Golpes dentro do golpe
Mário Magalhães
Com a ruína do governo do golpista Michel Temer, identidades e dessemelhanças são evocadas, na comparação com os idos da ditadura parida em 1964.
Uma impropriedade da crônica jornalística e das interpretações historiográficas sobrevive nas incursões ao passado: qualificar o Ato Institucional Número 5 como ''o golpe dentro do golpe''.
O artigo definido indica singularidade na violência de dezembro de 1968. Aquela sexta-feira 13 seria a data do único golpe suplementar empreendido pelos sócios do golpe de 1964.
Não houve um único golpe. E sim numerosos golpes dentro do golpe.
O AI-5 do marechal-presidente Costa e Silva resultou em liquidação de habeas-corpus para oposicionistas, endurecimento da censura, fechamento do Congresso, cassação de mandatos parlamentares, suspensão de direitos políticos, asfixia dos direitos individuais e coletivos. Um vasto cardápio liberticida, provavelmente o mais amargo dos 21 anos de ditadura (1964-1985).
Mas a agressão à democracia não recrudescera de repente. Ela vinha de antes, de outros golpes.
Em julho de 1964, o mandato presidencial do marechal Castello Branco tinha sido prorrogado pelo Congresso deformado e intimidado pelos expurgos da ditadura. Terminaria em 1966. Ganhou um ano de bônus.
No mesmo mês, em decisão subestimada nas reconstituições históricas, o Congresso castrado pelo governo impôs a nova regra da maioria absoluta na eleição de presidente da República. Jânio Quadros (1960), Juscelino Kubitschek (1955) e Getulio Vargas (1950) tinham sido eleitos por maioria relativa. Até aí _a introdução do segundo turno_, tudo bem. O estranho era que, no excêntrico segundo turno, os cidadãos não voltariam às urnas; quem escolheria o presidente seriam deputados e senadores. Na prática, menos de quatro meses após o golpe de 1º de abril de 1964, o regime exterminou as diretas estabelecidas pela Constituição de 1946. Era muitíssimo improvável um candidato lograr 50% dos votos mais um. Um dos pretextos do consórcio que depusera o governante constitucional João Goulart era salvar a Carta de 1946…
Já somavam ao menos dois os golpes dentro do golpe. Mais um sobreveio com o AI-2, de outubro de 1965. Autoproclamado democrata e liberal, Castello dispensou as aparências e sepultou, com todas as letras e estatuto de indigente, a eleição direta para o Planalto. Extinguiu os partidos políticos _PSD, PTB e UDN eram os maiores. Aumentou o número de ministros do Supremo Tribunal Federal, para assegurar o domínio da corte. Enfraqueceu ainda mais os poderes do arremedo de Congresso independente.
Um mês depois, Castello baixou o Ato Complementar número 4, estipulando as exigências para a formação de ''organizações que terão atribuições de partidos políticos''. Nenhuma se chamaria partido. As normas draconianas só permitiram a criação de duas organizações, a Aliança Renovadora Nacional (Arena) e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB). Eram conhecidos como o partido do ''sim, senhor'' e o partido do ''sim''. Foi outro golpe. Em seguida, irrompeu o do AI-3, que acabou com o pleito direto para governadores.
Um novo golpe chegou, em março de 1967, com a entrada em vigor de uma Constituição antidemocrática que substituiu a de setembro de 1946. O AI-4 dera ao Congresso descaracterizado prerrogativas para votar a Carta, composta nos termos determinados pela ditadura e sem consulta popular. A de 1946 havia sido elaborada por constituintes eleitos nas urnas.
A década de 1970 também foi tempo de golpe dentro do golpe. O Pacote de Abril de 1977 inventou a figura do senador biônico. Essa espécie peculiar não seria sufragada pelo conjunto dos eleitores, mas aclamada por minúsculos colégios eleitorais sob controle da ditadura. O general Ernesto Geisel temia que a Arena perdesse a maioria no Senado. De quebra, voltaram a fechar temporariamente o Congresso.
O AI-5 foi um estrondoso golpe dentro do golpe. Um de muitos.
Os golpes são como coelhas: gestam um filhote atrás do outro.