita do papa João Paulo II ao Rio em outubro de 1997, quando um ato público rememorou a chacina. A professora Sandra Cavalcanti, então secretária municipal, opôs-se. Alegou que não queria chamuscar a efusiva recepção ao pontífice com a evocação de uma tragédia.

Nesta meia-noite, o papa Francisco descansa em “terra carioca”, expressão que ele empregou no Twitter. E aqui, na praça com o nome de outro papa, eu avisto um garoto negro baixo e forte carregando três enormes sacos abarrotados de garrafas plásticas. Ele vem da rua Primeiro de Março e caminha rumo a um ferro velho nas cercanias da Central do Brasil. Receberá 50 centavos por quilo. Estima ter recolhido de 20 a 30 quilos. Batizado com nome de poeta, Vinicius tem 13 anos. Diz que ouviu “muita coisa” acerca do que ocorreu ali quando ele nem nascera.

“Você não tem medo de andar a essa hora por aqui?”, pergunto.

“Medo eu tenho, mas tenho que trabalhar.”

Morador de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, Vinicius não estuda. Largou a escola na quinta série. O que é um obstáculo para alcançar o sonho que exige, ele esclarece, ensino médio:

“Eu queria mesmo era ser bombeiro”, conta, escancarando o sorriso.

Não demora e outro jovem negro passa com um saco quase vazio. Ele tenta recolher algum resto na lixeira defronte à igreja, mas sai de mãos vazias. Perto dos três degraus à beira da porta principal, que está fechada, o cheiro de urina se intromete pelas narinas. A alguns passos, a tinta vermelha-cor-de-sangue com o contorno de oito corpos, desenhados há anos em um protesto, ainda tinge a calçada de pedras portuguesas.

Como Vinicius e o catador de lixo, os mortos da Candelária eram pobres, negros e mestiços. Dos 70, 44 viriam a ser mortos de forma violenta, incluindo os oito da madrugada inominável. Embora acusados tenham sido condenados a séculos de reclusão, ninguém mais está preso. Como recordou o amigo Sergio Torres, um coitado pegou cana de três anos por coautoria da matança. Foi engano, ele era inocente.

Outras carnificinas trouxeram mais cadáveres, como a de Vigário Geral e a de Eldorado do Carajás. Com elas, as imagens da Chacina da Candelária foram se desbotando a cada inverno. Na semana passada, celebrou-se missa e promoveu-se manifestação aqui na cidade. Há promessa de outro ato para hoje. Avisaram que em Fortaleza também. Que assim seja, lembremos para não esquecer. Nós nos debruçamos sobre o passado para decidir o futuro. Se a impunidade e a injustiça prevalecem atrás, persistirão à frente.

O tempo e o esquecimento embaralham a memória. Dois dos maiores jornais brasileiros informam que os garotos foram fuzilados no fim da noite de 23 de julho de 1993, mas o terror principiou na virada de uma quinta-feira, 22 de julho, para a sexta, 23. Deflagrado por volta da zero hora, continuou, porque algumas vítimas foram sequestradas e executadas em seguida.

Faz umas duas horas que estiou aqui na Candelária, mas a água da chuva ainda molha as ruas e o gramado da praça. A temperatura cai com a noite, confirmando a previsão dos meteorologistas. Daqui a pouco, haverá 20 anos da tarde em que a mãe de Paulo Roberto Oliveira, uma criança de 11 anos, reconheceu o corpo do filho no Instituto Médico Legal.

Badala o sino, e para mim ele dobra pelos nomes que eu leio na cruz. Um tinha o nome de Cristo, de outro só sobreviveu o apelido. Pretos, pobres, cheiradores de cola, pequenos delinquentes. Eram meninos do Brasil:

Paulo R. Oliveira

Anderson O. Pereira

Paulo J. Silva

Marcos A. Alves Silva

Leandro S. Conceição

Valdevino M. de Almeida

Gambazinho

Marcelo C. Jesus

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